Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Deuteronômio 30.9-14
Leituras: Lucas 10.25-37 e Colossenses 1.1-14
Autor: Carlos Artur Dreher
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 11/07/2010
1. Introdução
Os textos previstos para o 7º Domingo após Pentecostes apontam para o desafio constante na vida de pessoas dispostas a seguir Jesus Cristo: a prática do amor de uns para com os outros. Se para o Deuteronômio essa tarefa não é difícil (Dt 30.11), o intérprete da lei que se dirige a Jesus (Lc 10.25) não parece ter a mesma opinião. Embora conheça a lei – afinal, é seu intérprete – e saiba que essa se resume no amor a Deus e ao próximo, não sabe a quem amar. Será que a teoria o deixou confuso?
Por outro lado, na Epístola aos Colossenses, o apóstolo sabe dizer da alegria pelo fato de o evangelho estar produzindo fruto (Cl 1.6), porque a comunidade ouviu e entendeu a graça de Deus. A fé em Cristo move aquelas pessoas ao amor para com todos os santos (1.4).
Aí está o tema deste domingo: o convite ao cumprimento da lei, expresso no duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo, do qual a segunda parte parece ser a mais difícil. Ainda bem que da comunidade dos colossenses nos vem a feliz notícia de que, se é difícil, também não é impossível.
Com certeza, nossas comunidades também vivem constantemente essa contradição entre amor e desamor. Contudo, embora haja fracassos e frustrações, é importante que se insista no convite e no estímulo: o mandamento que Deus, hoje, te ordena não é demasiado difícil, nem está longe de ti (Dt 30.11).
2. Considerações exegéticas
2.1 – Deuteronômio
O Deuteronômio certamente tem uma longa história. É bem provável que tenha surgido no Reino do Norte, Israel, entre 750 e 722 a.C. Trazido para o sul após a catástrofe do norte, influenciou a reforma de Josias em 621 a.C. e continuou a exercer forte influência na comunidade de fé judaica no exílio e no pós- exílio, e mesmo no tempo de Jesus.
Nessa história, o núcleo original, composto pelos capítulos 12-26, sofreu acréscimos que se agregaram ao seu redor, apresentando-se na forma de um grande discurso de despedida de Moisés, dirigido ao povo antes da entrada na Terra Prometida. Deuteronômio 30.9-14 encontra-se na parte final desses acréscimos discursivos, composta pelos capítulos 29 e 30. Os capítulos 31-34 já se apresentam como uma conclusão do Pentateuco e alguns apêndices.
Embora o Deuteronômio contenha uma ampla diversidade de leis, percebem- se nele três acentos fundamentais, que podem ser resumidos em três afirmações:
a) O Senhor é Deus único (cf. principalmente Dt 6.4: “Ouve, Israel, o Se- nhor, nosso Deus, é o único Senhor”).
b) O Senhor escolheu um único lugar para ali fazer habitar o seu nome (cf. Dt 12.5, 11, 14).
c) O Senhor tem um amor especial pelos mais fracos (cf. Dt 15.1-18; 16.9-17). Decorre daí que a lei – e isso se refere principalmente ao Deuteronômio –
resume-se em amar a Deus e amar ao próximo.
2.2 – Deuteronômio 30.9-14
O último acréscimo discursivo, composto pelos capítulos 29 e 30, embora se expresse no futuro, pressupõe a catástrofe de 587 a.C. e o exílio, como se pode perceber em 29.22-28. Interpreta ambos os eventos como consequência do desprezo pela aliança que o Senhor firmara com seu povo desde a saída do Egito (29.25). O capítulo 30 passa a falar de reconstrução: o Senhor mudará a tua sorte (v. 3), impondo como condição o voltar-se para Deus e o dar ouvidos à sua voz (v. 2). A mudança da sorte consiste em reunir o povo desterrado e introduzi-lo na terra (v. 4-5). A partir daí, coloca-se novamente a exigência de submeter-se aos mandamentos do Senhor (v. 8).
Estamos, pois, no fim do exílio, talvez mesmo já no período após o retorno dos primeiros exilados. O castigo já passou. É hora de recomeçar!
