Cesta de memórias fecundantes
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Deuteronômio 26.1-11
Leituras: Romanos10.8b-13 e Lucas 4.1-13
Autoria: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 14/02/2016
1. Introdução
No caminho para a Páscoa, a maior das celebrações cristãs, encontramo-nos, neste 1º Domingo na Quaresma, com textos bíblicos que lembram e fazem viver hoje a fé que nos une e que precisa ser constantemente reafirmada e renovada. A base da fé do povo bíblico encontra-se nos acontecimentos históricos da libertação da escravidão no Egito e da conquista da terra (Dt 26, texto de prédica). A tentação de esquecer a história e os compromissos éticos dela decorrentes precisava ser permanentemente enfrentada para não se cair numa religiosidade desencarnada e cômoda que caracterizava os cultos cananeus.
Na Carta aos Romanos, Paulo lembra que não são ritos mágicos que salvam, mas a fé sincera, enraizada no coração, proclamada pela palavra e traduzida em ações concretas que lhe correspondam.
No evangelho deste domingo, encontramos Jesus no deserto, sendo conduzido pelo Espírito e enfrentando as grandes tentações que lhe sugeriam seguir por caminhos espetaculares e imediatistas em vez de discernir e assumir o difícil processo de revelar mais profundamente o coração e as mãos do Deus libertador.
Nossa fé tem raízes históricas e precisa traduzir-se em compromissos históricos. É por isso que, neste domingo, olharemos com mais atenção para o “credo histórico” do povo de Israel. Dele queremos extrair inspirações e forças para seguir fielmente a Jesus no caminho que culminou em sua morte na cruz e na ressurreição.
2. Exegese
O livro do Deuteronômio é uma encruzilhada. Nele deságuam as tradições primitivas dos quatro primeiros livros da Bíblia hebraica e dele partem as tradições mais recentes dos livros seguintes (de Josué a Reis) (LOPEZ, p. 8). Ele é, portanto, um “ponto de chegada” e, ao mesmo tempo, um “ponto de partida”.
Como sugere seu nome, este livro ocupa-se fundamentalmente com as leis (nomos), não se atendo ao que já havia no passado, mas se tornando uma espécie de segunda (deuteros) lei, contendo a explicitação das implicações da primeira Lei, a lei maior, que é o Decálogo. Originalmente o livro continha, sobretudo, as leis referentes à liturgia do povo de Israel, isto é, suas celebrações e festas, a oferenda dos vários tipos de sacrifícios e a oferta do dízimo anual e trienal (KRAMER, p. 183). Passando por evoluções, ele nunca perdeu a perspectiva de que essas leis não se restringiam ao culto israelita, mas estavam voltadas para a realidade socioeconômica do povo de Israel (KRAMER, p. 183). O grande objetivo de tudo isso é a permanente construção de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos (KRAMER, p. 183).
Deuteronômio 26.1-15 guarda a recordação de duas cerimônias litúrgicas com significados muito próximos: uma ligada às primícias dos frutos da terra (v. 1-11) e outra ao dízimo das colheitas (v. 12-15). Cada uma delas comporta confissão do israelita ao Senhor. Enquanto a primeira põe ênfase naquilo que o Senhor fez em favor de Israel, a segunda sublinha o que o israelita fez ou deve fazer (LOPEZ, p. 67). A relação direta com Deus nas duas cerimônias aparece junto com o contato do israelita com seu próximo. O culto mostra seu profundo enraizamento na vida. As práticas cultuais caminham ao lado das práticas sociais (LOPEZ, p. 67).
Deuteronômio 26.1-11 recebe diversos títulos em nossas Bíblias (em português), quase todos incluindo a palavra primícias. Uma propõe o simples e sugestivo “creio no Deus que liberta” (Bíblia Edição Pastoral). O texto lembra as razões para o povo cumprir os preceitos explicitados no livro. Ele objetiva manter viva a convicção de que Deus continuará a cumprir suas promessas, ou seja, o cumprimento dos preceitos do Senhor produzirá os resultados prometidos. Ele conduz os leitores ao momento da celebração da realização da grande promessa de terra, ponto de chegada do processo de libertação da escravidão no Egito. Ele fornece as bases para o cumprimento dos preceitos relativos ao culto e à organização da vida solidária, inclusiva e fraterna. O fundamento é justamente este: Deus cumpriu sua promessa e o fará também no futuro. Por isso ele tem credenciais para pedir ao povo para obedecer às suas ordens.
Os cinco versículos iniciais apresentam o preceito da entrega dos primeiros frutos da terra, tão logo essa tenha sido ocupada. A entrega deverá ser feita “no lugar que o Senhor escolheu” ao sacerdote que estiver em função. Essas indicações revelam que o texto passou por adaptações em função da centralização do culto num único templo em Jerusalém no tempo do rei Josias. Elas mostram também que o rito não se restringe a um momento histórico do passado, mas se tornou um costume em Israel. A entrega das primícias tem o sentido de celebrar a realização da promessa de Deus. Ela celebra as maravilhas que Deus fez na história em favor do seu povo e projeta a continuidade dessa ação no presente e no futuro do povo.
