Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Deuteronômio 18-15-20
Leituras: Marcos 1.21-28 e 1 Coríntios 8.1-13
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 01 de fevereiro de 2009
1. Introdução
Liturgicamente, a comunidade encontra-se no último domingo após a Epifania. Passaram-se os domingos e os dias em que Jesus foi sendo “reconhecido” em sua messianidade. Ele entrou em contato com João Batista (Mc 1.4-11), Felipe e Natanael (Jo 1.43-51) e com os pescadores Simão, Tiago e João (Mc 1.14-20). Neste quarto domingo da Epifania, Jesus encontra-se com o endemoninhado de Cafarnaum (Mc 1.21-28).
Em todos esses encontros, Jesus vai sendo “reconhecido” como o Messias de Deus. Recebe o batismo, faz discípulos e fascina ouvintes com suas falas. O evangelista afirma que ele ensina as pessoas com “poder” ou “autoridade” (em grego: exousia). Com isso se reconhece, claro, e afirma-se doutrinariamente um traço distintivo desse Jesus de Nazaré e já se aponta para o caráter excepcional desse mestre itinerante.
Com essa indicação, porém, também se procura fazer uma delimitação em relação a outros “ensinadores” da época, especialmente os escribas e fariseus. Esses são formadores de opinião e educadores na fé em meio ao povo hebreu ou judeu da época. Como fiéis observantes da Torá e dos demais escritos sagrados do cânone hebraico, fariseus e escribas interpretam fundamentalmente textos dessa tradição canônica. No processo de interpretação, deduzem novos ensinamentos, cotejados sempre a partir do conjunto de textos entendidos como “Escrituras”. Nesse sentido, famosa é a decisão do chamado prosbol de Hilel, em que o sábio fariseu suprime o ano sabático para efeito de pagamento de dívidas.
Jesus também está nessa tradição interpretativa. Com razão deveríamos inseri-lo no seio ou nas imediações de algum dos movimentos ou tendências dos fariseus (Miranda; Malca, 2001). Tanto os fariseus como Jesus tratavam de discernir de forma nova, na incessante perscrutação das palavras antigas, a palavra de Deus para seu momento. Jesus, porém, é afirmado como aquele que se destaca; ele tem “autoridade”, fala com exousia. Com isso, claro, consoante à tradição, reconhecemos a dimensão divina de Jesus. Lembramos, contudo, que os evangelhos são justamente o meio literário para promover a ideia da messianidade e do caráter autônomo de Jesus enquanto fonte de discernimento e revelação da palavra de Deus. Nesse sentido, a afirmação sobre a exousia de Jesus constitui elemento doutrinário do Novo Testamento.
Com essas indicações, o evangelista situa Jesus na tradição profética. Afinal, profeta é especialmente aquela pessoa ou personagem que recebe, deduz, codifica e transmite a mensagem divina às pessoas ou que, diante de novos desafios, interpreta sua tradição sagrada com novos ensinamentos. Nesse caso, trata-se de um processo de releitura. Em Jesus confluem, nesse sentido, diversas tradições: ele é profeta, legislador e messias.
No texto de leitura do evangelho, Marcos 1.21-28, Jesus “encarna” essas funções. Ele, porém, abarca também a dimensão do poder sobre os espíritos imundos ou sobre os “ídolos”, para falar na linguagem do trecho da carta de Paulo aos Coríntios, previsto como leitura para este domingo. Diante do poder de Jesus, os ídolos ou os espíritos imundos nada são ou, diferentemente, eles são funcionais ao poder de Jesus; são subservientes a ele. Espíritos imundos são também “intérpretes privilegiados” da messianidade de Jesus. Talvez aí se possa vislumbrar a dimensão da ação de Deus na fraqueza, considerando doença ou “estar possesso” como forma de fraqueza humana. Nessa condição de fraqueza se dá o reconhecimento de que esse Jesus é o enviado de Deus.
2. Exegese de Deuteronômio 18.15-20
Deuteronômio 18.15-20 está previsto como base para a prédica. Seria bom, portanto, mantê-lo como tal, embora, geralmente, haja sempre a tentação de utilizar o texto do evangelho como base para a alocução homilética. De qualquer forma, haverá de ser assim que, em geral, a pregação vai ressaltar que Jesus de Nazaré é “o” profeta que haveria de vir do meio do povo, conforme se afirma em Deuteronômio 18.15. Com isso se está profundamente enraizado na tradição do anúncio da messianidade e da divindade de Jesus de Nazaré.
