Declaração do Diálogo Internacional Luterano-Pentecostal – 2016-2022
A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), por meio de sua Assessoria de Missão Global e
Ecumenismo, e com apoio da Federação Luterana Mundial (FLM), coloca à disposição este importante documento, que pode e quer ser impulso para debates e aproximações.
Acesse, no fim da página, o arquivo em PDF da publicação completa, com apresentação, prefácio para a edição brasileira e lista das pessoas que trabalharam no documento.
Declaração do Diálogo Internacional
Luterano-Pentecostal 2016-2022:
“O Espírito do Senhor está sobre mim.”
“O Espírito do Senhor está sobre mim,
pelo que me ungiu para evangelizar os pobres;
enviou-me para proclamar libertação aos cativos
e restauração da vista aos cegos,
para pôr em liberdade os oprimidos,
e apregoar o ano aceitável do Senhor.”
Lucas 4.18-19
PARTE I: IDENTIDADE
“O Espírito do Senhor está sobre mim…”
Introdução
1 À primeira vista, poder-se-ia estranhar por qual razão a Federação Luterana Mundial (FLM) e a Fraternidade Pentecostal Mundial (FPM) tenham encetado um diálogo ecumênico. Na superfície, elas parecem ser tão diferentes, de modo que teriam muito pouco em comum. As igrejas luteranas são confessionais; as igrejas pentecostais não o são. Falando de modo geral, o culto pentecostal é exuberante, enquanto o culto luterano é mais contido. No entanto, se olharmos mais de perto, podemos encontrar igrejas luteranas, como a Igreja Evangélica Etíope Mekane Yesus, que é carismática na prática, e podemos encontrar igrejas pentecostais com uma rica vida litúrgica, uma estrutura episcopal e um alto apreço pelas ordenanças, como é o caso da Igreja de Deus em Cristo.
2. Luteranos e pentecostais compartilham o mesmo mundo, o que significa que eles compartilham muitos dos mesmos problemas e oportunidades. Nosso mundo está confrontado com muitas mudanças e desafios de todas as espécies: milhões de pessoas migrando de um lugar a outro; a pandemia global da COVID-19 e suas sequelas; questões ecológicas; secularismo; pluralidade religiosa e, em alguns lugares, o abandono de todo da religião; pobreza e sistemas econômicos e governamentais falidos.Como pentecostais e luteranos, conjuntamente confessamos Jesus Cristo e sua obra como a resposta graciosa e generosa de seu Pai à nossa pecaminosidade. Juntos reconhecemos a sagrada Escritura como a fonte do Evangelho, que proclamamos por meio de palavra e ação de uma maneira repleta daquela compaixão que nos advém pelo poder do Espírito Santo.
3. Por conseguinte, reconhecendo essa base comum, também reconhecemos que uma maior unidade entre nossas famílias cristãs poderia proporcionar uma forte esperança para um mundo em crise. Já que ambas nossas famílias eclesiais se preocupam com as pessoas pobres, uma unidade maior poderia levar a uma cooperação incrementada em atender suas necessidades. Acima de tudo, desunião contradiz o desejo que Jesus expressou em sua oração em João 17. Destarte, comprometemo-nos com esse empenho em favor de um diálogo sustentável ao explorarmos em conjunto questões que podem nos levar a uma unidade mais profunda em Cristo.
4. Para nos guiar nessa tarefa, auscultamos juntos Lucas 4.18-19. Quando Jesus falou na sinagoga em Nazaré, ele começou seu sermão com palavras do profeta Isaías (Is 61.1-2; Lc 4.18-19). Depois de desenrolar o rolo de pergaminho e devolvê-lo ao atendente, Jesus se assentou. As pessoas da cidade de Jesus, com muita expectativa, aguardaram ouvir o que ele poderia dizer acerca disso. Aí ele chocou a congregação ao anunciar: “Hoje se cumpriu a escritura que acabais de ouvir”. Durante esta primeira rodada oficial do diálogo internacional entre membros da Federação Luterana Mundial e da Fraternidade Pentecostal Mundial, essas palavras faladas por Isaías e Jesus deram forma à nossa conversação e definiram o escopo desse diálogo.
5. O fundamento para esse diálogo foi colocado em 1996 quando o Gunnar Stålsett, que acabara de completar seu mandato como Secretário-Geral da Federação Luterana Mundial, convidou o Dr. Cecil M. Robeck a considerar a possibilidade de iniciar um diálogo entre luteranos e pentecostais. Devido a transições na liderança e a compromissos preexistentes, como a Declaração Conjunta acerca da Doutrina da Justificação, o cumprimento daquele sonho teve que esperar. No ínterim, o Dr. Sven Oppegaard, então Secretário-Geral Adjunto para Assuntos Ecumênicos da FLM, manteve vivo o sonho. Em 2004, o Dr. Theodor Dieter e o Dr. Kenneth Appold, do Instituto de Pesquisa Ecumênica em Estrasburgo, França, convidaram um grupo de pentecostais para explorar a perspectiva de diálogo. Reunindo-se em dezembro de 2004, esse grupo propôs um diálogo preliminar de cinco anos com o tema “Como encontramos Cristo?”. Sob a liderança do Dr. Kenneth Appold (luterano) e do Dr. Jean-Daniel Plüss (pentecostal), o grupo se reuniu anualmente entre 2005 e 2010, discutindo como encontramos Cristo quando (a) falamos de “evangelho puro” (luteranos) ou de “evangelho completo” (pentecostais), (b) na proclamação, (c) nos sacramentos e ordenanças, e (d) nos carismas. Esse “protodiálogo” haveria de publicar um livreto intitulado “Luteranos e Pentecostais em Diálogo”1. A FLM emitiu a aprovação oficial de um diálogo com pentecostais após sua Assembleia Geral de 2010.
1 Lutherans and Pentecostals in Dialogue. Estrasburgo, França: Instituto de Pesquisa Ecumênica; Pasadena, CA, EUA: Centro de Espiritualidade Cristã David J. Du Plessis; Zurique, Suíça: Associação Europeia de Pesquisa Pentecostal Carismática, 2010. 84 p.
6. Ao longo de nosso diálogo conjunto, o Pastor Dr. Walter Altmann (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) atuou como copresidente luterano e o Dr. Jean-Daniel Plüss (Missão Pentecostal Suíça, Suíça) como copresidente pentecostal. Em 2016, fomos acolhidos pelo Seminário Teológico para a Ásia e o Pacífico, em Baguio, Filipinas, sob a rubrica de “Enviados/as pelo Espírito – Identidade em Cristo”. Em honra ao quinto centenário da Reforma, nossa reunião de 2017 teve lugar em Wittenberg, Alemanha, enfocando o tema “Deus me Ungiu a Proclamar”. Em 2018, o diálogo ocorreu em Santiago, Chile, para debater “Proclamando a Boa-Nova às Pessoas Pobres”. A Igreja Luterana Malagache em Antananarivo, Madagascar, acolheu o diálogo de 2019, ocorrido com o tema “Proclamar Libertação aos Cativos e Restauração da Vista aos Cegos, para Pôr em Liberdade os Cativos”. Devido à pandemia da COVID-19, não foi possível realizar reunião presencial em 2020 e 2021, mas por meio de correspondência pessoal e reuniões por Zoom trabalhamos na redação desta Declaração. Nossa quinta e conclusiva reunião presencial foi acolhida pelo Seminário Teológico Fuller, em Pasadena, Califórnia, EUA, em 2022, quando foi finalizada esta Declaração do Diálogo.
Quem somos
7. Desde o início de nosso diálogo, não objetivamos nos engajar numa troca de informação básica que resultasse num estudo teológico comparativo. Entendemos desde o princípio que ambos, luteranos e pentecostais, encontram sua verdadeira identidade em Cristo. Conjuntamente confessamos que temos uma compreensão comum acerca da Trindade.2 Conjuntamente confessamos que Jesus Cristo é nosso Senhor e Salvador, o que confere a tudo quanto dizemos e fazemos uma orientação cristocêntrica. Conjuntamente também confessamos que o Espírito Santo atua em nossas vidas, na igreja e no mundo. Reconhecemos e confessamos a centralidade da palavra de Deus em nossas igrejas e em nossas Ambos confiamos na presença de Cristo em nossos cultos e ambos experimentamos o culto em toda a sua diversidade como centralmente formativo em nossas vidas cristãs. Ambos entendemos o significado do Evangelho como salvação que Deus, o Pai, confere por meio de Jesus Cristo. Entendemos que somos enviados a servir o mundo em proclamação, diaconia e missão. E ambos buscamos contextualizar o Evangelho em realidades diversas mundo afora. Todas essas confissões e compreensões apontam para nossa unidade em Cristo.
2 Embora a esmagadora maioria dos pentecostais clássicos creem e confessam a Santa Trindade, alguns pentecostais, que compartilham as mesmas raízes históricas, são conhecidos como de Unicidade (Oneness, em inglês) ou pentecostais do Nome de Jesus. Eles não aderem à doutrina trinitária de Deus dos concílios da Igreja Antiga. Apenas pentecostais trinitários estão representados neste diálogo.
8. Ainda assim, com todas essas confissões e compreensões em comum, somos diferentes. A igreja, por definição, contém diversidade. Temos histórias diferentes. Temos culturas eclesiais diferentes. Priorizamos nossos compromissos de maneiras diferentes. Por vezes, usamos palavras de modo diferente ou as preenchemos com significados diferentes. Queremos, pois, compreender melhor uns aos outros do que o fizemos no passado. Como resultado, em certos pontos neste documento, falamos a partir de nossas respectivas perspectivas históricas ou eclesiais, na esperança de podermos juntos crescer em nossa compreensão uns dos outros, bem como em nossa vida conjunta em Cristo e em sua igreja.
Luteranos: identidade
9. O luteranismo começou como um movimento peculiar na Igreja Ocidental no século 16. O monge agostiniano Martim Lutero, sem intencionar de forma alguma iniciar uma nova igreja, suscitou questões acerca do ensino e da prática medieval tardias. Embora rapidamente ganhasse apoiadores em sua Alemanha de nascimento e em regiões da Europa setentrional e central, ele também ganhou muitos inimigos. Seus ensinamentos levaram posteriormente à sua excomunhão pelo papado (1521). Nos anos que se seguiram, Lutero traduziu a Bíblia ao alemão, compôs hinos, proferiu sermões modelares, produziu materiais devocionais e escreveu catecismos que moldaram profundamente a espiritualidade luterana desde então. Juntamente com muitos colegas, Lutero reformou práticas eclesiais, notavelmente permitindo aos clérigos se casarem e dando às pessoas leigas acesso ao cálice na comunhão. Ao longo da década de 1520, foram também efetuados esforços no intento de resolver o conflito entre os apoiadores de Lutero e seus opositores. Eles culminaram na apresentação da Confissão de Augsburgo em 1530 na Dieta de Augsburgo. No entanto, esse esforço não alcançou consenso. Como resultado, o movimento confessante luterano (à época simplesmente chamado de evangelisch ou “evangélico”) e aquelas pessoas que permaneceram na igreja papal desenvolveram, ao longo do tempo, trajetórias posteriores conflitantes. Tragicamente, esse conflito dentro da igreja levou à divisão em múltiplas igrejas mutuamente excludentes, bem como em partidarismo político e, mesmo, guerra aberta. Nos séculos seguintes, o luteranismo se difundiu pela Europa e se espalhou por todos os continentes via imigração e missão.
