Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Deuteronômio 4.1-2, 6-9
Leituras: Marcos 7.1-8, 14-15, 21-23 e Tiago 1.17-27
Autora: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 14º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/09/2012
1. Introdução
As três leituras do culto deste domingo apresentam um foco comum: ouvir e colocar em prática a palavra de Deus, o que produz um povo sábio. O texto do livro de Deuteronômio proposto para a prédica abre o tema com o solene “ouve” ou “escuta, Israel”, e o conteúdo a ser ouvido e colocado em prática são as leis e os costumes que brotam da experiência da caminhada de Deus com seu povo e desse com seu Deus. O texto de Tiago também exorta para uma escuta amorosa e consequente da palavra de Deus, fonte de sabedoria. E o evangelho faz um contraponto, denunciando uma fidelidade apenas formal aos mandamentos divinos.
Em tempos de absolutização do presente, a perícope de Deuteronômio e os demais textos propostos para este domingo convidam para uma profunda reflexão sobre a importância do cultivo da memória das experiências dos pais e mães na fé e sobre a fidelidade criativa aos ensinamentos emanados dessa rica história. A convicção de fundo é que essas atitudes produzem uma profunda sabedoria. Disso está convicto o livro de Deuteronômio, e assim o cremos também nós.
2. Exegese
Deuteronômio 4.1-9 constitui uma unidade, embora diversas traduções associem o v. 9 à perícope seguinte. O início é bem caracterizado com o solene imperativo: “E agora, Israel, ouve (escuta)…” E o fim da perícope é uma exortação para não esquecer as sábias leis ouvidas e para dá-las a conhecer aos descendentes. A supressão dos v. 3-5 no texto litúrgico deixa-o mais objetivo naquilo que quer destacar.
O texto selecionado faz parte de um livro muito estimado, tanto no judaísmo como no cristianismo. A razão do apreço pode estar no fato de que ele contém não somente os mandamentos que constituem a “sabedoria” de Israel diante dos povos, mas também a mística que dá fundamento a essas leis divinas: de um lado, o amor de Javé para com seu povo; do outro, o temor e amor de Israel para com seu Deus. Em outras palavras, a espiritualidade da aliança.
A parte central do livro é composta pelos capítulos 12 a 26, que apresentam a chamada Lei Deuteronômica ou o Deuteronômio primitivo. Antes dessa parte, o livro apresenta um retrospecto histórico com uma exortação e uma introdução a essa lei (1-11); depois dela, instruções para a promulgação da lei, exortações à fidelidade e a despedida de Moisés (27 a 34). A perícope que nos interessa encontra-se, portanto, na parte introdutória.
Deuteronômio 4.1-9 não apresenta nenhuma das leis contidas no livro, mas expressa bem as atitudes fundamentais diante delas: “ouvir” as leis e costumes, preservar sua integridade, “guardar” e zelar para que nada seja esquecido de tudo o que os olhos viram, tratando de educar as novas gerações no mesmo espírito.
De onde vêm essas orientações? Lido ao pé da letra, o texto dá a impressão de que tudo vem diretamente de Moisés, que, no fim de sua vida e antes que o povo entre na terra, está lhe entregando seu “testamento espiritual”. Sabe-se, no entanto, que a formação do Deuteronômio ocorreu ao longo de muitos anos. Certamente, há elementos muito antigos que podem remontar aos tempos mosaicos. Mas o texto foi enriquecido ao longo dos anos e somente foi concluído após o exílio.
Por trás dessa história de formação do livro está o esforço para retomar e atualizar o Decálogo, esforço que pode ser atribuído a círculos proféticos e levíticos, grupos de lideranças populares que tratavam de manter e renovar sempre de novo a consciência das implicações da aliança do Deus de Israel com seu povo. Essa intenção explica a insistência de que os acontecimentos do passado incluam os ouvintes ou leitores que viveram séculos depois: esses também viram e ouviram tudo isso; foi também a eles que Deus entregou e entrega “hoje” a terra; são agora eles que devem cuidar para não esquecer nada disso e tratar de transmitir essas experiências, leis e costumes aos descendentes.
Na perícope em questão, merecem destaque alguns elementos:
“Escuta, Israel” é a tradução do famoso “Shemá Israel”, que marca a atitude central da religião do povo da Primeira Aliança. Corresponde ao seguimento a Jesus no Segundo Testamento. A Bíblia constituiu-se em base ao ouvir os relatos, os ensinamentos e os testemunhos dos que experimentaram a presença de Deus em sua história. É preciso ter uma atitude de escuta e um desejo de aprender.