Cabe ter presente que o livro de Deuteronômio é apresentado como uma espécie de reprise das leis “reveladas” no monte Sinai e sistematizadas dentro da chamada “perícope do Sinai” (Êx 19.1 até Nm 10.10). Assim, o Deuteronômio tem a forma de discursos de Moisés para o povo. Nisso há uma diferença em relação à perícope do Sinai, na qual as leis e as normas são formalmente apresentadas como revelação do Senhor para Moisés e desse para o povo. Somente as Dez Palavras (Êx 20.2-17) estão na forma de fala direta de Deus ao povo. No geral, perpassa a ideia de um mediador, no caso Moisés.
Esse mediador é chamado de “profeta”. No final do Deuteronômio encontra-se a afirmação de que “nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, com quem o Senhor houvesse tratado face a face” (Dt 34.10). Essa nota no final do capítulo 34 não somente encerra o livro de Deuteronômio, mas conclui e remete para o todo da Torá ou Pentateuco. É apontamento redacional que busca situar a Torá como livro fundamental para a tradição do povo hebreu. As outras duas partes do cânone hebraico, a saber os Profetas e os Escritos, são, assim, situados sob a luz da Torá e de Moisés. O legislador e o intermediário profético estão, assim, condensados na figura de Moisés.
O livro de Deuteronômio é um dos livros angulares no conjunto canônico da Bíblia Hebraica. Os capítulos 12 a 26 formam uma espécie de núcleo da obra. Ali encontramos o que a pesquisa convencionou chamar de “código deuteronômico”. Trata-se, provavelmente, de um livro de leis compilado e sistematizado, com base em leis diversas e de épocas distintas (perfil diacrônico diferenciado), para organizar a vida social e religiosa de Judá numa fase de reorganização, na segunda metade do século VII a.C., depois que os assírios se retiraram da região após domínio político, econômico e social que durou quase dois séculos.
Nesse momento histórico, na segunda metade do século VII a.C., há em Judá um certo “vácuo de poder”, que é aproveitado pela população local, especialmente as elites, para promover um rearranjo nas relações do poder e também realizar reformas sociais e religiosas. Simbolicamente, nesse momento histórico, um menino de oito anos chamado Josias é colocado no trono, como símbolo amalgamador do poder monárquico davidida no Reino do Sul. Mais tarde, esse se tornará guerreiro venerável e também reformador social e religioso. Por trás ou junto com a figura de Josias, celebrado quase como um Davi redivivus, há provavelmente uma coalizão de forças sociais, composta por proprietários de terra livres, chamados de “povo da terra” (am ha-ares), por levitas e grupos leigos ou sapienciais, que buscam cada qual assegurar seu espaço na tessitura microfísica do poder naquele contexto. Também mulheres devem ter participado ativamente desse processo. Isso é simbolizado pela consulta à profetisa Hulda sobre a validade do documento supostamente encontrado em obras de reforma do templo de Jerusalém (2Rs 22.11-20) e se evidencia por certos “avanços” no direito das mulheres (cf. Dt 15.12-18) em relação a codificações anteriores (Êx 21.8-11). Na pesquisa, o código é entendido ou como expressão reguladora das relações sociais efetivas nesse período ou como projeção idealizadora das relações sociais nesse período ou para períodos posteriores. As leis estão sistematizadas pela estrutura típica de “aliança” (berit). Busca-se um ponto de aproximação entre interesses contrastantes na sociedade. O código abarca leis de vida e de morte.