10. Ainda que os luteranos se reconhecessem uns aos outros e estudassem com os demais através de fronteiras nacionais, esforços formais em direção a uma fraternidade global surgiram apenas no século 20, primeiramente com a Convenção Mundial Luterana (1923-1947) e, então, em 1947, com o estabelecimento da Federação Luterana Mundial (FLM). Em 1984, em sua assembleia em Budapest, a FLM estabeleceu a comunhão plena de púlpito e altar entre suas igrejas-membro. Em 1990, na assembleia de Curitiba, a FLM redefiniu seu status desta maneira: “A Federação Luterana Mundial é uma comunhão de igrejas que confessam o Deus triúno, concordam na proclamação da Palavra de Deus e estão unidas em comunhão de púlpito e altar” (FLM, Constituição III.1). Hoje a FLM abrange 149 igrejas com uma membresia de 77 milhões de pessoas em 99 países.3
3 https://lutheranworld.org/member-churches
Luteranos: doutrina
11. Os luteranos se autoidentificam confessionalmente, o que significa que eles não se identificam por uma estrutura eclesial, liturgia ou experiência específicas, mas, antes, por seu ensinamento. A Escritura é a norma normans – isto é, o juízo supremo e final de todo e qualquer ensinamento e prática cristã. Os luteranos também ensinam e confessam os credos Apostólico, Niceno e Atanasiano. Eles atribuem importância especial e vinculante às confissões luteranas do século 16. As igrejas-membro da FLM aceitam o Catecismo Menor de Martim Lutero (1529) e a Confissão de Augsburgo (1530) como seu padrão doutrinal; a maioria das igrejas-membro, adicionalmente, reconhece todo o Livro de Concórdia (1580). Outros escritos teológicos, devocionais e exegéticos de Lutero também têm sido tremendamente importantes, além de seus hinos. Desde então as igrejas luteranas deram continuidade ao engajamento com todos esses textos, interpretando-os para dentro de seus contextos variados e empenhando-se num ensino concorde com eles.
12. Entre as ênfases luteranas típicas, queremos, no contexto deste diálogo, destacar em particular o seguinte: confissão de Deus, Santa Trindade; que Jesus Cristo, verdadeiramente humano e verdadeiramente divino, é ambos Salvador e Senhor; salvação como um presente puramente gratuito de Deus; justificação pela fé, que é um presente do Espírito Santo e “algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso”4, da qual fluem boas obras; a ação gratuita e eficaz dos sacramentos do Batismo e da Ceia do Senhor; a pregação pura do Evangelho e a correta administração dos sacramentos são suficientes para a unidade da igreja; a necessidade de um ministério com ordenação e público; a distinção entre lei e evangelho; e a liberdade da pessoa cristã.
4 LUTERO, Martinho. Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos (1546). In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2003. v. 8 , p. 133.
Luteranos: experiência
13. Embora os luteranos se identifiquem por seu ensinamento confessional, isso não significa que rejeitem, neguem ou desprezem a experiência. Em verdade, há muitas e ricas experiências que são típicas da prática luterana: ouvir e ler a Escritura, ouvir a Palavra pregada em sermões, receber os sacramentos, oração, canto, perdão dos pecados, koinonia, chamamento vocacional e a própria fé. Ademais, movimentos pietistas e carismáticos no interior do luteranismo têm procurado, em particular, enriquecer a experiência espiritual.
14. É verdade, não obstante, que luteranos haverão de abordar a experiência com cautela. Isso bem pode ser dito como resultado de sua própria experiência histórica acerca dos perigos que a igreja corre quando acumula práticas e ensinamentos sem discernimento teológico suficiente. Ademais, os luteranos empenham-se em testar qualquer experiência dada não apenas à luz da Escritura, credos e confissões, mas também com a experiência de outras pessoas, a congregação, o sínodo ou a assembleia nacional, a comunhão global da FLM, e a igreja ao longo de sua jornada de dois mil anos. Seguindo a terminologia de Lutero no Debate de Heidelberg, muitas pessoas luteranas evocam “a teologia da cruz” como critério para o discernimento espiritual.
15. Lutero comenta: “Esta vida, portanto, não é santidade, mas o processo de se tornar uma pessoa santa, não sanidade, mas tornar-se sã, não já ser, mas um tornar-se, não descansar, mas exercitar-se. Não somos agora o que haveremos de ser, mas estamos a caminho. O processo não está terminado, mas está ativamente em curso. Este não é o alvo, mas ela está no caminho certo. No presente, nada cintila e reluz, mas tudo está sendo purificado”5.
5 LUTHER, Martin. Defense and Explanation of the All the Articles [Defesa e explicação de todos os artigos] (1521). In: Luther’s Works. Philadelphia: Fortress, 1958. v. 32, p. 24.
Pentecostais: identidade
16. O grupo pentecostal representa pentecostais clássicos, cujas raízes remontam aos primórdios do século 20. O reavivamento mais conhecido que deu origem ao pentecostalismo global ocorreu em 1906 na Missão da Rua Azuza, em Los Angeles, Califórnia, EUA, ele próprio antecedido por uma experiência de derramamento do Espírito em Topeka, Kansas, em 1901. Além desses reavivamentos, são registrados derramamentos do Espírito na virada do século 20 na Índia e em outros lugares. É possível encontrar pentecostais clássicos em todos os contextos globais abrangendo em torno de 270 milhões de adeptos. A diversidade entre eles é considerável, razão pela qual algumas pessoas preferem usar o termo no plural, “pentecostalismos”. Além dos pentecostais clássicos, pesquisadores identificam dois outros grupos eclesiais relacionados. O primeiro é a Renovação Carismática, composta por membros de igrejas históricas mais antigas, cujo culto e prática são assemelhados aos de pentecostais. O segundo é o movimento neocarismático, que inclui todos os demais grupos e igrejas cristãs com orientação carismática que não são parte nem dos pentecostais clássicos ou carismáticos em igrejas históricas. O número total desses três grupos abrange mais de 600 milhões de pessoas no mundo todo.
17. A identidade pentecostal, diferentemente daquela de igrejas cujas origens se encontram muito antes na história, não está baseada primeiramente em confissões, fórmulas doutrinárias ou numa estrutura unida, mas antes num tipo particular de experiência espiritual ou carismática, que é acompanhada pela concessão de dádivas espirituais ou carismas (1Co 12.4-11 e 28; Rm 12.4-8; Ef 4.11-13). Esses dons incluem cura, exorcismo e profecia, embora para observadores de fora o dom mais espetacular e controvertido seja o falar em línguas ou a glossolalia. Assim, para pentecostais, a experiência veio em primeiro lugar, e a doutrina a seguiu, a qual pentecostais entendem refletir a realidade do período mais antigo da igreja.
18. Contrariamente a equivocadas compreensões populares, a espiritualidade pentecostal nunca esteve focada ou fixada apenas no Espírito Santo. Em vez disso, ela foca em Jesus Os pentecostais veem suas próprias experiências correlacionadas com as narrativas do Novo Testamento, particularmente aquelas nos evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, nas quais Jesus Cristo aparece proeminentemente como salvador, sanador e auxiliador na necessidade humana. A partir desse processo de reflexão baseada na experiência e formatada biblicamente surgiu o que tem sido chamado de “evangelho pleno” ou “evangelho quadrangular” ou “evangelho pentagonal” (dependendo de quanta ênfase é dada à santificação). Isso significa que, no poder do Espírito Santo, Jesus Cristo continua o ministério que desempenhava nos tempos bíblicos em suas variadas facetas, como:
a) O Salvador que pronuncia perdão de pecados e justifica por fé.
b) O Santificador que purifica uma vida justificada no caminho em direção à santidade e à pureza. Refletindo o legado dos movimentos de santificação, todos os pentecostais afirmam a santidade na vida cristã.
c) O Sanador que livra de enfermidade, tanto física quanto mental, e liberta do poder de espíritos malignos.
d) O Batizador com o Espírito que empodera as pessoas cristãs para testemunho e serviço, dotando-as com dons espirituais diversificados.
e) O Rei-a-Vir-em-Breve, cuja volta iminente é um catalisador poderoso para a urgência na missão, proclamação e serviço.
Pentecostais: doutrina
19. A identidade pentecostal está baseada na espiritualidade carismática, em vez de em confissões estatuídas formalmente, mas isso não implica dizer que a doutrina não tenha lugar no movimento. Desde seus dias mais antigos, os pentecostais redigiram vários tipos de declarações, refletindo acerca do sentido, significado e implicações de sua experiência e fé, à medida em que derivavam inspiração de suas tradições eclesiais de origem. Havia a necessidade de testar, julgar e discernir se ensinamentos propostos preservavam o testemunho bíblico e certos aspectos do ensinamento histórico. esmo quando pentecostais viram como necessário dar forma doutrinal a suas crenças, particularmente aquelas que eram distintivas – como o batismo no Espírito, a glossolalia, a cura e outros carismas –, eles permaneceram suspeitosos de fórmulas doutrinárias ou teológicas, pois essas poderiam tornar-se rígidas ou sem vida. Sua negligência aparente em relação a credos e seus argumentos contra sua inclusão raramente tinham algo a ver com o conteúdo. O que causava preocupação aos pentecostais era o que eles percebiam como a falta de fé pessoal entre as pessoas crentes de tradições mais antigas que retinham os credos. No entanto, por princípio não há nada na doutrina pentecostal que não seja plenamente compatível com os credos da igreja antiga e seus concílios.
20. Ao manter sua espiritualidade e seu ministério carismáticos, orientados prática e biblicamente, a maioria dos pastores e líderes pentecostais atualmente recebeu pouca ou nenhuma educação teológica formal e só mínimo treinamento ministerial. Um número de pastores e teólogos com elevada educação acadêmica está emergindo e contribuindo ativamente para um crescente corpo de teologia pentecostal séria.
