Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Deuteronômio 8.7-18
Leituras: Lucas 17.11-19 e 2 Coríntios 9.6-15
Autora: Fabiani Appelt
Data Litúrgica: Ação de Graças (Festa da Colheita)
1. Introdução
O texto de pregação que temos pela frente é Deuteronômio 8.7-18. Parte dele já foi contemplado em Proclamar Libertação 12 por Otto Porzel Filho, que em sua contribuição procurou conscientizar-nos sobre o uso indiscriminado de venenos nas plantações, que contaminam terra, água, ar, plantas, animais e pessoas e prejudicam a maravilhosa criação de Deus.
A motivação para a presente mensagem é o Dia de Ação de Graças (Festa da Colheita). Mas continua pertinente a preocupação com o cuidado que devemos ter para com a maravilhosa criação de Deus, que nos foi dada de presente e merece o nosso cuidado como forma de gratidão pela fartura que nos concede dia após dia.
Os textos de leitura são Lucas 17.11-19 e 2 Coríntios 9.6-15. O texto do evangelho relata a cura dos dez leprosos e tematiza a importância da gratidão. Os leprosos eram os mais marginalizados dentre os marginalizados. Além do sofrimento físico, sofriam também exclusão social por causa do medo que essa doença gerava (Lv 13.45-46). Junta-se a isso o sofrimento espiritual, pois, conforme a tradição judaica, a lepra era considerada um castigo de Deus (Dt 28.27). Observamos que os leprosos, em vez de clamar “impuro, impuro!”, como a lei os obrigava a gritar como alerta às pessoas que se aproximavam, logo clamam por misericórdia. Evidentemente, já tinham ouvido falar de Jesus, vendo no encontro com ele um grande momento de esperança. Chamam Jesus de “mestre”, expressão usada principalmente por discípulos. Ela expressa a esperança que a fama de Jesus havia criado. Jesus limita-se a pedir para irem se apresentar aos sacerdotes, como exigia a lei, para constatar a cura da lepra (Lv14). O texto indica que eles foram imediatamente. Quando notaram que haviam sido curados, apenas um voltou a Jesus para dar glória a Deus. “Dar glória a Deus” é a expressão mais elementar da fé. Essa fé sabe que só Deus pode restabelecer a vida esmagada por doença, vergonha e exclusão.
O texto de 2 Coríntios 9.6-15, por sua vez, é parte da exortação de Paulo para que os cristãos de Corinto participem da coleta destinada aos pobres de Jerusalém, que enfrentam sérias dificuldades financeiras.
Os textos apontam para o amor que Deus tem pelos seus, para o cuidado que devemos ter uns para com os outros e também para com a totalidade da criação de Deus. O Dia de Ação de Graças serve para nos lembrar que tudo o que temos e somos não é nosso, meu e teu, como muitos teimam em pensar, mas é uma maravilhosa dádiva que recebemos das mãos de Deus a cada novo dia. Serve para lembrar-nos da responsabilidade que temos para que toda a criação usufrua das bênçãos presenteadas por Deus e assim tenhamos vida em abundância.
2. Exegese
O texto de Deuteronômio 8.7-18 faz parte de uma prédica de exortação. Tais prédicas foram pronunciadas na “terra de Moabe”, na forma de um discurso de despedida de Moisés aos israelitas (Dt1.5), pouco antes da chegada à terra de Canaã. Na história da salvação, elas se situam, portanto, entre o tempo da eleição do povo como povo de Deus e o tempo da realização da promessa da terra.
Tais pregações de Deuteronômio espelham fundamentalmente a ideia de que os céus e a terra pertencem a Deus. Ele escolheu o povo de Israel dentre todos os povos como sendo o seu eleito. A esse povo Deus prometeu a salvação. Dessa salvação, de que também falam as exortações, fazem parte a dádiva da terra, a tranquilidade, a riqueza. É um paraíso terrestre. Mas esse é apenas um dos elementos da salvação. O outro elemento é que a fidelidade de Deus deve ser correspondida com o amor a Ele, com a obediência à lei e aos mandamentos. Por isso tais prédicas são também um apelo à obediência à vontade de Deus. Os ouvintes do pregador deuteronomista viviam em época de crise. Os jovens não haviam passado por aquilo que os antepassados passaram. A atuação direta de Deus não é mais vista de forma tão palpável assim como fora no passado. E por isso a fé em Deus corre perigo.
