Amados irmãos, amadas irmãs,
no calendário litúrgico da Igreja, hoje nós vivemos o Domingo “Misericordias Domini” – o Domingo da Misericórdia do Senhor. A misericórdia é uma das marcas essenciais da fé cristã. Por isso, sem misericórdia não há cristianismo. A ausência da misericórdia significa a ausência do próprio Cristo – o Senhor misericordioso. Sim! Jesus não é Senhor como os senhores de escravos, ou como os senhores que governam diferentes reinos deste mundo, ou como um senhor que vem para esmagar e oprimir; não! Jesus é Senhor que vem nos servir misericórdia.
A misericórdia é uma das principais características do próprio Deus. Para os hebreus, a misericórdia é sentido e expressão para as entranhas de Deus.1 Quando Moisés pediu que Deus lhe mostrasse a sua glória, Deus lhe respondeu: “terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer”. (Êxodo 33.19); em seguida, ao estar junto a Moisés, o Senhor disse: “ – O Senhor. O Senhor Deus compassivo e bondoso, tardio em irar-se e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações”. (Êxodo 34.6-7); o autor do livro de Lamentações confessará sobre o Deus de Israel: “As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade.” (Lamentações 3.22-23).
A misericórdia nos torna íntimos a Deus. Uma das palavras hebraicas para misericórdia é רַחֲמִים (rahamim) que significa “ventre” ou “útero”, apontando que somos envolvidos pela sua misericórdia. É isso que Deus anuncia ao seu povo que estava no exílio babilônico: “com grande misericórdia, tornarei a acolher a Sião”. (Isaías 54.7). Se podemos ter certeza de algo sobre Deus é que ele é misericordioso. Ele, “com misericórdia eterna” se compadece de nós (cf. Isaías 54.8).
A Páscoa tem tudo a ver com a misericórdia de Deus. E é justamente por isso que o Domingo da Misericórdia do Senhor acontece anualmente no Terceiro Domingo da Páscoa, pois a misericórdia pressupõe o Cristo vivo. Na sua Encíclica “Dives in misericordia” de 30 de Novembro de 1980, o falecido papa João Paulo II escreveu essas palavras que podem ser muito bem acolhidas por nós, evangélicos de confissão luterana. Ele diz:
Na sua ressurreição, Cristo revelou o Deus do amor misericordioso, precisamente porque aceitou a cruz como caminho para a ressurreição. É por isso que, quando lembramos a cruz de Cristo e sua paixão e morte, a nossa fé e esperança se centralizam no Ressuscitado.
É ele o Filho de Deus, que na sua ressurreição desde o mais íntimo experimentou sobre si a misericórdia, isto é, o amor do Pai, que é mais forte que a morte.2
Em sua ressurreição, Cristo experimentou a misericórdia do Pai na força do Espírito Santo. O Cristo vivo é a própria demonstração de que a misericórdia de Deus é presente e que Deus age onde seres humanos nada podem fazer! Desta forma, o amor de Deus não é manifestado de outra forma senão na misericórdia demonstrada ao Filho Unigênito, pois a misericórdia de Deus não pode ser amarrada, trancafiada ou destruída pela morte.
O apóstolo Pedro, autor da carta, também conheceu a misericórdia de Deus. Não havia sido chamado por Jesus porque era digno; seu chamado se deu pela graça de Deus. Pedro era pescador de profissão e vivia na cidade de Betsaida, na Galileia (cf. João 1.44). André, irmão de Pedro, foi quem o apresentou a Jesus (cf. João 1.40-42). Pedro foi chamado a Jesus a uma outra pescaria: a ser pescador de homens (cf. Mateus 4.18-19; Lucas 5.10). Assim, Pedro e Tiago formaram o grupo mais próximo de Jesus, sendo importantes testemunhas dos eventos de seu ministério de três anos – tanto a Transfiguração (cf. Mateus 17.1-9) quanto da sua agonia no Getsêmani (cf. Mateus 26.36-46).
Pedro era um homem corajoso, mas também impulsivo, orgulhoso e arrogante. Quando Jesus caminhou sobre as águas, Pedro quis fazer o mesmo, mas começou a afundar, sendo socorrido pelo Senhor Jesus (cf. Mateus 14.22-23). Quando os soldados chegaram para prender Jesus, Pedro, o orgulhoso, sacou a espada e cortou a orelha do servo do sumo sacerdote (cf. João 18.10). Jesus o repreendeu e curou a orelha do homem, dizendo a Pedro: “ – Guarde a espada na bainha” (João 18.11). Em sua impulsividade, Pedro chegou a prometer que se Jesus fosse crucificado, ele também iria para a cruz (cf. Lucas 22.33). No mesmo momento, Pedro foi advertido por Jesus (cf. Mateus 26.69-75).