Conclusão
21. Delineamos alguns aspectos de nossas duas famílias eclesiais. Quem nos lê pode ter percebido que o respectivo sequenciamento das subseções que abrangem identidade, experiência e doutrina, é diverso. Os luteranos usualmente começam com a doutrina, antes de falarem de experiência, enquanto os pentecostais usualmente começam com a experiência antes de prosseguirem com a doutrina. No entanto, apesar dessa diferença no emolduramento, o conteúdo de nossas identidades se sobrepõe em muitas áreas. Conjuntamente confessamos Deus, a Santa Trindade. Cremos em Jesus Cristo, verdadeiramente humano e verdadeiramente divino, que é nosso Salvador e Senhor. Mantemos que a salvação é um presente puramente gratuito e livre de Deus e que pessoas pecadoras são justificadas pela fé, o que nos torna livres e nos envia ao mundo para servir. Interpretamos nossas experiências por meio da santa Escritura e com o auxílio de ambas, a igreja local e a global. É nesse jubiloso reconhecimento dessas convergências em nossa fé e prática cristãs que podemos prosseguir na exploração mais profunda dos tópicos que seguem.
PARTE II: MISSÃO E PROCLAMAÇÃO
“…ele me ungiu para evangelizar…”
A missão trinitária da salvação
22. Conjuntamente cremos que Deus tem uma missão (missio Dei). Essa missão emana do coração de Deus e a Trindade é um paradigma para uma compreensão holística dessa missão. Essa missão holística inclui: a) cuidado com a criação, como representado pelo mandamento do Pai em Gênesis 1.28; b) amor por outras pessoas, como representado pelo mandamento do Filho em João 13.34-35 e c) a proclamação do Evangelho, como representado no derramamento do Espírito sobre os apóstolos em Atos 1–2. No poder do Espírito Santo, a igreja é chamada a um discipulado transformador e missionário. O ministério de Jesus na terra é o modelo para a igreja enquanto cumpre a missão divina. Precisamente como Jesus foi ungido para proclamar a Boa-Nova (Lc 4.18) na terra, a igreja tem a mesma missão. Trata-se de uma proclamação a ser desenvolvida por meio de palavra e ação.
23. Como pessoas cristãs, respondemos de múltiplas formas à missão de Deus na terra, doadora de vida. Equipados pelo Espírito Santo, somos encorajados a construir uma comunidade de esperança, na qual o Evangelho sempre é compartilhado e vivido por todo o globo. Seja apresentada por meio de evangelismo direto ou demonstrada por meio de atos de amor, a mensagem do Evangelho é sempre a mesma. Essa proclamação encontra-se verdadeiramente no centro daquilo que a igreja é chamada a fazer: “Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação” (2Co 5.18-19). Por conseguinte, nossa proclamação é centrada em Cristo e baseada na Escritura. Afinal de contas, é Cristo quem nos comissiona a proclamar o Evangelho, e a Escritura nos dá o conteúdo de nossa proclamação desse Evangelho. Ao proclamarmos essa mensagem, sempre temos a esperança de que ocorra a conversão dos sujeitos humanos, resultando em sua transformação, reconciliação e empoderamento. O alvo da igreja é a salvação do mundo para a glória do Deus triúno.
Proclamação em palavra
24. As palavras do profeta Isaías, lidas e reivindicadas por Jesus para seu próprio ministério (Lc 18), estabelecem um modelo para o ministério cristão: somos pessoas que foram vocacionadas e empoderadas a levar a Boa-Nova a outras pessoas. Esse mandato vem tanto pelas palavras de Jesus (Mt 28.19-20) quanto pelo ensinamento dos apóstolos (2Tm 2.1-2).
25. A Boa-Nova é a palavra de Deus, o Jesus Cristo encarnado, como testemunhado pela Escritura. O próprio Cristo é a mensagem de que Deus providenciou o caminho da salvação, que o pecado pode ser perdoado e que Jesus é aquele por meio de quem a salvação é dada e recebida: o poder de Deus para salvação dada sem custo algum para todas as pessoas que o recebem (Rm 1.16). É desejo de Deus que todas as pessoas sejam salvas (1Tm 2.4). A Boa-Nova nos liberta do cativeiro do pecado, da morte, do diabo e dos poderes e principados, assim abrindo uma vida nova e abundante para nós. Os atos salvíficos e transformadores de Deus se estendem também para além da humanidade e incluem toda a criação (Gn 2.7; Jo 3.8,20.22; Rm 8.18-22).
26. A proclamação ocorre de várias maneiras. A criação declara a glória de Deus (Sl 19.1). Uma maneira primordial de proclamar a Boa-Nova é por meio de nossas vidas e ações. Somos também encorajados a falar a outras pessoas acerca dessa mensagem (Rm 10.13-15). A proclamação ocorre a partir do púlpito, em reuniões evangelísticas, pelo testemunho pessoal, em estudos bíblicos, em pequenos grupos, em cânticos e música, e em toda sorte de encontros pessoais. Todas as pessoas que são parte da igreja têm o regozijo, o direito e a obrigação de compartilhar com outras pessoas a Boa-Nova de Jesus Cristo. Em suma, fomos chamados a ser testemunhas de Cristo diante do mundo (At 1.8). Algumas pessoas seguidoras de Jesus foram especialmente dotadas e chamadas a proclamar a Boa-Nova (Ef 4.11), mas todas as pessoas que são seguidoras de Jesus Cristo têm o privilégio de compartilhar a Boa-Nova dando testemunho de seu encontro com ele e dos efeitos dele em suas vidas. O encontro com Deus transforma nossas vidas, movendo-nos do reino da escuridão para o reino da luz (Cl 1.13-14) e dando-nos abundância de vida (Jo 10.10).
27. Sempre que celebramos o Batismo e a Ceia do Senhor, vivemos uma comunidade que é chamada à comunhão com nosso Senhor e Salvador. No Batismo morremos e ressuscitamos com Cristo (Rm 6.3-11) e na Ceia do Senhor, comendo o pão e bebendo do cálice, proclamamos a morte do Senhor até que ele venha (1Co 11.26). Toda e qualquer ação ou obra que é livremente oferecida a outras pessoas na luz do amor de Deus e no poder de seu Espírito pode comunicar a Boa-Nova de Jesus Cristo (Mt 25.34-36). Destarte, a mensagem do Evangelho é proclamada primeiramente por meio da palavra de Deus na Escritura, a seguir nas palavras das pessoas que seguem Jesus e na vida divina que elas vivem (Mt 5.13-15), e nas várias ações e obras que fazem ao buscar o bem-estar de todos os seres humanos na terra.
Proclamação por meio da ação
28. Afirmamos que o mandato bíblico para a proclamação precisa ser traduzido em um engajamento concomitante em atos de amor e obras de misericórdia dentro da comunidade, de modo que a mensagem que proclamamos permaneça crível e relevante.
29. Uma maneira como a proclamação por meio da ação se cumpre ocorre por meio de nossas vidas oferecidas a Deus, refletindo a transformação continuada que tem lugar nas mentes, nos corações e nas vidas de todas as pessoas que depositam sua fé em Jesus Cristo (Rm 12.1-2). O que fazemos é tão importante quanto o que dizemos. A proclamação do Evangelho, portanto, requer vivermos nossas vidas coerentemente em conformidade com a Boa-Nova que recebemos.
30. Ademais, em nossas obras, a inter-relação entre os mandamentos de Deus para cuidarmos do mundo, amarmos nosso próximo e proclamarmos o Evangelho precisa constantemente estar em mente. Nossa prática de missão precisa ser desenvolvida em solidariedade com pessoas que sofrem e também abordar as causas radicais de injustiça e opressão. Dessa forma não somos apenas ouvintes da palavra, mas também praticantes (Tg 1.22). Conjuntamente afirmamos que as pessoas que vivem na pobreza e são colocadas às margens por todo o globo não são apenas recebedoras da missão, mas também seus agentes, cujas vozes e vidas necessitam ser respeitadas e ouvidas em nossas respectivas igrejas.
31. Obras de misericórdia começam com o respeito pela dignidade humana, não baseadas em princípios filosóficos genéricos, mas como um chamado vindo de Deus: “Quem se compadece do pobre ao Senhor empresta, e este lhe paga o seu benefício” (Pv 19.17). Assim como escutamos fielmente a Escritura, também ouvimos atentamente os clamores e as lutas das pessoas que nos circundam, todas elas criadas à imagem de Deus. A participação na missão de Deus convoca cada comunidade a olhar para além de suas próprias zonas de conforto e muros, a fim de abraçar plenamente seu compromisso missional no mundo. Conectar-se com as lutas da comunidade é uma parte vital de compreender a relevância do Evangelho de Cristo e de nosso mandato para proclamá-lo. Por essa razão concordamos que a fé deve se refletir em ações de misericórdia praticadas dentro da comunidade e além dela, como no exemplo de Tabita em Atos 9.36.
32. Portanto, sempre há uma oportunidade à espera para aquelas pessoas que querem seguir o exemplo de Jesus e oferecer seus serviços em amor por meio de ações de misericórdia. Ademais, deve-se registrar que a cruz pressupõe o fato de que a paz que o mundo recebe de Cristo não pode ser usufruída plenamente se algumas pessoas são deixadas sem sanação e a A dor do mundo, portanto, deveria conectar as pessoas cristãs com a inteira criação de Deus. Dessa forma a proclamação em palavra e a misericórdia cristã em obras vão de mãos dadas.
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Estudos de casos de proclamação
O compromisso luterano de proclamar a Palavra de Deus no vernáculo é belamente exemplificado pelos evangelistas-tradutores etíopes do século 19 Onesimos Nesib e Aster Ganno. Ambos foram capturados e escravizados quando jovens; mais tarde, quando foram libertados, tornaram-se cristãos e trabalharam com as missões suecas na Etiópia e na Eritreia. Onesimos tinha uma paixão fervorosa em compartilhar o Evangelho com seus compatriotas, mas tinha sido sequestrado da região em que vivia numa idade tão tenra que seu vocabulário em oromo era bastante precário. Já Aster, em contraste, tinha não apenas um vocabulário mais amplo, como também uma memória prodigiosa, tendo compilado uma gramática e um dicionário de oromo com 15 mil termos, bem como quinhentos cânticos, contos, quebra-cabeças e provérbios do oromo. Juntos, Onesimos e Aster traduziram a Bíblia inteira ao oromo pela primeira vez, obra publicada em 1899. Dedicaram o restante de suas vidas a desenvolver missões e constituindo escolas para alfabetização, legando assim aos oromos sua linguagem escrita e a Boa-Nova.
Proclamar a Boa-Nova e ensinar a Palavra de Deus vão de mãos dadas em contextos pentecostais, como mostra um exemplo da Papua Nova Guiné. Especialmente em áreas remotas, o evangelismo começou com a narração de estórias dos evangelhos, apresentando a mensagem da salvação. Missionários estabeleceram escolas para ensinar os papuanos a ler e escrever. Pentecostais também estiveram envolvidos na tradução da Bíblia para muitas línguas indígenas da Papua Nova Guiné. Em 1986, as Assembleias de Deus estabeleceram o Instituto de Correspondência Internacional (atualmente Universidade Global), que em dois anos cresceu a uma matrícula de trinta mil pessoas. O programa começou com um curso orientado evangelisticamente chamado de “A grande questão de vida”, que foi seguido por um curso catequético chamado de “Destaques da vida de Cristo” e “Seu amigo auxiliador”, sobre o Espírito Santo. A “Série acerca da vida cristã” é um curso de discipulado, e mais tarde foi iniciado um programa de liderança intitulado “Série acerca do serviço cristão”. Os cursos básicos têm sido administrados livres de qualquer cobrança. Atualmente a Universidade Global segue oferecendo cursos evangelísticos e de discipulado, e ao mesmo tempo expandiu ao nível superior e de pós-graduação para ministros religiosos.