Em seguida, os v. 5b-10a apresentam uma “história da salvação”, que culmina na posse da terra e fundamenta o preceito da entrega das primícias. O v. 9 fala da terra com muito entusiasmo: ela mana leite e mel! O israelita sabe valorizar o que considera dom de Deus. Deuteronômio 8.7-10 também apresenta um elogio semelhante, fornecendo detalhes sobre as riquezas da terra.
Essa “história da salvação” começa na primeira pessoa do singular (v. 5b); depois passa para a primeira pessoa do plural (v. 6-9) e volta para a primeira pessoa (v. 10). A variação pode ser devida à evolução do texto ao longo da história sendo as partes no singular as mais antigas (LOPEZ, p. 69).
Os v. 10b-11 determinam como a entrega deve ser feita: com prostração diante de Deus e alegria por todas as coisas boas (felicidade, conforme TEB) concedidas por Deus. São lembrados como participantes dessa alegria “tua casa” bem como o levita e o migrante. O Deuteronômio contém a permanente preocupação pelos pobres e pelos que estão no meio do povo sem ter a propriedade da terra, como os levitas e estrangeiros.
O rito da oferenda das primícias não é exclusividade e talvez nem seja uma criação do povo de Israel, pois nos cultos cananeus também havia ritos de primícias, onde se ofereciam esses produtos a Baal, deus da fecundidade do solo e das chuvas. Para os israelitas, porém, esse rito celebra acima de tudo a intervenção de Deus em sua história. Na fé bíblica, Deus garante a fecundidade do solo e manda as chuvas necessárias, não sendo necessário realizar ritos que sensibilizem a divindade para isso ou despertem as forças da natureza. O que importa, então, é construir a história à luz dos preceitos de Deus que cumpre suas promessas.
A fé de Israel se funda nas intervenções de Deus na história. O culto é a expressão dessa fé e comemora a história da salvação. Em Dt 26 está conservada uma das páginas mais brilhantes dessa fé e desse culto do antigo povo de Deus (LOPEZ, p. 67).
3. Meditação
A construção de uma vida que tenha sentido implica muita perseverança e manutenção do foco. O mesmo diga-se em relação à sociedade na qual todas as pessoas tenham seus direitos fundamentais respeitados e da qual ninguém seja excluído. As tentações de seguir por caminhos mais cômodos e talvez mais espetaculares sempre serão constantes.
O livro de Deuteronômio testemunha o esforço do povo bíblico em manter-se fiel ao Deus libertador e encontrar, em cada etapa de sua história, a paz e a felicidade prometidas por Deus. Esse povo sabia que a realização das promessas de Deus passava pela fidelidade aos preceitos de Deus, porque eram normas a favor da vida.
Para não cair nas armadilhas da lógica da concentração das riquezas e do poder, era necessário manter viva a memória dos acontecimentos do passado. Fazia-se necessário recordar concretamente que a posse da terra pelo povo de Israel era a realização de uma promessa de Deus. Mais ainda, não se podia perder a consciência das maravilhosas intervenções de Deus na história desse povo, tirando-o da escravidão no Egito e conduzindo-o à terra que veio a ocupar. Esse Deus tinha credibilidade. A ele era preciso escutar, não aos “falsos deuses”. Suas orientações eram como novas promessas: se o povo as cumprisse, se o povo fosse fiel a Deus, veria novas maravilhas. Isso evoca a afirmação muito posterior de Jesus: Procurai primeiro o Reino e a justiça de Deus e tudo vos será dado por acréscimo (Mt 6.33).
Celebrações ajudavam o povo a reafirmar seus compromissos com Deus e com o próximo, especialmente o próximo pobre, que é uma preocupação constante em Deuteronômio. Apresentar as primícias dos frutos da terra tornou-se um rito ao mesmo tempo de gratidão, de memória e de compromisso.
Com essa celebração, carregada de sentimentos e compromissos, o povo fortalecia-se quando experimentava a tentação de seguir por atalhos menos exigentes, porém mais desastrosos. Isso aproxima o texto de Deuteronômio 26.1-11 ao evangelho deste domingo, no qual Jesus está no deserto, talvez para reavivar profundamente a experiência das maravilhas de Deus na história de seu povo e firmar um novo compromisso com esse mesmo Deus. Jesus, no caso, não realiza o rito das primícias, mas se concentra num lugar – o deserto – que por si mesmo era um memorial das maravilhas de Deus e das tentações nem sempre vencidas por esse povo no caminho do êxodo que culminou na posse da terra prometida. Jesus, de certo modo, revive todo esse processo histórico e, no final, volta para o meio do seu povo com uma força e uma lucidez para colocar-se inteiramente a serviço do projeto de libertação que Deus tem para com seus filhos e filhas. O texto do evangelho destaca as tentações que sugeriam a Jesus desviar-se do caminho exigente e desafi ador do projeto do Pai. Mas ele venceu toda tentação. Ele já tinha aprendido a lição do Deuteronômio – da celebração das primícias, em particular – e apostou no projeto libertador de Deus, comprometeu-se com ele.