Após a dramática crucificação, vem a maravilhosa notícia da ressurreição. Jesus apareceu aos discípulos várias vezes. E Jesus descartou Pedro por causa de seus pecados? Claro que não! Pedro é convidado ao arrependimento, a uma mudança de vida em que a arrogância, o orgulho e a prepotência fossem trocados pelo amor. É assim que a misericórdia de Deus se revela a todos nós: na forma do amor que tolera, inclui e acolhe ao invés de apontar o dedo, julgar ou descartar. Pedro foi encontrado pela misericórdia de Deus. Sua vida foi transformada. Em suas duas cartas – presentes no final do Novo Testamento – encontramos um Pedro diferente daquele dos Evangelhos. Agora, Pedro é um calmo e sereno pastor.
Jesus Cristo crucificado e ressuscitado é o assunto do texto bíblico de 1 Pedro 1.17-22 que ouvimos anteriormente. Para compreendermos estas palavras, convido a trilharmos juntos o texto bíblico em três momentos:
1 SALVOS PELA MISERICÓRDIA DE DEUS (vs. 17-19)
Nossa salvação não depende das nossas próprias obras humanas. Ao contrário, a nossa salvação depende exclusivamente da obra da pessoa de Jesus Cristo, o crucificado e ressuscitado. Pedro diz: “sabendo que não foi mediante coisas perecíveis, como prata ou ouro, que vocês foram resgatados da vida inútil que seus pais lhes legaram, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula”. (1 Pedro 1.18-19).
A nossa salvação não foi comprada com o que há de mais precioso neste mundo – prata e ouro –, mas através daquilo que é mais precioso para o próprio Deus, o Pai: o sangue do seu Filho Unigênito Jesus Cristo. A misericórdia de Deus não é alcançada através dos nossos méritos, mas nos foi oferecida gratuitamente pelo próprio Deus que ofereceu seu Filho a morrer na cruz em substituição a nós – em nosso lugar!
Deus foi misericordioso conosco. Ofertou-nos gratuitamente a sua salvação. Libertou-nos das amarras do pecado, da morte e do inferno. O sangue do Cordeiro de Deus, derramado na cruz, nos lavou de todos os pecados. Assim, não há maior ou menor, mais santos ou menos santos, melhores ou piores, mas apenas cristãos simultaneamente justos e pecadores – por causa de Cristo. A participação da salvação é mérito exclusivamente de Cristo, e não nosso! Cabe a nós viver em gratidão por aquilo que Deus, em Cristo, nos ofereceu: Salvação!
2 A REVELAÇÃO DA MISERICÓRDIA DE DEUS (vs. 20-21)
Como encontrar a misericórdia de Deus? Onde podemos ver a misericórdia de Deus? Onde está a misericórdia de Deus? A resposta é uma só: na contemplação do Cristo crucificado. Ele é a revelação do rosto misericordioso de Deus. É ele mesmo quem foi “manifestado estes últimos tempos, em favor de vocês”. (1 Pedro 1.20).
Jesus Cristo não apenas recebeu a misericórdia de Deus; não! Ele mesmo é a própria revelação da misericórdia de Deus. Ele venceu a morte – bendita a nossa sorte! “Por meio dele, vocês creem em Deus, o qual o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória, para que a fé e a esperança de vocês estejam em Deus” (1 Pedro 1.21). Trago, novamente, palavras de João Paulo II, que nos diz: Ele “se revela como fonte inexaurível da misericórdia, daquele amor que, na perspectiva ulterior da história da salvação, na Igreja nunca pode deixar de demonstrar-se mais forte que o próprio pecado”3. Ou seja: não há outra fonte da qual brota a misericórdia de Deus senão o próprio Cristo crucificado e ressuscitado. E João Paulo II diz mais: “O Cristo pascal é a encarnação última e definitiva da misericórdia, como que sua incorporação e sinal vivo: histórico-salvífico e, simultaneamente, escatológico”4.
A misericórdia de Deus é vista no Cristo pascal, o ressuscitado, que encontramos realmente presente na Ceia do Senhor onde comemos do seu próprio corpo e bebemos do seu próprio sangue sob a forma de pão e vinho. A Ceia do Senhor é manifestação da doação da misericórdia de Deus aos seres humanos pecadores. Por isso, ela mesma é fonte de misericórdia: “porque isto é o meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados.” (Mateus 26.28).
3 A PRÁTICA DA MISERICÓRDIA DE DEUS (vs. 22-23)
A que prática somos chamados a partir da salvação e da revelação da misericórdia de Deus? Quais são as ações que sucedem uma vida agraciada pela misericórdia acolhedora e transformadora de Deus? Como viver a misericórdia de Deus no dia a dia?