Assim, em termos históricos, o núcleo de Deuteronômio é identificado como tendo sua origem no final do século VII a.C. O fato das leis deuteronômicas serem todas formuladas no tempo futuro tem a ver com a estrutura de todo o Pentateuco, no qual todas as leis são dadas ou entregues por Deus ao povo como dádiva antes da entrada na terra prometida. Convém ressaltar que esse código deuteronômico pressupõe um processo formativo mais longo. Há estudiosos que chegam a identificar até seis camadas ou estágios diferentes do Deuteronômio, o que em teoria é interessante, mas na prática nem sempre é perceptível ou exequível. De minha parte, em termos básicos, assumo a tese proposta por Frank Crüsemann (2002) de que o código deuteronômico constitui substancial retomada e reorganização do conjunto de leis mais antigo, identificado usualmente como “código da aliança” (Êx 20.22-23.19). Esse teria sido adaptado para as novas circunstâncias históricas, sociais e religiosas do povo judaíta no final do século VII a.C. Diante de novas demandas e numa nova constelação política e social, codifica-se pela segunda vez um conjunto de leis e normas, que abrange diversos âmbitos da vida social e religiosa. Esse conjunto de leis, ou “código”, provavelmente tinha o nome de torah, antes que esse termo passasse a designar toda a obra do Pentateuco (Crüsemann, 2002).
Dentro do código deuteronômico, o bloco de Deuteronômio 16.18-18.22 constitui algo como um “conjunto constitucional”. Nesse bloco estão regulamentadas as funções públicas consideradas mais relevantes sob a perspectiva do movimento deuteronômico do que a tradição: juízes (16.18-22), rei (17.14-20), sacerdotes e levitas (18.1-8) e profetas (18.9-22).
O texto de Deuteronômio 18.15-20 é um recorte desse bloco “constitucional”. Aqui se trata de normatizar o fenômeno da profecia sob a perspectiva deuteronômica, que norteia todo o conjunto. Quanto aos “profetas”, há três partes distintas, formando um conjunto.
a) os v. 9-14 buscam tabuizar determinadas formas mânticas ou “proféticas” que eram comuns na tradição cananéia e provavelmente também dentro de Israel. Assim se interditam os sacrifícios humanos, a adivinhação, práticas mágicas (feitiçaria e encantamento) e a consulta aos mortos;
b) v.15-20: afirmação do ofício de profeta e promessa de surgimento reiterado de profeta como Moisés;
c) v. 21-22: desenvolvem o critério para o reconhecimento do que seja verdadeira ou falsa profecia, que basicamente passará a ser o cumprimento da profecia.
Em Deuteronômio 18.15-20, afirma-se que o Senhor Deus suscitará um profeta “do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás” (v.15). Essa referência “semelhante a mim” já constitui uma releitura e um arranjo de tradições anteriores na história do povo hebreu. A figura típica de Moisés é tomada como referência. A emergência dessa figura “do meio de ti, de teus irmãos” situa o processo no seio da própria comunidade, nesse caso a comunidade judaica. Trata-se de um ato repetitivo, iterativo, no sentido de “sempre de novo”. O ofício desse profeta será “constitucional” ou “institucional” e terá continuidade na história. Não se trata de ato único. “Moisés” passa a ser uma instituição. Na tradição hebraica, sempre houve alguém para sentar na cadeira de Moisés. O presidente do Sinédrio, por exemplo, é afirmado e entendido como aquele que se assenta na cadeira de Moisés (Crüsemann, 2002).
Esse “profeta” que terá ofício institucional e reiterado é chamado, em Deuteronômio 18.15, de nabi. Na Bíblia e especialmente nos profetas, encontramos diferentes tipos de profetas, inclusive com designações distintas. Os termos “homem de Deus” (ish elohim) e “vidente” (roeh) são usados por vezes como sinônimos (1Sm 9.6.10), assim como também o termo “visionário” (hozeh). Todos juntos são entendidos, sobretudo a partir do séc. VI a.C., como “profetas” (nabi – Is 29,10). O termo nabi, embora seja designação genérica dos profetas hebraicos, parece ser mais indicativo daqueles profetas inseridos em corporações ou escolas proféticas (como Elias e Eliseu) ou ligados ao espaço do templo e da corte (p. ex. Natã). Por isso costumam ser designados como profetas “cúlticos” ou “institucionais”. Esses parecem ter constituído a matriz mais comum do fenômeno profético, e a esse viés institucional se faz referência aqui.