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Preocupações e desafios em comum
33. Fundamentados em nossa concordância compartilhada com a missão trinitária de Deus e a natureza da proclamação em palavra e ação, abordamos agora áreas específicas de preocupação e desafio.
34. Ética. A área de preocupação mais significativa que compartilhamos é a da ética da missão. Ambos nossos grupos temos observado formas desonestas e destituídas de honra na missão, estratégias de “qualquer meio necessário” que desconsideram amplamente o elevado padrão de santidade que se exige dos testemunhos apostólicos e em favor da humanidade de todas as pessoas. Ficamos espantados quando missionários desenvolvem seus programas em total ignorância da cultura ou história local. Ficamos frustrados ou envergonhados quando pessoas cristãs tentam “evangelizar” membros de outras igrejas como se essas outras igrejas simplesmente não existissem. Nós concordamos quanto à importância de reconhecer que o Espírito Santo é o agente primeiro da missão, tanto na proclamação da igreja quanto na resposta das pessoas ouvintes ao que é Essa percepção teológica deveria tornar-nos humildes quanto à nossa vocação, nossas atividades missionais e como nos dirigimos a outras pessoas. O proselitismo desrespeita o recebedor em potencial enquanto pessoa e viola outras comunidades cristãs que igualmente buscam proclamar a Boa-Nova.6
6 BROWN, John Baxter (ed.). Call to Mission and Perceptions of Proselytism: A Reader for a Global Conversation [Chamado à Missão e Percepções de Proselitismo: Coletânea para uma Conversação Global]. Eugene, OR, EUA: Pickwick Publications, 2022.
35. Unidade da igreja. Estamos conscientes do fato de que o empenho pela unidade cristã tem sua fonte na oração sacerdotal de Jesus (Jo 17) e na relevância renovada no movimento missionário, de forma mais notória na Conferência Missionária de Edimburgo de 1910, quando, pela primeira vez, pessoas cristãs fizeram frente ao escândalo de sua hostilidade e competição no campo missionário. Ao deplorarmos o “furto de ovelhas”, também reconhecemos que pessoas cristãs podem deixar uma igreja por causa de seus fracassos em desenvolver integralmente a missão de Deus, e convidamos todas as igrejas a uma séria avaliação autocrítica. Também observamos que o sucesso aparente de igrejas cristãs numa sociedade pode, na prática, fomentar a divisão, enquanto que uma perseguição sofrida e o status minoritário podem promover uma estreita cooperação. Recomendamos parcerias complementares entre igrejas que buscam não “roubar” membros, mas fortalecer-se mutuamente. Igualmente enfatizamos a importância de aspectos visíveis da unidade, juntamente com a unidade espiritual e invisível. Nosso diálogo mostrou que é possível construir confiança, expressões de unidade podem ser fomentadas e testemunho comum é algo viável.
36. Escatologia. Houve tempo em que a urgência escatológica foi um fator motivacional de maior realce nas missões pentecostais, especialmente a expectativa de que Cristo em breve retornaria em glória. Ainda que esse tema já não seja enfatizado hoje como o foi nos primórdios do movimento, os pentecostais ainda pensam de si mesmos em termos de estarem vivendo nos “últimos dias”, o que é uma motivação–chave para alcançar as pessoas perdidas (Lc 15). Contudo, com a passagem entrementes de mais de cem anos desde os primeiros reavivamentos, os pentecostais viram-se confrontados com a tarefa de construir a longo termo, por exemplo, estabelecendo escolas e hospitais, resultando numa missão mais holística. De sua parte, os luteranos recordam que os primeiros dias da Reforma também foram marcados por uma urgência escatológica, que no transcurso de tempo foi transformada em uma postura com princípios amilenários, levando, ao contrário, a extensas reformas socioeconômicas, como o estabelecimento de uma caixa comum, o auxílio a pessoas pobres, escolas para crianças e reforma universitária, bem como a iniciativas de cuidado da saúde, que continuaram até os dias de hoje. Essa mesma dinâmica de desenvolvimento da escatologia é observável no próprio Novo Testamento.
37. Diálogo inter-religioso e intercultural. Conjuntamente reconhecemos que o trabalho na missão muitas vezes ocorre localmente, entre pessoas que compartilham uma linguagem e cultura próprias das pessoas cristãs. Se mesmo isso requer sensibilidade e sabedoria, tanto mais isso é necessário quando pessoas cristãs traspassam fronteiras de língua, cultura, etnicidade e religião. Conjuntamente reconhecemos que o diálogo com pessoas de outras crenças é complementar ao trabalho na missão, e não uma alternativa ou uma ameaça à missão. Trata-se de uma expressão de respeito e amor a nossos próximos e pela obra que Deus está realizando entre elas (Mt 2.1-12; Jo 16.5-11; At 17.16-34). Da mesma forma, refletindo sobre a história frequentemente contristadora do imperialismo cultural e político, conjuntamente exortamos a um relacionamento respeitoso e atento com culturas outras das nossas, ouvindo bem antes de tentarmos falar, para construirmos sociedades justas e pacíficas.
38. Contextualização do Evangelho. Conjuntamente reconhecemos que a igreja é demandada sempre a explorar maneiras significativas de interagir com diferentes religiões e culturas. Nesse ponto o desafio maior da igreja consiste na contextualização da mensagem cristã com uma atitude positiva, ainda que com discernimento, em relação à cultura local. Contextualização é o processo que busca interpretar a Escritura tendo em mente o contexto das pessoas recebedoras, a fim de torná-la mais inteligível para elas, sempre respeitando sua plena humanidade. Preocupação acerca de sincretismo e o perigo de determinada cultura solapar a verdade divina não precisam ser deixados de lado. Somos chamados “para fora” do mundo para o culto (1Pe 2.-5-9) e “enviados de volta” ao mundo para servir como testemunhas eficazes (Jo 17.18,20-21). Mas tais preocupações não devem amortecer ou suprimir nossos esforços em direção à contextualização. Esse diálogo entre pentecostais e luteranos ilustra os benefícios auferidos quando tradições cristãs diferentes se engajam juntas para encontrar caminhos de serem testemunhas de Cristo significativas para todas as pessoas.
PARTE III: MISSÃO E AS PESSOAS POBRES
“…para evangelizar os pobres…”
Introdução
39. Como pessoas cristãs, levamos a sério a vocação que recebemos, que, seguindo Jesus, devemos levar a mensagem da “Boa-Nova aos pobres”, o que inclui todas as pessoas enquanto vulneráveis, marginalizadas, vivendo com deficiência ou padecendo necessidade de qualquer outra forma. Seria fácil sermos seletivos em nossas leituras da Bíblia, fazendo menção, por exemplo, a que o próprio Jesus comentou que “os pobres, sempre os tendes convosco” (Mt 26.11). Qualquer pessoa ouvindo essas palavras poderia concluir que a pobreza é um problema insuperável. Mas a Escritura tem muito mais a dizer acerca das pessoas pobres e do cuidado para com elas (Dt 11; Pv 14.31; Is 58.6-10; Mt 25.40; 1Jo 3.17-18), e, acima de tudo: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus” (Lc 6.20).
40. Jesus, ele próprio, nasceu de uma mulher pobre, em circunstâncias humildes. Maria, esperando a criança prometida pelo anjo, canta um cântico jubiloso (Lc 1.46-55). Esse cântico viria a tornar-se conhecido como o Magnificat, porque nele Maria exaltou a maravilhosa misericórdia de Deus para com ela. Em sua explicação do Magnificat, Lutero assinalou que Deus não encarou a “humildade” de Maria como uma virtude moral, mas sua “condição inferior”, seu ser pobre, seu “nada ser”. Foi precisamente Maria, uma mulher pobre, a escolhida para ser a serva de Deus e a ser chamada, por todas as gerações, uma abençoada.7
7 LUTERO, Martinho. Comentário sobre o Magnificat. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1996. v. 6, p. 22-78.
41. Em seu sermão inaugural, Jesus começou com palavras do profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres” (Lc 4.18). Quando um jovem rico se aproximou de Jesus, auscultando-o quanto a como poderia receber a vida eterna, Jesus o instruiu a vender tudo quanto possuía e a dar o resultado auferido a pessoas pobres (Mt 19.21) e a segui-lo. Quando Jesus viu a viúva pobre dando de sua própria pobreza, ele a honrou (Mc 12.42-44). Na parábola do bom samaritano, Jesus convida seus discípulos a refletir acerca do amor ao próximo, tanto no servir a quem se encontra com necessidades, quanto em usar o samaritano desprezado como um exemplo de amor ao próximo (Lc 10.29). Deus convocou as pessoas seguidoras de Jesus a cuidar das pessoas pobres, das marginalizadas, das migrantes e refugiadas, e especialmente das viúvas e dos órfãos, seguindo a tradição da lei do Antigo Testamento (Lv 19.9-10 e 34) e dos profetas (Is 10.1-2; Zc 7.10). Todos os seres humanos são feitos à imagem de Deus (Gn 1.27). Todos eles devem ser encarados com dignidade e respeito como pessoas que têm a oportunidade de ouvir e compartilhar a Boa-Nova, de levar esperança e a possibilidade de florescer por meio de uma vida plena e abundante (Jo 10.10).
42. Pela generosidade de Deus, a terra tem a capacidade de produzir o suficiente para satisfazer as necessidades de cada ser humano que nela habita. Isso é parte da boa criação de Deus que deve ser proclamada como a Boa-Nova. Devido às ações pecaminosas humanas e aos antagonismos em nosso mundo, nem todas as pessoas têm igual acesso ao que Deus em verdade providenciou. Guerras, opressão, corrupção, má administração, destruição ecológica, egoísmo, ganância e sistemas sociais, econômicos e políticos injustos resultam em acesso desigual, distribuição desequilibrada e vulnerabilidade injusta para uma parte da família humana. Por todo o mundo, indivíduos, organizações, governos e mesmo igrejas frequentemente têm agido de modo a participarem nas estruturas que apoiam aquelas pessoas que tiram vantagens da situação, tornando muitas outras pessoas vulneráveis mediante seu abuso do poder. Claramente, tais ações contribuem para a fome e a pobreza que tanto afetam o mundo, realidade da qual frequentemente é tão difícil de escapar. Assim, cremos que a pobreza resultante é uma injustiça que devemos nos empenhar em superar.