Assim, a pregação deuteronomista tem a finalidade de lembrar que a cada geração a fé tem que se tornar palpável e tão pessoal quanto possível. Esse é um processo dinâmico que não pode parar. Olha-se para o passado para que esse seja atualizado para o momento em que se vive.
O contexto menor de Deuteronômio 8.7-20 aponta para a vida sedentária do povo na terra prometida. É uma prédica que tem o objetivo claro de apontar para a vida do povo. E no ápice dessa prédica encontra-se a exaltação das riquezas dessa terra dada por Deus ao povo eleito. Essa descrição revela traços de perfeccionismo, dando a entender que o povo recebe de Deus quase que um paraíso. O texto de Deuteronômio 8.6-10 exorta o povo para que, em meio a tanta fartura e bênçãos, ele não esqueça o Doador. Afinal, o povo tem tudo apenas como empréstimo, que poderá usufruir em obediência à vontade do Doador, já expressa em Deuteronômio 5.
Israel é um povo que surge da fusão de tradições de diversas tribos. Essas se organizam a partir da aliança feita com Deus no monte Sinai. E essa história é passada de pai para filho através de muitas gerações. Ao passar diante de tais histórias, tinha-se justamente o objetivo de resguardar a igualdade comunitária e a justiça que garantisse a liberdade, enfim a vida de todos, em obediência à vontade de Deus. Deuteronômio relembra o povo que vive numa época de crise do que Deus já realizou em seu benefício no passado. Ele reconta a história do povo para dentro de uma situação nova. É a atualização do passado.
Para um povo que era nômade, a terra representava o bem maior, insubstituível. É ela que lhe garantia a vida, o sustento, a segurança. Outro fator importante para esse povo é que a terra não é conquista, mas sim dádiva para ser usufruída. E por ser dádiva do próprio Deus, ela é perfeita, tem de tudo para todos. Deus não deixa faltar nada. É Ele quem garante a continuidade da vida. A fidelidade a Deus, por seu turno, expressa-se na observância dos mandamentos.
Deus dá a terra aos seres humanos para que dela tirem o sustento. A terra é de Deus, ele é o Senhor. Os seres humanos estão ligados a essa dádiva de Deus de maneira vital, é dela que vem todo o sustento. E, mais ainda, a sua própria origem está ligada à terra, pois do pó foram formados (Gn 2.17).
A terra é de Deus. Essa é uma das confissões básicas do povo de Israel. Dela se deduz que a terra não é propriedade de alguns privilegiados, mas que todos têm o direito a seu usufruto. E o domínio da criação deixada por Deus aos seres humanos inclui toda a natureza. Mas esse domínio também inclui zelo. A terra de Deus tem de tudo, não falta nada. E para que assim possa continuar, o ser humano tem que ser um responsável colaborador da obra criadora de Deus. A riqueza oferecida por Deus existe para todos.
3. Meditação
O culto de Ação de Graças quer estimular o sentido da gratidão. A palavra gratidão deriva de graça. Quem experimentou a graça em momentos de desespero, quando a própria fé perigava balançar, que não sabia como os problemas seriam resolvidos, esse pode nutrir gratidão. A festa de Ação de Graças pela colheita é exatamente isto: quem plantou na esperança da colheita toma agora uma porção (uma parte representativa do todo) do seu trabalho e a oferece como forma de gratidão pelas bênçãos recebidas.
O que temos a agradecer? Temos a agradecer pela vida, dom de Deus que se renova a cada novo dia; agradecer pela família, presente de Deus que nos completa e fortalece; agradecer pelos amigos, companheiros na caminhada da vida; agradecer pelo trabalho, que nos dignifica; agradecer pela natureza, que nos dá uma maravilhosa lição através de suas estações; agradecer pela colheita, fruto do nosso trabalho, do nosso suor e das condições propícias que nos foram dadas; agradecer pelo pão de cada dia, que não tem faltado em nossas mesas, enquanto muitos passam fome; agradecer pela saúde e pelos avanços na medicina; agradecer pelas novas tecnologias que facilitam o nosso dia a dia. Agradecer. Temos tanto a agradecer.
Agradecer é reconhecer quão grande é o amor de Deus por nós. Esse Deus que criou o mundo e tudo o que nele há, que libertou seu povo da escravidão do Egito; que o conduziu pelo deserto até chegar à terra prometida, terra que mana leite e mel; que deu os mandamentos como balizador para a vida de seu povo. Esse Deus de Abraão, de Isaque, de Jacó, de José e de Moisés é o mesmo Deus que hoje nos acompanha, tanto em momentos de alegria como de dificuldades. Ele quer manter comunhão conosco. Ele é o doador de todas as dádivas, de tudo o que temos e de tudo o que somos.