É sintomático que os colecionadores das palavras dos profetas “clássicos” (Amós, Isaías, Jeremias, Oséias, Miquéias, Sofonias etc.) do período pré-exílico (séc. VIII e VII a.C.) não utilizaram o termo nabi para designar os personagens que dão nome aos livros. A única exceção é constituída pelo livro de Habacuque (Hc 1.1; 3.1). Os profetas clássicos do século VIII e VII a.C. chegavam a negar explicitamente a designação de nabi (Am 7.14), ressaltando sua atividade como “carisma”, diretamente outorgado pela divindade. Isso se percebe especialmente nos relatos de vocação de alguns desses personagens proféticos (Is 6.1-8; Jr 1.4-10; Am 7.10-17). Tais relatos funcionam como comunicações de credenciamento e legitimação para a atuação dessas figuras carismáticas em meio à comunidade, sem o aval institucional e por vezes explicitamente contra as instituições. Com isso, esse tipo de profeta, que poderia sofrer represálias por causa dos conteúdos de suas mensagens de crítica ao poder estabelecido (Am 7.10-17; Jr 36), estaria devidamente resguardado como mediador entre Deus e o povo. O próprio Deus seria o garantidor de sua atividade e seu conteúdo. Os profetas cúlticos, por sua vez, já tinham sua legitimidade assegurada pela instituição na qual estavam inseridos.
A partir do século VIII a.C. desenvolve-se no antigo Israel uma polêmica sobre “verdadeira e falsa profecia”. Trata-se basicamente de uma discussão sobre o conteúdo das mensagens. Tradicionalmente, os profetas institucionais tendiam ao anúncio de mensagens positivas de graça para o próprio povo e de juízo para os outros povos ou nações. Com Amós, na metade do século VIII a.C., inicia-se uma nova tradição, na medida em que o juízo é direcionado também contra o próprio povo de Israel (Am 2.6-13; 5.18-20). Tal mudança de conteúdo acarreta um distanciamento crítico em relação ao centro de poder. Isso gerou, no fenômeno profético, dois tipos distintos de profecia no que tange ao conteúdo, havendo, porém, similaridade quanto à forma. Ambos se apresentavam como mediadores entre o Deus YHWH (Mq 3.4-7) e o povo, e é em nome da mesma divindade que acontecem as acusações mútuas. O caso mais conhecido é a disputa entre Jeremias e Hananias (Jr 28-29). Pela comunicação de mensagens distintas a partir da mesma matriz divina e através de formas similares resulta a necessidade de discernimento do que seja verdadeiro ou falso por parte da comunidade.
O código deuteronômico (Dt 12-26) do final do século VII a.C., além de proibir determinadas formas de profecia ou o acesso a conteúdos por rituais mânticos ou mágicos (Dt 18.10-14) e somente permitir a profecia indutiva especialmente na forma de ditos, estabelece também o critério do cumprimento temporal da mensagem anunciada. O não-cumprimento histórico implicará a falsidade da mensagem e a condenação do respectivo profeta. Isso provavelmente acarretou uma insistência na afixação por escrito das mensagens proféticas, como é exemplificado em Habacuque (Hc 2.1-4). O caráter de verdadeira ou falsa profecia depende da aplicação de critérios a posteriori, não se aplicando ao modo e à origem do fenômeno no momento originário do conteúdo ou do chamado “dito profético”. “Quando é a palavra de um contra a de outro, quando é duvidoso qual seja a verdadeira palavra de Deus, a regra diz que é necessário esperar, e não perseguir, proibir, acusar ou até condenar à morte” (Crüsemann, 2002, p. 337-8). O texto de Deuteronômio 18.15-20 também estabelece o personagem Moisés como a “representação ideal” do profeta, que assume com isso também as funções de legislador, sacerdote e hagiógrafo.
A destruição de Jerusalém em 586 a.C. e a consequente experiência do exílio constituíram o “gatilho histórico” para desencadear um processo intenso de coleção das palavras dos profetas críticos. Deve-se ter presente que vários dos profetas pré-exílicos foram anunciadores da destruição dos centros de poder de Israel como parte de uma ação purificadora de Deus em meio a seu povo. Já durante o processo, mas especialmente a partir da nova situação histórica da realização dos anúncios, palavras de profetas carismáticos pré-exílicos, guardadas na memória coletiva, passaram a ser avaliadas como verdadeiras, sendo gradualmente colecionadas rumo à formação de um cânone profético. Antes disso, porém, já havia processos mais circunscritos de coleção e fixação literária das mensagens proféticas, por vezes condensadas na forma de “panfletos”. Deve-se trabalhar com a hipótese de que em torno de alguns personagens proféticos havia grupos de suporte responsáveis pela transmissão dos respectivos conteúdos (Jr 26.1-19). Evidencia-se, assim, uma relação da voz profética com formas de organização social da época. Também mulheres exerciam o ofício de “profetisa” (nebiah – cf. Débora [Jz 4.4] e Hulda [2Rs 22.14; cf. 2Cr 34.22]).