Engajamento com as pessoas pobres em nossas igrejas
43. Entendemos, como pessoas seguidoras de Jesus, que fomos chamadas a levar a Boa-Nova de Jesus Cristo ao mundo numa missão holística de palavra e ação. Assim como Jesus instruiu as primeiras pessoas que o seguiam a ir a Jerusalém e aguardar a vinda do Espírito Santo, assim confiamos que também nós, assim como aquelas pessoas seguidoras de Jesus na igreja primitiva, recebemos o Espírito e somos por ele equipadas a nos tornar testemunhas por todo o mundo (At 1.8). Servindo as pessoas pobres, as pessoas crentes compartilham Jesus Cristo com essas pessoas pobres e também encontram Cristo nelas, o que leva a uma transformação mútua (Mt 25.31-46).
44. Na origem de nossos dois movimentos, as pessoas pobres desempenharam um papel significativo. Já em suas famosas “95 Teses” (1517), Lutero deixou claro que estava profundamente preocupado com a exploração das pessoas pobres por certas práticas eclesiais.8 A Reforma expandiu-se e foi assumida sob condições da pobreza medieval tardia, e mesmo séculos mais tarde a FLM teve suas origens no processo de atenção às crises de pessoas refugiadas de duas guerras mundiais. Já o pentecostalismo se originou entre pessoas pobres com o cuidado ministerial de umas para com outras em lugares como a Índia, o Chile e os Estados Unidos. Tanto luteranos quanto pentecostais registraram tremendo crescimento no Sul global, uma área do mundo que experimenta de forma generalizada níveis mais altos de pobreza do que as demais regiões.
8 LUTERO, Martinho. Debate para o esclarecimento do valor das indulgências (95 Teses), # 43-45. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1987. v. 1, p. 26.
45. Nossas comunidades estiveram sempre preocupadas em servir as pessoas em necessidade e em mostrar solidariedade para com as pessoas pobres e oprimidas. Por exemplo, em muitos países, missões luteranas e pentecostais têm estado ativas entre as pessoas mais destituídas, como os dalits na Índia, o que levou à formação de muitas igrejas. Nossas igrejas estabeleceram e também cooperam com muitas diferentes instituições que proporcionam ajuda humanitária, desde acampamentos para pessoas refugiadas até o trabalho de socorro em desastres e projetos de desenvolvimento, incluindo o Comboio da Esperança (Convoy of Hope) e o Serviço Mundial da FLM.
46. Empenhando-nos em sermos fiéis ao nosso chamamento, ensinamos a profundidade da generosidade de Deus, bem como a necessidade de confiar nas promessas e provisões de Deus. Mesmo quando pentecostais tenham ascendido social e economicamente, permaneceram cônscios das necessidades das pessoas pobres, e por isso frequentemente não falam apenas acerca das necessidades espirituais de outras pessoas, mas também de suas necessidades materiais. Refletem acerca da importância da mordomia e a enfatizam, dando dízimos, ofertas e outros dons sacrificais a serem usados para atender as necessidades de outras Pentecostais frequentemente enfatizam a promessa de fidelidade de Deus em atender as necessidades daquelas pessoas que colocam nele sua confiança (Pv 28.25). Tipicamente encaram essa promessa, contudo, em termos de um sentido de bem-estar, de shalom, plenitude e intencionalidade na vida. Esse modo de encarar seus dons os capacita a se regozijar quando esses dons produzem frutos de salvação em outras pessoas. Historicamente, em resposta à graciosidade de Deus, luteranos têm compartilhado generosamente a partir de seus recursos para auxiliar pessoas em necessidade. Luteranos, igualmente, enfatizam a importância da mordomia e de doações a serem usadas para atender necessidades de outras pessoas. Respondem individual e comunitariamente ao convite de Deus para participar na construção de sociedades justas e seguras para todas as pessoas, por meio da defesa solidária, da educação e de projetos diaconais variados.
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Estudos de caso da missão com pessoas pobres
Quando Lutero escreveu à nobreza alemã em 1520 enfatizando sua responsabilidade como autoridades “seculares”, contudo sempre agindo diante de Deus para servir o povo, ele também apresentou uma lista abrangente de reformas sociais e econômicas.9 Entre outras coisas, Lutero advogou em favor de amplos programas educacionais para meninos e meninas, sendo que para meninas era algo altamente incomum em seu tempo. Ele também apoiou a criação de caixas comuns com fundos públicos para atender as necessidades das pessoas pobres, viúvas, idosas e enfermas. Ao longo de sua trajetória, Lutero mais de uma vez voltou a abordar essas reformas, além de adicionalmente criticar com veemência autoridades que agiam apenas no interesse próprio ou asseguravam privilégios pessoais para si mesmas.
9 LUTERO, Martinho. À nobreza cristã da Nação Alemã, acerca da melhoria do estamento cristão. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1989. v. 2, p. 279-340.
Um exemplo luterano contemporâneo de serviço holístico é o trabalho diaconal em expansão na Igreja de St. Clare, em Estocolmo, Suécia. Com início nos primeiros anos da década de 1990, a partir de então essa igreja criou uma forte rede de pessoas, companhias privadas e instituições públicas, mobilizando recursos para enfrentar a pobreza urbana. Centenas de pessoas, incluindo aquelas em busca de asilo, recebem diariamente comida e abrigo, vestimenta, aconselhamento pastoral e orientação jurídica. Nos fins de semana, equipes de clérigos e pessoas leigas dão assistência a pessoas de rua sofrendo de alcoolismo, abuso de drogas e prostituição. O culto dominical preserva a ordem litúrgica luterana tradicional combinada com muitos elementos carismáticos. A proclamação em palavra e em ação ocorre de mãos dadas uma com a outra.
Solidariedade na proclamação e no serviço pode levar a uma identificação com as condições de vida de pessoas pobres. Como um exemplo podemos mencionar o casal Roberto Zwetsch e Lori Altmann, missionários luteranos brasileiros entre uma população indígena na região amazônica no estado do Acre, no noroeste do Brasil. Nos anos 1980, decidiram viver junto com o povo indígena Kulina-Madihá em aldeia localizada a sete dias de barco rio acima da localidade urbana mais próxima. Quando o casal estava esperando seu segundo filho, confrontou-se com o difícil dilema de decidir onde realizar o parto. Deveria deixar a comunidade indígena, ir a uma cidade, dar entrada num hospital e posteriormente retornar para viver com os indígenas? Chegaram à conclusão de que se fizessem isso, poderiam perder a confiança do povo indígena. Assim, decidiram permanecer. E lá, sem hospital, pessoal médico e de enfermagem, nem mesmo um leito, mas circundada pelo cuidado, amor e conhecimento natural das mulheres indígenas, Lori deu à luz, em segurança, sua segunda criança, um menino, que então recebeu um nome indígena: Binô Mauirá. Mais tarde, Lori escreveu que jamais trocaria essa experiência profundamente humana pela assistência técnica que tinha tido ao dar à luz sua primeira filha, Pamalomid, um nome único dado pelo povo indígena Paíter-Suruí, no estado de Rondônia, também na região amazônica.10
10 ALTMANN, Lori; ZWETSCH, Roberto. Paíter: o povo Suruí e o compromisso missionário. Caderno do Povo-PU, Chapecó, 1980. Também: ZWETSCH, Roberto. Partejando a esperança. Porantim, Brasília, v. VII, n. 65/66, jul./ago. 1984. p. 17.
Um exemplo do ministério pentecostal junto a pessoas marginalizadas, já de seus primórdios, foi o de Lillian Trasher (1887-1955), que em 1912 fundou um orfanato no Egito e se tornou conhecida como a “Mãe do Nilo”. Mais tarde ela também ajudou a estabelecer um lar para viúvas e um lugar para pessoas cegas. Seu trabalho, apoiado financeiramente pelas Assembleias de Deus, mais tarde obteve apoio também de igrejas presbiterianas, bem como de outras organizações cristãs, humanitárias e governamentais.11 O engajamento cívico pentecostal tem sido reconhecido crescentemente como sendo um empoderamento da vida de pessoas pobres. Por exemplo, uma comunidade de rua ocupou uma pedreira nos limites da cidade de Baguio, Filipinas, porque a atividade agrícola já não proporcionava o sustento de suas famílias. Essas pessoas esperavam então alcançar seu sustento catando lixo ou fazendo faxinas em casas. Uma igreja pentecostal sob a liderança do pastor Joel Tejedo auxiliou esses ocupantes com um projeto de alimentação para as crianças. Capacitação para novas aptidões e emprego se seguiram. Como muitos dos casais que já tinham filhos eram pobres demais para realizar uma cerimônia de casamento, a igreja organizou um casamento para 12 casais. Isso deu a esses casais um status oficial e aumentou seu sentimento de autoestima. Para essas pessoas a igreja também se tornou um lugar para encontrar emprego.12
11 Disponível em: <https://www.handsalongthenile.org/causes/lillian-trasher-orphanage-assiut/>.
12 TEJEDO, Joel A. Doing Pentecostal Civic Engagement in the Squatter Area of Lower Rock Quarry, Baguio City, Philippines. International Review of Mission, v. 107, n. 1, p. 159-178, 2018.
De modo semelhante, um pastor pentecostal no Peru organizou um programa que inclui uma cozinha popular, um consultório médico e programas educacionais em um dos distritos mais pobres de Lima. Em cooperação com médicos, ele criou programas gratuitos de cuidado da saúde, desenvolvidos na igreja. Durante a pandemia da COVID-19, ele transferiu a cozinha popular para fora, para prover refeições nutritivas, especialmente para crianças e para as pessoas mais necessitadas. Oficinas de trabalho e treinamento foram proporcionadas para os moradores sobre temas como nutrição, ecologia, feminismo e prevenção da anemia, entre outros. A motivação do pastor consiste em servir a comunidade assim como Jesus o faria, abordando necessidades espirituais, sociais e necessidades do corpo.
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Fraquezas e desafios
47. Conjuntamente criticamos e condenamos os abusos do conceito bíblico de prosperidade no ensino de certas igrejas neocarismáticas e independentes, e não desconhecidos mesmo em algumas igrejas pentecostais clássicas, luteranas e outras históricas.