O que Moisés diz estar ensinando, nesse momento, não são simplesmente leis e costumes; ele está ensinando a cumprir essas leis e esses costumes. Numa mesma frase, portanto, estão a atitude fundamental da escuta e a preocupação de ensinar a colocar em prática o conteúdo transmitido.
A finalidade de ouvir e de pôr em prática esses mandamentos é viver e entrar na posse da terra que Deus dará. Está aí a teologia deuteronomista, que perpassa toda uma literatura: o cumprimento dos mandamentos de Deus rende vida ao povo; seu descumprimento lhe é desastroso até a morte.
A ordem de nada acrescentar ou suprimir ao que, na perspectiva do texto, Moisés transmite ao povo contradiz a dinâmica histórica da formação do texto de Deuteronômio, que passou por um longo processo de construção. No Evangelho de Mateus, Jesus também diz algo semelhante: nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da lei, mas tudo se cumprirá (Mt 5.17-19); mas ele mesmo foi acusado muitas vezes de não estar cumprindo a lei, inclusive no relato do evangelho deste domingo. Isso leva à constatação de que o texto está preocupado com a fidelidade à lei num sentido profundo, muito além de uma fidelidade formal. É assim, pelo menos, que Jesus viveu e propôs.
A consequência da postura correta frente aos ensinamentos propostos é a sabedoria de Israel diante dos outros povos. Ouvindo e praticando a lei, Israel brilhará diante de seus vizinhos, que se admirarão de sua sabedoria. O texto evoca, portanto, as vantagens da atitude proposta, sugerindo que Israel se sinta orgulhoso do que tem e é.
O texto finaliza com um solene alerta: “Tomai cuidado”. Os ouvintes e leitores devem zelar para não esquecer as coisas que seus olhos viram. Agora o acento recai sobre aquilo que os olhos viram, não sobre aquilo que apenas os ouvidos ouviram. Não há contradição nisso, porque aquilo que os ouvidos ouvem ou devem ouvir está fundamentado numa experiência vivida, em acontecimentos que os olhos puderam ver. Tudo isso, experiência e conteúdo ouvido, não pode sair do coração, mas deve estar nele em todos os dias da vida. E deve ser transmitido aos descendentes.
3. Meditação
“Eu só queria que meus alunos quisessem aprender” – disse uma professora preocupada com os frutos de seu trabalho profissional. O desabafo da professora tem muito sentido, pois onde não há vontade de aprender, pouco se alcança, mesmo com muito esforço dos docentes. Sem disposição para aprender, não se escuta, não se busca e não se aprende.
Será que algo semelhante não ocorria nos tempos bíblicos? A tentação ao longo de sua história não terá sido fazer de conta que já se conhece Deus ou de querer agradá-lo com alguns ritos ou mesmo de achar que as “maçãs” dos vizinhos eram mais saborosas? Diante dessas tentações, sempre de novo surgiram grupos de pessoas que insistiam na necessidade de retomar e atualizar as profundas experiências vividas pelos antepassados do povo.
“Ouve, Israel…” era a ordem repetida com insistência por esses grupos. Não se entra e não se permanece sem mais nem menos na “terra que o Senhor Deus dará”… Não se comove nem se convence a Deus com ritos e celebrações bonitas, mas vazias. Não se conquistam nem se mantêm a liberdade e a justiça social, iludindo-se com falsas promessas de grandeza. Ao contrário, o povo precisava cultivar uma saudável autoestima, valorizando suas próprias experiências de caminhada, nas quais, afinal, tinha alcançado a superação de muitas escravidões e a conquista de vida e liberdade. Era preciso “ouvir” sempre de novo essas experiências, meditar sobre elas, tirar consequências para as novas situações vividas e educar as novas gerações no mesmo espírito.
Não se podia, outrossim, falsificar ou distorcer essas experiências originárias, mas era necessário manter íntegros seu significado e sua importância. Nesse sentido, não se podia tirar nem acrescentar nada ao legado atribuído a Moisés, como diz o texto. Ao que tudo indica, porém, nem sempre todo o povo da Bíblia entendeu essa fidelidade em seu sentido mais profundo. No evangelho deste domingo, por exemplo, aparecem críticas de Jesus a um cumprimento exterior e formal dos preceitos da lei. Muito antes dele, diversos profetas haviam feito críticas semelhantes. O que importava para esses profetas e para Jesus era justamente a fidelidade radical aos mandamentos de Deus, isto é, uma fidelidade que brota das raízes históricas desses preceitos e que traduz essas raízes em práticas coerentes.