Fenômeno típico no processo de transmissão das palavras proféticas são as releituras, isto é, o fato de palavras, ditos, coleções serem reinterpretados e até ampliados dentro de um novo contexto histórico. Nesse sentido, as palavras proféticas são marcadas por um dinamismo no processo de transmissão, o que termina com a fixação do cânone, mas continua em outro gênero de literatura interpretativa (p. ex. midraxes). A atividade de Jesus como profeta e legislador está situada nessa tradição.
3. Meditação
Com essa proposta do texto de Deuteronômio 18 passou a ser sancionado na cultura e religião de Israel um certo tipo de atividade profética. A referência direta a Deus enquanto fenômeno carismático continua a ser fundamental. Gradativamente, porém, passa a haver vinculação com textos considerados “sagrados” ou “canônicos”, principalmente da Torá, mas também dos profetas e dos escritos. Isso passará a ser um traço distintivo da tradição judaica de linha farisaica. Interpretar a Torá passa a ser o caminho fundamental para discernir a vontade de Deus.
O cristianismo continua essa tradição. O próprio Jesus é situado nessa linha. Jesus assume os papéis de profeta e legislador. Especialmente no Sermão do Monte, em Mateus, essa faceta de Jesus como legislador está bem explicitada. Ali se percebe claramente como Jesus se situa na tradição canônica de seu povo e como porta-voz carismático ou como intérprete deduz, codifica e anuncia novos conteúdos ou, no fundo, novas interpretações.
Afirmar doutrinariamente que Jesus é “o” profeta anunciado pelas Escrituras antigas, conforme o texto de Deuteronômio 18, torna Jesus amálgama de tradições distintas. Há uma centralização, uma condensação teológica. Há também um fechamento, uma “finalização” que pode funcionar como princípio dinâmico de constante revisão de tradições e doutrinas. Assim como na tradição do povo judeu sempre houve alguém a assentar-se na cadeira “institucional” de Moisés, também na tradição cristã há essa tendência. No mundo católico, claro, o papa assume tais funções. No mundo protestante ou evangélico, sempre há teólogos que, embora não explicitamente, na prática funcionam como fontes reguladoras. Até certas doutrinas derivam de tais interpretações teológicas. Há, pois, uma dinâmica. Nessa dinâmica, Jesus como amálgama de profeta, messias, legislador e hagiógrafo funciona como elemento crítico e como critério. Tudo o que se disse e se diz deve e pode ser revisto criticamente a partir do próprio Jesus.
Na pregação, considero importante fazer alusão a essa dinâmica. Claro, Jesus é para nós “o” profeta. Mas na história da igreja e das comunidades lidamos sempre com figuras que funcionam como dedutoras de novas mensagens e também novas regras. Todas e tudo precisam ser sempre revistos e revisitados à luz de Jesus e de seus ensinamentos.
No destaque à figura de Jesus como “o” profeta, convém manter uma abertura macroecumênica no sentido de perceber que outras tradições também cultivam uma espiritualidade similar. Assim, no islamismo, Maomé é considerado o “selo” dos profetas. Apesar da firmeza na fé de que Cristo é o profeta e o messias, é importante cultivar uma espiritualidade de tolerância e convivência com outros credos.
4. Imagens para a prédica
Sobre profeta
“Um profeta nada sempre contra a correnteza; na maioria das vezes, ele é, por isso, uma pessoa solitária e sofredora. O sofrimento é uma das características do verdadeiro profeta” (Kilpp, 1993, p. 72).
“Profetas a igreja precisa de um só a cada 50 anos. Agora, de administradores a igreja precisa de centenas por ano” (Kilpp, 1993, p. 72).