48. O assim chamado “evangelho da prosperidade” tem suas raízes no século 19 nos movimentos americanos do “pensamento positivo” e apenas mais tarde foi assumido por certos líderes eclesiásticos cristãos. A ideia fundamental atrás dele é que tanto a expiação de Cristo quanto a fé da pessoa cristã funcionam como contratos legais, obrigando Deus a recompensar a pessoa crente com riqueza material e saúde física, em troca da fé e das doações sacrificiais efetuadas. Isso é baseado na noção de que na cruz Jesus superou toda e qualquer condição de pobreza, doença e morte, mas ignora-se o chamado de Jesus às pessoas crentes a carregar sua própria cruz (Mc 8.34-35) e a sofrer com ele e umas com as outras (Cl 1.24; 1Co 12.26). Esse ensinamento é enganoso e acaba sendo destrutivo quando pobreza e sofrimentos continuados são tomados como prova de uma fé inadequada. Ele é igualmente destrutivo quando convence as pessoas poderosas e bem-sucedidas que suas vantagens são devidas à sua própria fé sem mácula e quando ele confere licenciamento para que líderes eclesiásticos exijam doações de seus rebanhos com a falsa promessa de que isso levará à riqueza igualmente grande para quem fez as doações. Essa é uma resposta infiel a pessoas cristãs que lutam na pobreza, esperando por uma intervenção cheia de compaixão da parte de Deus, libertando-as de suas privações (Êx 33.19; Is 49.10).
49. Os pregadores do evangelho da prosperidade não são necessariamente motivados por ganância pessoal. Por vezes eles estão respondendo à extrema necessidade de sua comunidade e têm a esperança de, dessa forma, inspirar a autoconfiança que advém do conhecimento de algumas das promessas genuínas de prosperidade na Escritura. Esse ensinamento pode parecer atrativo para pessoas pobres, na medida em que promete um caminho de saída da miséria. Mas as consequências de longo alcance do ensinamento da prosperidade são tão destrutivas, tanto para indivíduos quanto para comunidades, que ele precisa ser combatido e substituído por uma melhor compreensão daquela prosperidade que Deus intenciona para todas as pessoas.
50. Conjuntamente reconhecemos em nossas próprias histórias e práticas certas tendências que podem ter levado a uma ruptura da solidariedade com as pessoas pobres, criando um vácuo preenchido por pregadores da prosperidade. Por exemplo, os pentecostais por vezes se tornam culpados de triunfalismo, emitindo promessas de uma vida vitoriosa que podem iludir pessoas crentes quanto ao que podem esperar nesta vida, bem como a uma hiperespiritualização da fé, levando a negligenciar preocupações deste mundo. Por seu turno, o compromisso luterano de seus primórdios de cuidar das pessoas pobres por vezes se transformou numa delegação dessa responsabilidade a agências caritativas ou ao Estado, descomprometendo indivíduos de um engajamento pessoal com as pessoas pobres e vulneráveis. Também tem havido ocasiões em que distinções por demais rígidas entre os “dois reinos” e uma compreensão equivocada da “justiça passiva” têm servido de escusa para a negligência em relação às pessoas em necessidade.
51. Em adição, conjuntamente reconhecemos que o exercício da autoridade governamental pode ser um modo eficiente de servir o povo em necessidade, mas ele também confere tentações pesadas para usar tal poder a fim de assegurar vantagens e privilégios injustos. Cremos que é importante para nossas igrejas admitir que por vezes nos tornamos apoiadores de regimes e sistemas injustos e até mesmo opressores, ou buscamos vantagens pessoais ou para nossas instituições eclesiais, em vez de para o bem comum. Somos recordados de que o próprio Jesus, antes de começar seu ministério público, teve que enfrentar a tentação do poder, mas resistiu rebatendo o diabo com as palavras: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele darás culto” (Mt 4.8).
Abordagens fiel e infiel da prosperidade
52. Conjuntamente recomendamos a todas as pessoas crentes cristãs um ensino fiel das dádivas da abundância de Deus, dadas de tal modo que a família humana inteira e a terra possam florescer. Deus deseja nos abençoar, mas isso é sempre uma livre dádiva divina, nunca uma matéria de obrigação ou coerção. Ademais, a promessa de Deus de bênção não exclui a possibilidade de doença, dureza econômica, perseguição, sofrimento e, por certo, morte, como está evidenciado na própria experiência de nosso Salvador.
53. Reconhecendo o falso ensinamento específico acerca da prosperidade, as Assembleias de Deus (para dar um exemplo) publicaram em 1980 o documento “The Believer and Positive Confession” (“O crente e a confissão positiva”), condenando promessas falsas associadas a esse ensinamento.13 Tanto pentecostais quanto luteranos têm manifestado aprovação de declarações cristãs ecumênicas contra ensinamento falso acerca da prosperidade, tal como o do Grupo de Trabalho Teológico de Lausanne: “Declaração quanto ao evangelho da properidade” (2009)14.
13 Disponível em: <https://ag.org/Beliefs/Position-Papers/the-believerand-positive-confession>. Espanhol: <https://ag.org/es-ES/Beliefs/ Position-Papers/The-Believer-and-Positive-Confession>.
14 Disponível em: <https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/declaracao-sobre-o-evangelho-da-prosperidade>.
54. A fim de auxiliar as pessoas cristãs a mover-se de ensinamentos falsos a verdadeiros acerca da prosperidade que Deus intenciona para nós, recomendamos as seguintes quatro questões, perguntando-nos acerca de qualquer promessa de prosperidade:
55. O que exatamente está sendo prometido e em qual base? Deus realmente promete tais coisas, ou o texto da Bíblia foi lido de modo seletivo e desonesto?
56. A que custo? Por exemplo, com o apelo a uma prosperidade prometida a terra estaria sendo explorada ou a vida cívica sendo corrompida?
57. À custa de quem? Uma pessoa crente ou comunidade está sendo erguida à custa de outra ou em desconsideração a ela?
58. Por qual motivo? Pregadores ou pessoas abastadas e saudáveis perseguem seu interesse próprio ou, ao contrário, o amor ao próximo é seu motivador supremo? Uma determinada organização ou ministério está sendo elevado em detrimento ou difamação de outros? Fomenta-se o proselitismo?
59. Encarando a questão positivamente, pessoas cristãs podem afirmar as riquezas que receberam em Cristo (Ef 2.5-8; Fp 4.19), o fato de que tenham sido incorporadas a uma comunidade cuidadora e de recursos apropriados no empenho para o progresso do Reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33; 2Co 9.9-11) e que sua nova vida em Cristo, com a assistência do Espírito Santo, as empodera a servir em favor do bem comum (Jo 13.12-17; Rm 12.6; 1Co 12.4-7), para a glória de Deus (Mt 5.16).
Conclusão
60. Regozijamo-nos que, apesar de nossas igrejas utilizarem terminologia e ênfases que por vezes diferem, somos de uma só mente em nosso compromisso de servir as pessoas pobres como seres humanos companheiros que são criados à imagem de Deus e merecedores de dignidade e respeito. Conjuntamente afirmamos um compromisso com uma compreensão holística da missão que inclui a proclamação da Boa-Nova a pessoas pobres acompanhada de inclusão em solidariedade das pessoas pobres, sempre mantendo em mente que Deus se tornou pobre em Jesus Cristo (Fp 2.5-11). Esforços não violentos para superar a pobreza e as causas que levam a ela são legítimos e valiosos, porque a Bíblia nos ensina a defender as pessoas pobres. Um tal engajamento contra o sofrimento de outras pessoas pode nos levar a situações que levem a nosso próprio sofrimento na luta para superar o sofrimento de outras pessoas. Isso pode ser entendido como uma experiência de carregar a cruz de Jesus Cristo, cônscios de que Jesus Cristo sofreu por nós, de modo que nós possamos receber a plenitude da vida
61. Ainda que rejeitemos uma teologia da prosperidade, que oferece falsas promessas e corre o risco de tornar Deus num objeto de nossos desejos, afirmamos, sim, uma promessa de Jesus de trazer vida em abundância para todas as pessoas. Quem é assim abençoado está chamado a ser uma bênção para outras pessoas e a trabalhar pela melhora de toda a sociedade, a superar injustiças e a cuidar de toda a criação de Deus.
PARTE IV: CURA E LIVRAMENTO
“…proclamar libertação aos cativos, e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos…”
Fundamentos bíblicos
62. Como já abordado em seções anteriores desta Declaração, conjuntamente olhamos para as Escrituras para moldar e guiar nosso ensinamento e nossa prática concernentes à cura e ao livramento do mal.
63. Como a Escritura atesta, a intenção de Deus para sua boa criação sempre tem sido a plenitude e o florescimento. Mesmo após a confiança ter sido quebrada pelo pecado humano, Deus tem cuidado da terra e das pessoas criadas à sua imagem. Deus tem abençoado as pessoas enfermas, as que sofrem e aquelas afligidas por espíritos malignos com cura física, cura espiritual e reconciliação comunitária. Cura e livramento não têm sido restringidos ao povo de Deus, mas têm sido estendidos às pessoas de “fora”, como Naamã, o sírio (2Rs 5.1-27) e a mulher siro-fenícia (Mc 7.24-30).
64. O ministério de Jesus Cristo foi especialmente peculiar por sua ênfase em cura e livramento, além de alimentar, ensinar e proclamar o Reino de Deus. Ele comissionou seus discípulos a fazer o mesmo. Por todo o livro de Atos, os apóstolos curaram em nome de Jesus (por exemplo, At 3.1-10; 9.32-34; 14.8-10). Paulo identifica a cura como um dom espiritual (1Co 12.9). Tiago 5.13-15 recomenda a oração pelas pessoas enfermas e a unção delas.
65. Se bem que cura e livramento testemunhem a intenção boa e salvadora de Deus pelas pessoas já agora nesta vida, esses eventos ao mesmo tempo sempre apontam para o horizonte escatológico da cura final que ocorrerá na ressurreição dos mortos (Ap 22.1-3). A cura nesta vida não poupa ninguém da morte. A ausência de cura não é uma indicação de fé inadequada ou de que Deus não se importe.
Cura de doença
66. Embora oremos pelo fim da enfermidade física e a recuperação plena de quem é paciente, reconhecemos que cura é um conceito mais amplo. A cura abrange também dimensões espirituais e de relacionamento. Por vezes uma pessoa morre de uma doença ou suporta uma condição crônica, contudo, no processo, chega a uma confiança mais profunda em Deus, amando e recebendo amor de outras pessoas de um modo novo e profundo. É importante para a igreja e seus líderes guiarem as pessoas no processo de contar com a realidade de sua doença, enquanto sempre mantenham à frente de tudo a Boa-Nova de Jesus Cristo.
67. Ainda assim, há um perigo em interpretar a cura apenas no sentido espiritual, mais ainda em atribuir uma casualidade espiritual a todas as enfermidades. Jesus adverte agudamente contra aquelas pessoas que de modo simplista equacionam doença ou outro mal físico a uma punição por pecado (Jo 9; Lc 13.4). É igualmente desastroso rejeitar toda e qualquer intervenção médica porque afirmar a cura espiritual seria a única expressão apropriada da fé em Deus.