“Beber no próprio poço” é o título de um livro de Gustavo Gutiérrez. O autor mostra na obra a importância e o sentido do povo pobre latino-americano valorizar a própria história como fonte de espiritualidade em vez de sempre beber nas fontes de outros, com falsas aparências de maior importância e valor. A tentação é sempre confiar nos poderosos e desprezar a contribuição dos humildes e humilhados da história. O texto de Deuteronômio sobre o qual hoje meditamos mostra essa preocupação de que o povo de Israel não se esqueça de como Deus se manifestou em sua humilde história de povo periférico e aparentemente insignificante. Por isso Israel devia cultivar um saudável orgulho de suas leis e tradições, pois a prática dessas orientações produzia uma sabedoria invejável – o que nem sempre era percebido ou aceito por todos.
Nós somos herdeiros do povo bíblico, tanto do Primeiro como do Segundo Testamentos. O texto de Deuteronômio, proclamado no culto deste domingo, interpela-nos hoje do mesmo modo que desafiava as diversas gerações do povo de Israel. Ele nos convoca a “ouvir”, a “escutar” as experiências de nossos pais e nossas mães de um passado já longínquo. Ele nos convida a refletir sobre o valor das orientações que brotam dessas experiências. E nos desafia a educar os filhos e netos no mesmo espírito. Tarefa difícil? Certamente, pois em nossos dias pouco se valorizam as experiências do passado e vigora o mito da superioridade do presente e do futuro. Fala-se de uma absolutização do presente. No entanto, a sabedoria parece estar na valorização das experiências qualificadas de nosso passado, na compreensão do presente à luz delas e na releitura dessas experiências à luz das novas situações vividas hoje. O relato dos discípulos de Emaús sugere precisamente isso.
“Ouve, Israel…” – ouvimos na leitura de hoje. Como no livro de Deuteronômio, esse apelo não é só uma recordação de um evento do passado, mas igualmente uma palavra de ordem para hoje. Também nós somos convidados e desafiados a sempre de novo escutar atentamente o que nossos pais e mães nos contaram e a aprender dessas experiências originárias uma sabedoria para nossos tempos, tão arrogantes e carentes da valorização das experiências do passado.
4. Imagens para a prédica
Uma imagem interessante para a prédica pode ser a do ouvido, que pode ser visualizada por meio de um cartaz ou de uma projeção. Ela pode ser impressa também em tamanho pequeno e distribuída a todos os participantes do culto na entrada. Essa imagem permite fazer questionamentos interessantes, que podem encaminhar a reflexão sobre o tema do texto que embasa a prédica. Pode-se perguntar, por exemplo, o que é ouvir, que experiências temos de ouvir e ser ouvidos ou não, qual a importância de ouvir, qual a diferença entre ter ouvidos e de fato ouvir ou escutar, o que acontece quando não se escuta ou quando não se quer ouvir etc. A partir dessas questões, pode-se explicitar o texto, que começa com o pedido ou a ordem de ouvir/escutar.
Interessante pode ser também a imagem do poço, sugerida pelo título do livro de Gutiérrez: “Beber no próprio poço”. Talvez a imagem seja muito rural e distante de pessoas de cultura urbana, mas ela parece estar nos arquétipos de nossa cultura e pode ser evocada com proveito. O poço lembra as ricas experiências vividas pelas pessoas de hoje, lembra as histórias e experiências vividas por nossos antepassados bíblicos, traz presente a água viva que expressa sabedoria, sugere a necessidade de ir até onde ele está etc. Não é por nada que, no Evangelho de João, Jesus é comparado a uma fonte da qual brota água viva.
Também é sugestiva a representação de um grupo de pessoas reunidas numa espécie de círculo bíblico. Essa imagem lembra bem o cultivo da memória das experiências dos pais e mães dos tempos bíblicos. Ela evoca também a convicção de que a escuta dessas vivências é fonte de sabedoria.
5. Subsídios litúrgicos
Apresentamos apenas algumas sugestões:
Hinos que tenham como tema a atitude da escuta ou o sentido da palavra de Deus em nossa vida são bem-vindos no culto deste domingo.
Igualmente as orações, súplicas, pedidos de perdão e outras expressões orantes podem ocupar-se com o tema. Quanto mais se falar a mesma mensagem, em suas diversas expressões proporcionadas pelo culto, tanto mais a comunidade terá condições de vivenciar e assimilar essa mensagem.
Na internet, encontram-se materiais sobre o “Shemá Israel”. A reprodução de uma gravação musical pode auxiliar na criação de um clima antes do início do culto ou mesmo no contexto da prédica.
Bibliografia
STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro do Deuteronômio: escolher a vida ou a morte. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1992.
LOPEZ, Félix Garcia. O Deuteronômio: uma lei pregada. São Paulo: Paulinas, 1992.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).