A partir daí inicia nossa perícope, 30.9-14, que pode ser estruturada em dois blocos:
V. 9-10 – A promessa de abundância, condicionada à obediência aos mandamentos de Deus.
V. 11-14 – A lei não é demasiado difícil de ser cumprida.
O contexto posterior, v. 15-20, encerra o Deuteronômio, pois o que segue representa a conclusão do Pentateuco e apêndices. Aí se sublinha o que foi dito em v. 9-14, propondo a alternativa de vida e bem, por um lado, e morte e mal, por outro. A vida se alcança amando a Deus e andando nos seus caminhos, isto é, seguindo a lei. A morte é resultado do afastar-se dele, deixando de ouvi-lo e seguindo outros deuses, ou seja, afastando-se dos mandamentos. Em nossa perícope, v. 9 aponta para o futuro. V. 9a indica a bênção. Deus dará abundância em todas as dimensões da vida: na descendência – o fruto do teu ventre; no rebanho – o fruto dos teus animais; e na colheita – o fruto da tua terra. V. 9b vê essa bênção como resultado da alegria de Deus. Ele tornará a exultar em ti, para te fazer o bem, como exultou em teus pais. A referência aponta para um passado de felicidade, com certeza para as origens de Israel, no tempo da sociedade tribal, que o autor vê como uma época em que as duas dimensões fundamentais da lei – o amor a Deus e ao próximo – eram efetivamente praticadas.
O v. 10 estabelece as condições para esse futuro de bênção: ouvir a voz de Deus, guardar os seus mandamentos como descritos nesse livro, o que representa uma conversão a Deus, de coração e alma. Essa será a típica argumentação deuteronomista nos livros históricos: a fidelidade a Deus leva à bênção; a desobediência, à maldição.
Os v. 11-14 apresentam-se como um estímulo. Embora assim pareça, a lei não é difícil de cumprir. Não está longe, nem nos céus, nem além do mar. Está na tua boca e no teu coração.
Não obstante, o intérprete da lei que procurou Jesus (Lc 10.25-37) não parece ter pensado assim. Sua dificuldade não estava em conhecer a lei. Conhecia muito bem o duplo mandamento do amor. Contudo, colocava entraves, notadamente na segunda parte: “Quem é o meu próximo?”. E, mesmo no final da história contada por Jesus, ele continua confuso. Como ver em um samaritano o seu próximo?
Certamente também os colossenses terão tido problemas com a prática do amor. Em Colossenses 1.1-14, porém, o apóstolo pode alegrar-se porque o evangelho produz frutos.
3. Meditação
Ao refletir sobre o texto previsto para a pregação, Deuteronômio 30.9-14, me vem à mente uma frase de Santo Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”. Essa frase se encontra no tratado 7, seção 8 do comentário de Agostinho à Primeira Carta de João. Em sua íntegra, ela diz:
“Uma vez por todas, foi-te dado somente um breve mandamento: Ama e faze o que quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor; se falas em tom alto, fala por amor; se corriges, corrige por amor; se perdoas, perdoa por amor. Tem no fundo do coração a raiz do amor: dessa raiz não pode sair senão o bem!”
Essa belíssima palavra evoca outras afirmações contidas em 1 João, especialmente no capítulo 4, cuja leitura meditativa sugiro a quem for pregar sobre o texto de Deuteronômio 30.9-14. Deus nos amou primeiro e nos amou a ponto de enviar seu Filho como propiciação pelos nossos pecados (1Jo 4.10); Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele (4.16); no amor não existe medo (4.18); nós amamos porque ele nos amou primeiro (4.19); aquele que não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê (4.20).
É até mesmo de estranhar que não seja essa a epístola proposta como leitura para apoiar a pregação sobre o texto do Deuteronômio, pois certamente se aproxima bem mais dele do que Colossenses 1.1-14. Se a sua liberdade o permitir, ouso propor a troca.
Voltemos, porém, ao texto de pregação.
Antes de mais nada, tomaria muito cuidado com uma interpretação precipitada do v. 9. A religiosidade de hoje já se acostumou a calcular a presença ou a ausência de fé pelos resultados aparentes, principalmente em decorrência de algumas interpretações inclusive veiculadas pela mídia. Se há sucesso, é porque há fé; se há desgraça ou fracasso, é porque não houve fé ou porque ela é muito pequena. Se há sucesso, é porque houve méritos; se há fracasso, é porque não os houve. Fé e mérito não são garantias de sucesso. Se fossem, Jesus não teria morrido na cruz.