68. Já que a doença não é parte do reino projetado por Deus, Cristo deu à igreja diversos meios pelos quais a cura é concedida a pessoas feridas. Primeiramente, o batismo nos concede uma participação na morte e ressurreição do próprio Cristo (Rm 6.3-4) e nos lava na regeneração e na renovação do Espírito Santo (Tt 3.5). A oração é tanto demandada quanto exaltada em prol da cura de si mesmo e também de outras pessoas. O jejum é encorajado. Os fiéis impõem mãos sobre as pessoas enfermas e as ungem com óleo.
69. Entre nossas igrejas vemos ainda outros desenvolvimentos de ministérios da cura, com várias espécies de estruturas, incluindo grupos informais de oração e redes de oração, clínicas e hospitais dirigidos por igrejas, e ministros treinados em cura e cuidado pastoral, tanto pessoas leigas quanto ordenadas.
70. Nenhuma enfermidade ou lesão é por demais suave ou por demais severa para deixarmos de pedir pela intervenção de Deus. Agradecemos a Deus por todas as espécies de cura, assim como ficamos contristados quando a cura não é concedida. Confiamos que Deus pode proporcionar cura quando todos os meios humanos tenham sido exauridos e reconhecemos que Deus em sua soberania, ao fim, leva todas as pessoas doentes e que sofrem para seu cuidado quando falecem. Advertimos contra extremismos: de um lado, negando qualquer outro meio de cura a não ser o empregado pelo conhecimento científico e, de outro lado, negando qualquer outro meio de cura a não ser o miraculoso.
71. Todas as orações e intervenções por cura se dão à base da fé na bondade de Deus, nosso Criador, que deseja que todas as suas criaturas vivam com ele eternamente. No entanto, a fé em si não é a causa da cura e jamais deveria ser utilizada como uma arma contra Deus ou como uma garantia para as pessoas que creem. Temos visto pessoas se desapontarem e perderem a fé após lhes ter sido falsamente prometida uma cura que não veio a ocorrer. Deus deseja a cura e a integridade de seu povo. No entanto, ainda estamos sujeitos ao pecado, ao mal, à corrupção, à doença, à vulnerabilidade e à mortalidade, enquanto aguardamos a chegada do Reino de Deus em plenitude. Quando o livramento não é concedido, devemos voltar-nos ao sofrimento de Cristo na cruz e a seu chamamento para as pessoas que o seguem a que assumam sobre si sua própria cruz. Também recordamos o exemplo de Paulo, quando o espinho em sua carne não foi removido, mesmo após as orações mais intensas (2Co 12.7-9). O sofrimento persiste nesta vida e, por vezes, em vez de sermos dele poupados, é solicitado de nós suportá-lo. Fazemo-lo em fé e esperança pela restauração final.
Comentário de parte pentecostal
72. Em geral, os pentecostais creem que todos os dons espirituais, incluindo os dons assim chamados de miraculosos ou sobrenaturais, são conferidos pelo Espírito Santo como um meio poderoso de evangelismo e que eles continuam a operar no interior da igreja no tempo presente. Entre esses dons está incluído o dom da cura, que se correlaciona com a cristologia pentecostal, aclamando Jesus como Sanador. Cura divina está incluída na obra de expiação de Deus, cura é parte da própria salvação. Os pentecostais creem que cura miraculosa por Deus, que é obtida por meio de servidores de Deus pelo poder do Espírito Santo, pode levar muitas pessoas à fé no Senhor.
73. Alguns pentecostais deduziram que se uma pessoa cristã pudesse tão somente gerar suficiente fé, a cura invariavelmente haveria de ocorrer. No entanto, os pentecostais clássicos corretamente equilibram isso com outros temas que perpassam o Novo Testamento. Por exemplo, por vezes um milagre ocorre onde há pouca fé ou fé nenhuma, precisamente a fim de suscitar a fé em Jesus como o Filho de Deus (Mt 8.26). Frequentemente a fé também foi enunciada como o resultado, em vez da pré-condição, do poder sanador de Jesus (Mt 9.18-22; 15.31). Ainda que os evangelhos apontem para o fato de que Jesus em sua cidade “não fez ali muitos milagres” (Mt 13.58; Mc 6.5), por causa da falta de fé, em nenhuma passagem o fracasso de qualquer pessoa em obter a cura é atribuído à falta de fé de parte da pessoa enferma. Isso significa que, embora seja essencial para nós termos fé em Deus e sua capacidade de curar, a cura é tão somente uma vontade soberana de Deus.
Comentário de parte luterana
74. A cura como tal de forma alguma constituiu o centro da Reforma luterana. No entanto, encontramos, sim, exemplos de oração por cura e de agradecimento quando ela é conferida. Lutero recomendou às pessoas crentes: “Deus quer que lhe dirijamos petições também por tudo o que nos afeta corporalmente”.15 Ele orou pela restauração da saúde de amigos próximos a ele e autorizou a que a santa comunhão fosse oferecida para cura do corpo e da alma. Ao mesmo tempo, ele suportou a profunda dor da morte de dois de seus filhos, cujas vidas não foram poupadas, apesar das orações dele próprio e de sua esposa Catarina.
15 LUTERO, Martinho. O Pai-nosso. Catecismo Maior. In: Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2021. p. 491.
75. Luteranos recorrem ao modelo lei – evangelho quando abordam a questão da cura. Como Lutero escreveu no Catecismo Maior, “orar é algo que nos é ordenado com severidade e seriedade, tão enfaticamente quanto os demais mandamentos“, e por isso deveríamos orar fiel e ardentemente por cura.16 Ao mesmo tempo, a promessa do Evangelho de termos comunhão com Deus, agora e na vida eterna após, não é o mesmo do que uma promessa de cura perfeita nesta vida. Crer na promessa do Evangelho significa rejeitar todas as promessas falsas, incluindo aquelas que garantam cura a quem é “verdadeiramente” fiel, assim sugerindo que aquelas pessoas que não são curadas não creem adequadamente.
16 LUTERO, 2021, p. 475.
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Estudos de caso de cura e livramento
Os luteranos recordam o exemplo de Johann Christoph Blumhardt (1805-1880), um pastor alemão e defensor da missão global e do reavivamento espiritual. Blumhardt foi confrontado em sua congregação rural na Suábia com uma jovem mulher, profundamente perturbada e sofredora, chamada Gottliebin Dittus. Depois de um ano e meio de oração persistente e exortação por parte de Blumhardt e de outros líderes da congregação, Gottliebin foi resgatada de sua aflição. A notícia se espalhou pela congregação, levando a um reavivamento espiritual e muito logo a igreja de Blumhardt se tornou um centro espontâneo de ministério de cura. Após certo tempo ele se transferiu com sua família a uma propriedade abandonada, a fim de acomodar as setecentas ou mais pessoas que acorriam a cada ano. A palavra de ordem central de Blumhardt era: “Jesus é vencedor”. Ele reconheceu e recomendou o poder da oração, a necessidade do arrependimento e a aceitação da morte quando a cura não era concedida. Ele entendia os milagres como sendo eventos ordinários, não extraordinários, a intervenção regular de Deus nas vidas de seu povo. Mas todas as curas e milagres eram, em última instância, sinais da vinda do Reino de Deus e convites a depositar toda a confiança, em vida e morte, em Deus somente.
Os pentecostais recordam duas mulheres que influenciaram a prática pentecostal de cura nos primórdios do século 20, Maria Beulah Woodworth-Etter e Aimee Semple McPherson, ambas na América do Norte. Um grande número de igrejas pentecostais endossou seus ministérios de cura. Ambas realizavam reuniões de massa e pregavam o Evangelho no poder do Espírito Santo, impondo mãos sobre pessoas e orando por elas. Os sinais e milagres que acompanhavam essas reuniões constituíram um apelo que ultrapassou linhas denominacionais e ambas as evangelistas desenvolveram seu ministério ecumenicamente. O ministério evangelístico e de cura de Woodworth-Etter foi uma continuação direta do reavivamento de santificação do século 19. Ela realizou reuniões de massa ainda antes do surgimento do movimento pentecostal, mas se juntou a ele em 1912 e se tornou uma das principais forças na difusão da mensagem pentecostal. Cartazes fazendo propaganda de suas reuniões diziam: “Jesus cura!” e “Salvação para a alma, cura para o corpo”. Quanto a McPherson, ela proclamava em seus vivos sermões que Jesus é Salvador, Sanador, Batizador no Espírito e o Rei-a-Vir-em-Breve. Ela foi uma escritora prolífica e comunicadora que contribuiu para consolidar a ênfase pentecostal na salvação e na cura.
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Livramento do mal
76. Na oração do Pai-Nosso, pedimos a nosso Pai celestial que nos livre do mal. Por mal entendemos os “principados e poderes” (Rm 8.38-39; Ef 6.12) que trituram e extinguem a humanidade, quebram a confiança em Deus e tornam impossível o amor entre as pessoas. O mal não é algo com que pudéssemos negociar; só podemos ser resgatados dele. O pecado e a opressão prestam serviço ao maligno, mas não são idênticos a ele.
77. Uma das tarefas da igreja e dos fiéis cristãos é discernir os espíritos, identificando aquelas pessoas que são más ou impuras (1Co 12.10; 1Jo 4.1-6). Já que as pessoas crentes são e permanecem sendo pessoas pecadoras, sujeitas à sedução do mal, essa é uma tarefa difícil e perigosa. Discernimento dos espíritos malignos precisa ser realizado de maneira comunitária e com constante oração pela orientação do Espírito Santo. Como parte do processo de discernimento, e o mesmo no caso de cura física, instamos ao uso responsável de instrumentos tais como a psicologia, a psiquiatria e a medicina para diagnosticar a condição da pessoa que passa por sofrimento, selecionando meios apropriados para a restauração. Também é inteiramente possível que a intervenção médica e o ministério de livramento venham a funcionar melhor quando forem efetuados em cooperação um com o outro
78. Nem toda experiência do mal é possessão por espíritos malignos. Pessoas, tanto crentes quanto não crentes, podem estar afligidas pelo mal sem consentir com ele. Uma das tarefas do ministério apostólico é interceder por livramento dessa espécie de aflição. Em muitas regiões do mundo, tal intercessão tem sido uma faceta importante da expansão evangélica.
79. É essencial para a igreja crer e agir com convicção de que a batalha, ao final, não é dela, mas de Deus somente. A vitória de Cristo não é uma escusa para uma vida autoindulgente, mas a ação muito presente do Cristo crucificado e ressurreto agora, em nosso mundo, para nossa salvação. A tradição cristã tem testemunhado esse poder numa variedade de maneiras, desde a palavra de ordem “Cristo é vencedor” e da expiação até hinos cantando o “poder no sangue”.
80. A igreja, portanto, empenha-se em servir a Deus livrando do mal as pessoas afligidas. Isso ocorre por meio da proclamação e pregação, do Batismo e da Ceia do Senhor, de oração e imposição de mãos, e por meio de ministérios tendo como alvo especificamente eventos de livramento do mal.