Quando Deus terminou a obra da criação, ele viu que tudo era muito bom. A terra era boa, o ar era puro e a água era fresca, a comida que a terra produzia era saudável. Deus nos deu a terra para tirar dela o sustento, o necessário para viver de forma digna, para haver bem-estar e fartura. A terra é uma das dádivas que Deus nos dá, por que não dizer: um presentão. Assim sendo, somos convidados a cuidar dela, preservá-la, respeitá-la.
De que maneira estamos agradecendo a tudo aquilo que Deus generosamente nos tem dado? Estamos nos colocando inteiramente em suas mãos, como dependentes que somos? Ou só nos lembramos dele nos momentos de dificuldades e ainda por cima culpando-o pelo que está nos acontecendo, dizendo “Deus quis assim… É vontade de Deus…”, quando, na verdade, boa parcela da culpa é nossa. Ou estamos colhendo o que plantamos ou vivendo as consequências das nossas escolhas?
Deus não quer o mal para seus filhos e suas filhas; muito pelo contrário, ele tem pensamentos de paz e de bem para cada um dos seus. Ele quer que todos tenham vida e vida em abundância. Assim sendo, nós somos convidados para o compromisso para com os irmãos e as irmãs necessitados/as, que não possuem o mínimo necessário para ter uma vida digna.
Quando recebemos muito, temos a tendência de nos tornar arrogantes e autossuficientes, afastando-nos dos caminhos de Deus, caminhando rumo ao nada, ao vazio, desviando-nos da vida verdadeira. E quando o vazio nos assusta, somos chamados a cantar como o salmista no Salmo 121.
O dia de Ação de Graças quer lembrar-nos a manifestar nossa gratidão pelo que colhemos com o suor do nosso trabalho. Assim, trazemos diante de Deus toda a nossa realidade e confessamos que, apesar de todas as nossas falhas, fomos abençoados por Deus. Ação de Graças, além de gratidão pelo passado, também quer renovar o pedido de bênção para o futuro.
O sacrifício que Deus espera de nós são o louvor e o serviço. É confessar em palavras e ações a nossa fé no único Senhor e Salvador, que é Jesus Cristo. É crer que tudo o que o Senhor diz é verdade e que suas promessas duram para sempre. Ele é um escudo para todos os que procuram a sua proteção e seguem por seus caminhos.
Deus quer manter conosco uma amorosa relação de Pai e filhos. Ele quer fazer parte do nosso dia a dia. Ele quer nos ajudar em nossas decisões, em nosso planejamento para a nova safra, no plantio, no cuidado e na colheita, em nossa vida familiar, em nossas relações de amizade. Assim como um pai e uma mãe querem estar presentes na vida de seus filhos, assim Deus quer nos acompanhar.
Ação de Graças é:
Agradecer pelo “pão nosso de cada dia”.
Agradecer por Deus nos guiar, fortalecer nas dificuldades pessoais e comunitárias e por dar assistência básica para que a comunidade possa edificar o reino de Deus.
Agradecer porque Deus foi ao nosso encontro e por isso nós vamos ao encontro do próximo, valorizando-o.
Agradecer por podermos, como comunidade, ser luz nas trevas e mudar trevas em claridade.
Agradecer que nós, como comunidade, podemos e devemos participar da transformação política e econômica do nosso país, para que ele se torne cada vez mais a pátria em que nos sentimos acolhidos.
Agradecer é assumir o compromisso pela construção de uma nova sociedade, mais justa e fraterna.
Agradecer é investir na missão.
O que Ação de Graças não é:
Agradecer não é a glorificação do que é meu (minha colheita, minha vida, minha casa, minha família, minha…).
Deus doa aos seres humanos o melhor e em fartura, e essa dádiva nos compromete com o doador e com ela própria, pois ela é a garantia da continuidade da vida. Façamos a nossa parte.
4. Subsídios litúrgicos
Oração de gratidão:
Benigno Deus, Pai misericordioso. Tu nos abençoaste ricamente com as tuas dádivas. Deste-nos os frutos da terra, deste-nos saúde para trabalhar, para criar nossos filhos, para organizar a nossa vida. Queremos agradecer-te de coração por todo o teu amor. Perdoa-nos o nosso esquecimento, perdoa as nossas lamentações. Faze-nos servir em gratidão e amor. Por Jesus Cristo, teu amado filho. Amém.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).