Contudo, de fato, em seu conjunto, os v. 9-10 podem dar margem a uma tal interpretação, se anteciparmos o v. 10 ao v. 9: Se deres ouvido à voz do Senhor (v.10)… ele te dará abundância (v. 9).
Não podemos, porém, esquecer que, como vimos acima, a situação em que a palavra é proferida no exílio, ou mesmo no pós-exílio. A ação de Deus em favor de seu povo é muito anterior. Tem a ver com o clamor dos escravos no Egito. Não havia mérito nenhum ali. Apenas o grito. E Deus viu a aflição de seu povo, ouviu o seu clamor, conheceu sua aflição e desceu para libertá-lo (Êx 3.7-8). É nisso que se baseia a afirmação de que “vós, sim, que antes não éreis povo, mas agora sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia“ (1Pe 2.10).
Já na Bíblia Hebraica, a graça de Deus vem em primeiro lugar. E é para que não nos desviemos dela, para que não a percamos, para que não voltemos à escravidão, que a lei nos foi dada. Ela quer ser orientação – Torá. Não quer ser um peso. Quer nos mostrar o caminho. Quer nos ajudar a manter a liberdade e a vida, a nossa e a do outro.
É essa a função da lei de Deus. E é importante que se ressalte: a lei de Deus, a Torá, não pretende ser um amontoado de leizinhas no sentido de “faz isso” e “não faça aquilo”. Não é uma questão de poder usar essa ou aquela roupa, de poder ou não comer determinados alimentos, de poder ou não usar o cabelo dessa ou daquela forma. Como diria Paulo: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas me convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6.12).
Em resumo, a Torá propõe apenas duas coisas: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento” (Dt 6.5) e: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19.18; cf. Dt 15.1-18; 16.9-17). Não é de estranhar que o intérprete da lei o saiba (Lc 10.27).
Fundamental é perceber que quem ama a Deus – e o ama porque compreendeu que ele é o único que nos tira da escravidão e da morte – sabe que outros deuses não podem fazer o mesmo por nós; sabe que, muito antes, esses outros deuses, como o capital, o desejo de possuir tudo e todos, o egocentrismo só nos levam “de volta ao Egito”, tornando-nos escravos de nossos desejos e escravizadores de outras criaturas. E quem ama o próximo como a si mesmo nem sequer precisa de outras leis, como aquelas contidas na segunda tábua: “Honra teu pai e tua mãe”; “Não matarás” etc. Porque, em si, todas essas coisas aí proibidas são apenas ausência de amor.
Ama e faze o que quiseres! Porém ama incondicionalmente. A todas as criaturas, também os samaritanos! Também aquelas criaturas que são diferentes, que pensam de outra maneira, que têm outros costumes, mesmo religiosos. Não existe nada nem ninguém que não mereça o teu amor.
É a partir daí que se entende esse desafiador v. 11: “Este mandamento que, hoje, te ordeno não é demasiado difícil, nem está longe de ti”. Se sabes que o Senhor te ama, te liberta, te dá a vida, estás livre para amá-lo e para amar todas as criaturas. Nas palavras de Miqueias 6.8: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus”.
Não é tão difícil assim! Por isso:
“Ama e faze o que quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor; se falas em tom alto, fala por amor; se corriges, corrige por amor; se perdoas, perdoa por amor. Tem no fundo do coração a raiz do amor: dessa raiz não pode sair senão o bem!”
4. Imagens para a prédica
Para propor imagens para a pregação, parto de duas questões, que me parecem fundamentais no conjunto dos textos propostos: o mandamento não é demasiado difícil, mas a pergunta “Quem é o meu próximo?” recebe como resposta: o samaritano, o que para o intérprete da lei deve ter sido um absurdo total. Logo o mais desprezível dos manifestantes da fé? Como é que o mandamento não é demasiado difícil numa situação dessas?
Partindo da ideia de que para o samaritano provavelmente valia o mesmo desprezo em relação ao judeu, não deixa de ser interessante que a parábola oculta a identidade daquele que foi assaltado. E se fosse um judeu? Pela parábola, o samaritano teria ajudado da mesma forma.