81. A Escritura exorta as pessoas crentes a estarem alertas contra o mal, para que resistam ao diabo, arrependam-se do pecado, obedeçam a Deus, orem e deem testemunho da salvação oferecida por Jesus Cristo. “Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar” (1Pe 5.8).
82. No entanto, o mal nunca deve ser usado como uma escusa para a pecaminosidade humana. Não há lugar na igreja para uma defesa do tipo “o diabo me obrigou a fazê-lo”. Pessoas crentes sempre assumem a responsabilidade por seus pecados, os confessam e se arrependem, e reparam tanto quanto possam qualquer prejuízo que tenham causado.
83. Semelhantemente, líderes da igreja não têm permissão para explorar a noção de “guerra espiritual” para seus próprios propósitos pessoais, financeiros ou ideológicos. Encorajamos fortes práticas de discernimento comunitário e corresponsabilização mútua antes de que se ponha em execução qualquer prática de livramento.
Comentário de parte pentecostal
84. Desde seus primeiros dias, devido à sua abordagem holística da salvação em Cristo, pentecostais prestaram atenção à realidade da influência de Satanás, da opressão demoníaca e dos poderes do mal. Em consequência, eles incluíram práticas de lidar com tais poderes, por meio de libertação, cursos de livramento, exorcismo e guerra espiritual, enquanto a maioria das igrejas protestantes estiveram nesse tempo menos inclinadas a assim fazer. Os pentecostais entenderam isso como uma correção necessária à omissão de tais ministérios nessas igrejas, embora isso tenha causado seus próprios problemas, como associar todo e qualquer mal a um demônio correspondente, interpretações irresponsáveis de passagens bíblicas suscitando especulação selvagem, e tirando a responsabilidade humana pelo mal. Não é uma teologia de medo que deve dominar a visão cristã acerca da realidade do mal, mas antes a certeza de que Cristo superou todo mal na cruz e que filhos e filhas de Deus podem, em confiança, clamar pelo Espírito Santo, para lhes trazer paz e o poder de desafiar o mal em nome de Jesus.
85. Em relação à presença do mal no mundo, os pentecostais proclamam uma teologia da vitória em Jesus (1Co 15.17; 2Co 2.14). Ao mesmo tempo, no entanto, há também uma ênfase bíblica no sofrimento pela causa de Cristo (Fp 1.29; 3.10; Rm 8.17; 1Pe 4.19). Eles frequentemente apontam para a exortação de que as pessoas cristãs são chamadas a vestir toda armadura de Deus (Ef 6.10-18) a fim de resistir ao mal.
Comentário de parte luterana
86. A percepção de Lutero da presença predatória do diabo é bem conhecida e expressada por luteranos em todo o mundo quando cantam “Castelo forte é nosso Deus”, juntando-se em batalha contra o Ainda que no hino a batalha seja dramática, Lutero também experimentou o sentido crônico e desmoralizante da Anfechtung ou angústia de estar sob um ataque espiritual. Nesse, como em todos os demais assuntos, ele constantemente remetia as pessoas crentes às promessas de Cristo: “As armas o Senhor nos dá: Espírito, verdade”. [Assim no hino em uma versão em português. No original: ”Pois o próprio Deus luta a nosso lado com as armas do Espírito”.]
87. Os luteranos também reconhecem, contudo, o lado obscuro de detectar o mal, ou seja, a tentação de demonizar seus próprios inimigos. Lutero, ele próprio, se tornou culpável disso, o que deve ser continuamente rejeitado. Falha na fé e demonização de outras pessoas vão de mãos dadas. O antídoto para a demonização de outras pessoas consiste em confiar mais plenamente em Deus e aprender a amar nossos inimigos, assim como Jesus nos ensinou e Deus fez (Mt 5.44; Rm 5.6).
88. Os luteranos têm abordado o ministério de livramento do mal de maneira muito diversificada em todo o mundo. Alguns têm ministérios de exorcismo bem desenvolvidos (veja-se o estudo de caso abaixo); alguns colocam em questão ou em dúvida a existência do mal sobrenatural ou mesmo o diabo, encarando todos esses esforços com suspeita. Aqui novamente encorajamos discernimento mútuo e comunitário e a disposição de aprender das práticas e críticas de uns e outros, tanto no interior da grei luterana quanto entre luteranos e outras tradições cristãs.
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Estudos de caso do ministério de livramento
Como uma das sessões de nosso diálogo teve lugar em Madagascar, os luteranos gostariam de mencionar particularmente o exemplo da Igreja Luterana Malagache (ILM). Desde sua fundação no final do século 19, a ILM experimentou quatro grandes movimentos de reavivamento, todos eles centrados em pregação, arrependimento e livramento do mal. A ILM desenvolveu um ofício ministerial chamado de mpiandry, ou “pastores de ovelhas”, pessoas leigas que recebem capacitação da parte de um ministro pastor ordenado, durante dois anos, para assumirem o ministério de livramento do mal. Muitas delas usam uma veste distintiva durante sua obra ministerial. Inserido numa ordem litúrgica luterana tradicional, há espaço para o mpiandry citar a Escritura que exorta as pessoas seguidoras de Cristo a resgatar as pessoas afligidas de seu cativeiro. Essas pessoas ministras leigas então se movem pelo espaço cultual, exorcizando demônios e orando especificamente por todas as pessoas que peçam por isso. Frequentemente as pessoas que buscam isso recebem a oportunidade de testificar a obra de cura e de libertação de Deus em suas vidas. Entre os “pastores e pastoras de ovelhas” mais conhecidos da ILM estava a profetiza Nenilava (1918-1998). Durante toda a sua vida ela pregou por todas as partes de Madagascar, convocando pessoas ao arrependimento, curando-as e resgatando-as das garras dos espíritos malignos. Todos os movimentos de reavivamento e seus mpiandry levaram a um extraordinário crescimento da ILM. Outras igrejas cristãs recorreram a ela para aprender o ministério de livramento, o que contribuiu em muito para fomentar relações ecumênicas positivas.
Os pentecostais oram pelas pessoas enfermas e afligidas durante seus cultos de adoração regulares, se há uma necessidade ou solicitação nesse sentido. Nesses casos, as pessoas enfermas são frequentemente convidadas a vir à frente. Pastores e anciãos as ungem com óleo, lhes impõem as mãos e oram por elas. Algumas igrejas pentecostais criaram centros de oração onde pessoas enfermas ou espiritualmente oprimidas vêm para permanecer um período de tempo mais longo. Cultos especiais por livramento e cura são conduzidos com o apoio de equipes de livramento e de combatentes da oração. A Igreja de Pentecostes, com sua sede em Gana, embora não promovendo ativamente tais centros de oração, aceitou alguns que foram iniciados por indivíduos. O Conselho Executivo da Igreja de Pentecostes organiza anualmente sessões especiais de treinamento para líderes de tais centros de oração.
Conclusão
89. Encorajamos uns aos outros e nossas igrejas a continuar orando pelas pessoas enfermas, sofredoras e afligidas. Encorajamos uns aos outros a buscar todas as vias santas para cura e plenitude, desde o corpóreo e pessoal até o comunitário e institucional. Quando a cura é proporcionada, demos graças e reconheçamos o sinal do Reino de Deus em nosso meio. Quando a cura é retida ou uma vida é perdida, recomendemos a pessoa a Deus e nos entreguemos de forma renovada à sua sabedoria e bondade soberanas. Quando encontramos a opressão do mal, voltemo-nos a Deus em oração fervorosa, implorando por “Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8.38-39).
PARTE V: OLHANDO PARA O FUTURO
Aprendizado mútuo
90. Conjuntamente percorremos uma jornada de mútuo aprendizado. Ao longo dos anos de nosso diálogo, dedicamos tempo a estudantes e docentes em seminários teológicos, como o Seminário Teológico para a Ásia e o Pacífico nas Filipinas e com pastores e paroquianos em igrejas e outras instituições religiosas. Pusemos de lado compreensões equivocadas e descobrimos uma proximidade em teologia, oração e missão. Essa descoberta ampliou-se continuadamente e se aprofundou à medida que nos engajávamos em nossa fé na Escritura e na cruz e ressurreição de Cristo. Carregamos as cargas uns dos outros e como pessoas discípulas de Jesus, em serviço, nos voltamos para o mundo.
91. Ao longo do processo, fomos aproximando-nos uns dos outros em adoração, a qual experimentamos numa diversidade de modos, mas em todos eles dando glória a Deus, celebrando a redenção encontrada em Cristo, instando o Espírito Santo a estar conosco, a nos orientar e empoderar à medida que saímos ao mundo em serviço e missão. A adoração tem sido transformadora para nosso trabalho conjunto e para a construção de nossa comunidade de diálogo ao longo dos anos passados.
92. Esse processo foi marcado por questões suscitadas para maior esclarecimento, e dando atenção ao Espírito e uns aos outros, com o propósito de, por fim, fortalecer os pontos em comum já presentes, mas talvez nem sempre Nós nos demos conta de que tínhamos ênfases e práticas diferentes, mas o que temos em comum é muito maior, como esta Declaração tem demonstrado abundantemente.
93. Construindo sobre o que discutimos mediante estudos bíblicos e exposições teológicas, nossa metodologia incluiu engajamento com os contextos nos quais nos reunimos, levando-nos aos estudos de caso detalhados em páginas anteriores. Visitando pessoas pobres no Chile e participando de culto de livramento em Madagascar, viemos a perceber quão similares nossa espiritualidade e missão são em muitos sentidos. Essa percepção nos compele a agir em conjunto, de modo que o mundo possa conhecer Deus (Jo 17.23).
94. Ambos testemunhamos num mundo que é ele próprio caracterizado por polarização e pluralismo. Somos frequentemente confrontados com os mesmos desafios. Quando nos reunimos em Wittenberg, discutimos o impacto do secularismo em ambas nossas igrejas. Em várias ocasiões discutimos a necessidade de discernir o uso do poder e a prevalência da injustiça num mundo caído.
95. Este documento, finalizado no Seminário Teológico Fuller, nos Estados Unidos, foi escrito a partir da experiência de comunhão fraterna no Espírito Santo (2Co 13.13), uma comunhão que está profundamente arraigada em ambas nossas igrejas, ainda que de maneira diversa. Teologicamente, entendemos a obra do Espírito como uma obra de contínua criação, reconciliação e renovação. Humildemente damo-nos conta de que é Deus quem chama nossas igrejas à mesma missão (missio Dei).
96. Essa comunhão em Cristo está viva e tem o potencial de crescer em muitos contextos em que vivem luteranos e pentecostais e se encontram uns com os outros. Comunhão eclesial local e regional pode abrir ricas oportunidades para explorar nossas raízes teológicas comuns, nossas formas diversas de adoração e nosso chamado compartilhado vindo de Deus para sermos uma luz para o mundo.
27 de setembro de 2022
Pasadena, Califórnia, Estados Unidos da América
Tradução do documento: Pastor Dr. Walter Altmann