“Na Bíblia, na esfera religiosa, temos duas figuras importantes: uma é a figura do sacerdote, e a outra, a do profeta. O sacerdote representa os homens perante Deus. Roga o favor divino, suplica o perdão, expressa as demandas, os rogos e as petições do povo para com Deus. Já o profeta funciona no caminho inverso: é o representante de Deus perante os homens, é o mensageiro; ele é o embaixador de Deus, que traz a palavra divina, os alertas, as exortações, o conforto e aponta a direção de Deus para o povo. A questão se o profeta prenuncia o futuro não é o que o caracteriza propriamente – ele até prenuncia o futuro, até prediz coisas, mas não é essa a sua função principal. A característica do profeta é que ele é a “voz do que clama no deserto”, uma voz que se destaca, que confronta e traz a palavra do Eterno (Fábio Damasceno in BINGEMER; YUNES, 2002, p. 29).
Sentinela, o que resta da noite? O sentinela responde: Ainda é noite, mas a manhã vem chegando (cotejamento de Is 21.11-12).
Sobre interpretação continuada e releituras
“Quando o Baal-Shem devia resolver algo meio complicado, ia para um determinado lugar no mato, acendia um fogo e dizia… orações – e tudo acontecia como ele havia imaginado. Uma geração mais tarde, quando o Magid de Meseritz tinha que fazer algo parecido, ia para aquele lugar no mato e dizia: O fogo nós não mais podemos fazer, mas as orações nós podemos falar – e tudo acontecia conforme a sua vontade. Uma geração mais tarde, o Rabbi Moshe Leib de Sassow tinha que realizar coisa semelhante. Também ele ia para o mato e dizia: Nós não mais podemos acender o fogo, também não conhecemos mais as meditações secretas, as quais vivificam a oração, mas nós conhecemos aquele ambiente no mato onde tudo isso tem o seu lugar, e isso deve ser suficiente. E era suficiente. Quando mais uma vez, uma geração mais tarde, o Rabbi Israel de Rischin tinha que realizar aquela tarefa, sentava-se na sua casa em uma cadeira e dizia: Nós não mais podemos fazer o fogo, não sabemos mais dizer as orações, não mais conhecemos o lugar, mas nós podemos contar histórias sobre isso” (SCHOLEM, 1957, p. 384).
5. Subsídios litúrgicos
Oração de confissão:
Deus da vida! Aqui nos encontramos como tua comunidade. Somos pessoas diferentes. Viemos de vários lugares, com sentimentos distintos em nossos corações. Queremos ouvir tua palavra de forma nova para alcançar orientação para nosso viver. Chegamos à tua presença para dizer e confessar que nem sempre depositamos em ti nossa confiança. Deixamo-nos levar por outras propostas e mesmo por aspectos de nossa tradição. Trazemos isso como confissão diante de ti. E pedimos perdão por isso. Concede-nos a tua graça para olhar sempre de novo para Jesus e dele depreender e aprender os ensinamentos fundamentais de nosso viver. Amém.
Oração de coleta:
Senhor Deus! Como comunidade reunida para ouvir tua Palavra e celebrar teu sacramento da comunhão pedimos que venhas derramar abundantemente teu Espírito sobre nós. Sabemos que tu atuas livremente neste mundo, fazendo o teu Espírito agir onde tu queres, salvando, curando, profetizando, ensinando, formulando novas orientações. Atua assim também conosco. Faze-nos ser comunidade que segue os teus passos proféticos. Em nome de Jesus. Amém.
Bibliografia
BINGEMER, Maria Clara L.; YUNES, Eliana (org.). Profetas e profecias. Numa visão interdisciplinar e contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Puc Rio; São Paulo: Loyola, 2002.
CRÜSEMANN, Frank. A Torá. Trad. Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 2002.
KILPP, Nelson. 4º domingo após Epifania. In: Proclamar Libertação. V. XIX. São Leopoldo: Sinodal, 1993. p. 67-72.
MIRANDA, Evaristo Eduardo de; MALCA, José Manuel Schorr. Sábios fariseus. Reparar uma injustiça. São Paulo: Loyola, 2001.
SCHOLEM, Gershon. Die jüdische Mystik in ihren Hauptströmungen [A mística judaica em suas linhas principais], Frankfurt, 1957.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).