Gosto de brincar com a parábola, parafraseando-a. Em determinados grupos evangélicos, faço questão de chamar o samaritano de “católico”. Em meio a grupos católicos, chamo-o de “crente”. Por fim, em grupos muito carolas, gosto de dizer que era um “batuqueiro” ou “macumbeiro”.
Num encontro ecumênico, ouvi de um colega metodista a seguinte afirmação: “No ecumenismo, a gente precisa partir do princípio de que o diferente não é contrário”. E, de fato, é apenas diferente.
– Meu melhor amigo é gremista! É impossível?
– Amo uma mulher – o que já é diferente de mim –, mas ela pensa de maneira diferente de mim em muitas coisas. É impossível?
– É possível orar pelos criminosos? Você consegue?
A lista poderia continuar infinitamente. Afinal, são tantos os nossos preconceitos.
Ama e faze o que quiseres.
5. Subsídios litúrgicos
Versículo de introito:
“Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Mq 6.8).
Confissão de pecados:
Misericordioso Deus! Mais uma vez estamos aqui, diante de tua face, para te confessar nossa culpa e nosso pecado. E mais uma vez tu nos lembras que o teu mandamento não é difícil. Contudo, nós nos deixamos levar pelo egoísmo e pelos preconceitos. Na busca desenfreada pelo nosso bem-estar, nós nos esquecemos de ti e seguimos outros caminhos. Acentuamos nossos preconceitos e, por causa de- les, fazemos de conta que não sabemos quem é o nosso próximo, deixando de amá-lo, como tu nos ensinas. Perdoa-nos, Senhor! Aceita nossa vontade de conversão. Aproxima a tua palavra de nossas bocas e de nossos corações. Tem piedade de nós, Senhor.
Oração de coleta:
Senhor Jesus Cristo! Tu nos amaste mais do que ninguém e nos ensinaste a amar a Deus e ao nosso próximo. Ajuda-nos a compreender que isso não é tão difícil. Evoca em nós o sentimento que evocaste em Santo Agostinho e faze nossas as suas palavras, para que possamos amar e fazer o que quisermos. Se nos calarmos, que nos calemos movidos pelo amor; se falarmos em tom alto, que falemos por amor; se corrigirmos, que corrijamos por amor; se perdoarmos, que perdoemos por amor. Que tenhamos no fundo do coração a raiz do amor: dessa raiz não pode sair senão o bem! Amém.
Oração de intercessão:
Querido Deus e Pai! Servidos pela tua Palavra, trazemos agora diante de ti as nossas preces e as nossas súplicas. Ouve-as, Senhor, e concede-nos a graça de ser atendidos. Nós te pedimos por tua igreja no mundo inteiro, dividida por diferenças às vezes absurdas. Guia-a, na forma de diferentes denominações, de acordo com a tua Palavra e a tua vontade. Faze com que os teus mandamentos estejam acima de interesses e interpretações pessoais, para que elas possam perceber de umas para as outras que todas são tua igreja. – Em especial te pedimos por nossa Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Abençoa e conduze seus obreiros e suas obreiras na pregação de tua Palavra e na reta administração de teus sacramentos. Acompanha suas lideranças nas decisões que devem ser tomadas. – Pedimos-te por nosso povo e por nossa pátria. Mostra o teu caminho às nossas autoridades federais, estaduais e municipais. Livra-as do mal e da corrupção. Ilumina-as na hora da tomada de decisões, para que concorram para o bem do teu povo. – Pedimos-te, enfim, por nossa comunidade e por todas as suas famílias. Abençoa-as, guarda-as e protege-as do mal. Auxilia-as a encontrar soluções para as suas dificuldades. Conforta os doentes e as pessoas que estão à beira da morte. Consola os enlutados. – Em especial, Senhor, oramos pelas pessoas diferentes de nós. Ensina-nos a amá-las, vencendo nossos preconceitos. A tuas mãos recomendamos também os criminosos. Perdoa-os, assim como tu nos perdoas. Mostra- lhes o caminho da conversão. – E fica conosco, Senhor. Abençoa-nos e guarda- nos. Por Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor e Salvador, que reina contigo e com o Espírito Santo, agora e sempre. Amém.
Bibliografia
RAD, G. von. Teologia do Antigo Testamento. V. 1 e 2. 2. ed. São Paulo: ASTE/ Targumim, 2006.
SCHMIDT, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal/ IEPG, 1994.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).