Paulo situa-se, na Carta aos Romanos, na mesma perspectiva. Segundo ele, o que nos salva é a fé sincera (crer no coração) e expressa em palavras (culto e doutrina) e ações concretas. Com Jesus ele ajuda a entender que a observância dos preceitos do Senhor, tão acentuada em Deuteronômio, precisa inspirar-se no princípio maior da vida plena para todas as pessoas, que orientou a prática libertadora de Jesus. Portanto o seguimento cego e desfocado de leis e preceitos pode também representar uma tentação para desviar-nos do verdadeiro compromisso de construir uma sociedade de inclusão e de respeito aos direitos de todos, especialmente dos pobres e excluídos.
No início de nosso caminho para a Páscoa, a leitura e a meditação de Deuteronômio 26.1-11 e as demais leituras bíblicas do 1º Domingo na Quaresma querem reavivar em nós o alegre e ousado compromisso com o projeto de Deus, que conduziu Jesus a dar a própria vida por amor a seus irmãos e irmãs. Não trazemos ao altar necessariamente uma cesta com frutos da terra, mas fazemos memória das maravilhas de Deus em nossa vida e história. Proclamamos que ele cumpre suas promessas e, por isso, comprometemo-nos com seu projeto na certeza de que ele caminhará conosco. E pedimos humildemente, como fazemos ao orar o Pai-Nosso: Não nos deixes cair na tentação.
4. Imagens para a prédica
A sabedoria popular diz que se pegam mais moscas com um pouco de mel do que com um barril de vinagre. A imagem ajuda a entender que o foco da reflexão, neste início da Quaresma, não deverá ser a tentação, mas as razões para a fidelidade ao Senhor e seu projeto. O Deuteronômio mostra justamente uma celebração da realização das promessas divinas como razão maior para o cumprimento dos preceitos do Senhor que geram vida. O evangelho também não destaca apenas as tentações de Jesus, mas mostra a sua busca de inspiração no deserto e no jejum. As tentações são reais e precisam ser consideradas, mas elas só poderão ser vencidas no horizonte de razões e motivações mais profundas.
Uma cesta com frutos da terra colocada diante do altar ou sobre ele pode ajudar a refletir sobre os dons de Deus e também sobre as tentações que ocorrem em torno dos bens, frutos da terra e do trabalho humano, necessários para viver. Esse símbolo pode ser facilmente relacionado às leituras deste domingo, particularmente ao texto do Deuteronômio. A cesta pode inclusive abrir a reflexão sobre o grande dom da natureza com suas múltiplas generosidades, bem como sobre as tentações nas quais a humanidade já sucumbiu e das quais, em grande medida, se recusa a sair.
Pode ainda ser de proveito a imagem do caminho: a Quaresma quer ser um caminho que fazemos com Jesus até sua Páscoa. Ao partirmos, precisamos nos conscientizar do destino da viagem, das razões que nos põem a sair, daquilo que precisamos levar conosco e dos eventuais perigos do caminho.
5. Subsídios litúrgicos
A comunidade pode preparar uma cesta com “frutas” de sua própria história. Podem ser símbolos dos bons “frutos” do evangelho na vida da comunidade. Essa cesta poderá ser levada ao altar em momento oportuno. Seria interessante preparar um “credo histórico” da comunidade para ser proclamado na entrega da cesta.
Podem ser feitos alguns pedidos de perdão e uma renovação do compromisso de fidelidade ao Senhor:
– Perdoa-nos, Senhor, porque não soubemos reconhecer as tuas maravilhas em nossa história pessoal e comunitária. Senhor, tem piedade de nós!
– Perdoa-nos, Senhor, porque te louvamos no culto, mas te desprezamos muitas vezes em nossos irmãos e irmãs, especialmente nos pobres e diferentes. Senhor, tem piedade de nós!
– Perdoa-nos, Senhor, porque caímos na tentação da exploração sem limites da natureza e tornamo-nos insensíveis aos sofrimentos atuais e futuros de tantos irmãos e irmãs. Senhor, tem piedade de nós!
Oração
Amado Deus. Nós reconhecemos que és o Deus que faz maravilhas em favor de teu povo. Concede-nos reavivar a memória das tuas graças em nossas vidas e ajuda-nos a renovar nosso compromisso de fidelidade para com teu projeto de vida. Faze de nosso caminho para a Páscoa um itinerário de conversão, para que experimentemos mais profundamente a ação de teu amor no meio de nós. E não permitas que sejamos enganados pela astúcia de projetos de morte com suas falsas promessas. Isso te pedimos, ó Pai querido, por meio de teu Filho e nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Bibliografia
KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. São Paulo: Paulinas, 2006.
LOPEZ, Félix Garcia. O Deuteronômio: uma lei pregada. São Paulo: Paulinas, 1992.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).