A misericórdia de Deus pressupõe o próximo. Não é possível viver a misericórdia sem a relação com o próximo. Praticar a misericórdia significa disponibilidade para estar em relação – seja com amigos ou inimigos. Assim nos diz o Evangelho: “ – E eles lhe perguntarão: “Quando foi que vimos o senhor com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso e não o socorremos?” – Então o Rei responderá: “Em verdade lhes digo que, sempre que o deixaram de fazer a um destes mais pequeninos, foi a mim que o deixaram de fazer.”” (Mateus 25.44-46). Portanto, Cristo é servido por meio do próximo. Agimos com misericórdia a Deus quando nos dispomos à misericórdia aos pequeninos sofredores. Não estamos do lado dos que crucificam; estamos do lado dos crucificados.
Ambrósio (339-397), bispo de Milão (374) na Itália, diz: “Dá comida ao faminto; se não lhe dás comida, tu o estrangulaste, no que toca a ti”5. Omissão e inação também são nossas culpas e pecados. Pecamos também quando deixamos de praticar a misericórdia. Lutero diz: “Este é um aspecto da misericórdia: que se perdoe de bom grado aos pecadores e fracos. O outro é que também se pratique a caridade com aqueles que sofrem carências exteriormente ou que necessitam de ajuda, o que se chama de obras de misericórdia”6. Não somos salvos por nossas obras; mas a pessoa salva pratica boas obras!
Não há como separar a fé da misericórdia. Uma é inerente à outra. Por isso a fé não é vivida de maneira isolada, mas comunitária – pois é na comunidade cristã e nas diferentes comunidades humanas que se pratica a fé através das obras de misericórdia. Quem quer viver a fé apenas para si, retido à leitura bíblica e oração domésticas, está longe de descobrir o verdadeiro sentido da fé cristã.
Amados irmãos, amadas irmãs,
como Igreja de Jesus, deveríamos gritar: “Que haja mais misericórdia! Que os famintos sejam alimentados; que os sedentos recebam água potável; que os que passam frio sejam cobertos de roupas, cobertores – e de afeto, calor humano; que os oprimidos e escravizados sejam libertos; que as injustiças caiam; Deus quer misericórdia e não sacrifícios!” Além de gritar, é preciso lutar! Com coragem! Com resistência e resiliência!
Nós somos pessoas salvas pela misericórdia de Deus; nós podemos ver a revelação da misericórdia de Deus no Cristo pascal presente na Santa Ceia; agora, é preciso praticar a misericórdia: “Tendo purificado a alma pela obediência à verdade, e com vistas ao amor fraternal não fingido, amem intensamente uns aos outros de coração puro”. (1 Pedro 1.22). Nós fomos regenerados! Amemos uns aos outros de verdade – e não com fingimento. Não basta a aparência: é preciso transformar a nossa essência!
Vamos viver a Páscoa no dia a dia! Vamos viver diariamente aquilo que promove a vida – e vida digna e em abundância! Vivam a vida de Cristo! Vivam o Reino de Deus! Vivam a vida com alegria! Vivam a vida com amor! Vivam a vida com misericórdia! Vivam a vida para Deus e para o próximo!
Que não apenas hoje, mas que todos os dias sejam dias de misericórdia, graça e amor. Que todos os dias sejam dias de luta pela dignidade humana. Que todos os dias sejam dias de proclamar que a morte não é vitoriosa. Que todos os dias vivamos aquilo que aos Domingos ouvimos. Que todos os dias sejam dias de acolhimento, justiça e paz.
Viva a Páscoa! Viva a Misericórdia!
Amém.
3º DOMINGO DA PÁSCOA | BRANCO | CICLO DA PÁSCOA | ANO A
23 de Abril de 2023
P. William Felipe Zacarias
1 Cf. WESTPHAL, Euler Renato. O Deus cristão: um estudo sobre a Teologia Trinitária de Leonardo Boff. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 82,
2 DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 3. ed. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2015. p. 1104.
3 DENZINGER, 2015. p. 1105.
4 DENZINGER, 2015. p. 1105.
5 AMBRÓSIO. Expositio in psalmarum 118, sermo 12,44. apud: LUTERO, Matinho. Das Boas Obras – 1520. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – O Programa da Reforma – Escritos de 1520. 4. ed. v. 2. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2016. p. 167.
6 LUTERO, Martinho. Mateus 5-7 – 1530–1532. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – Interpretação do Novo Testamento – Mateus 5-7 – 1 Coríntios 15 – 1 Timóteo. v. 9. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2005. p. 47.