Doutrina da justificação — no limiar de um acordo ecumênico?
Pastor Dr. Gottfried Brakemeier
(Versão atualizada do artigo publicado em Teocomunicação, v. 26, n° 113, 1996, p. 331-343.)
I. O projeto
Desde o ano de 1995 está em estudo a proposta de uma Declaração Conjunta católica/luterana acerca da doutrina da justificação por graça e fé. O texto encaminhado às instâncias eclesiásticas competentes para exame e posicionamento traz as assinaturas do Presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos da Cúria Romana, de um lado, e do Secretário-Geral da Federação Luterana Mundial, de outro. Trata-se, pois, de uma iniciativa em alto nível. Por ora, o texto tem caráter inoficial, ainda que já tenha recebido muita atenção por parte das Igrejas. Houve encaminhamento de várias propostas de emenda e de alteração. Para examiná-las tem-se constituído uma comissão mista. Esta se reuniu duas vezes em Würzburg, na Alemanha, em 07.06.1996 e em 18.01.1997, revisou o texto e o submete agora, em redação final, para apreciação e a devida aprovação.
As reformulações exigiram a alteração do cronograma. Originalmente tinha-se esperado poder firmar o acordo em julho de 1997, quando da celebração do Cinquentenário da Federação Luterana Mundial por ocasião de sua 9ª. Assembleia Geral em Hong Kong. Isto já não mais é possível. Pode-se lamentar o atraso. Mas pode-se ver nele também um sinal da seriedade com que as Igrejas acolhem a proposta e a discutem. Prevê-se a assinatura da Declaração, em ato solene, numa data a combinar durante o ano de 1998. Esperamos ardentemente seja exitosa essa iniciativa. Se for, será inaugurado um novo capítulo na história de ecumenismo.
Para aquilatar a envergadura do projeto, necessário se faz lembrar que a doutrina da justificação tem sido, por excelência, o estopim das polêmicas na época da Reforma. Selou a divisão da Igreja então ocorrida. Todas as demais divergências tiveram ai sua raiz. De que maneira a pessoa humana participa no ato de sua justificação por Deus? Desempenharia um papel puramente passivo? Nesse caso, seria eliminada a responsabilidade humana perante o evangelho. É do que a parte católica acusava a Reforma. Se, inversamente, o ser humano deve contribuir com algo próprio para a sua salvação, por acaso não se aniquila a gratuidade da obra redentora de Deus? É o perigo que os luteranos viam consumado na posição católica.
Coerentemente Lutero qualificou a justificação somente por graça como sendo o artigo com o qual a Igreja permanece ou sucumbe. Opunha-se a qualquer diminuição da graça divina. Enquanto isso, o Concílio de Trento estabeleceu: Quem afirmar que o livre-arbítrio do ser humano, movido e despertado por Deus, em nada pode cooperar a se equipar e preparar para a obtenção da graça da justificação, mediante assentimento ao Deus que desperta e chama; e que nem pode dissentir, se quisesse, permanecendo antes inativo como coisa desanimada e comportando-se de maneira puramente passiva: seja excluído. As divergências pareciam irreconciliáveis, resultando nas condenações doutrinárias recíprocas, contidas nos decretos do Concílio de Trento e no Livro de Concórdia que reúne as confissões luteranas da época.
Essas condenações oneraram pesadamente as relações entre as Igrejas no passado. Pergunta-se se ainda hoje devem ser motivo de separação. É bem verdade que já se registram mudanças significativas nos relacionamentos ecumênicos. O Concílio Vaticano II reconheceu sinais de santificação e verdade também fora do âmbito da Igreja Católica Romana, já não mais permitindo a condenação sumária de membros de outras Igrejas. Analogamente as Igrejas luteranas jamais negaram poder haver pregação pura do evangelho e administração correta dos sacramentos também na Igreja Católica, critérios estes que, conforme a Confissão de Augsburgo, identificam a verdadeira Igreja de Jesus Cristo. É motivo de alegria constatar que a consciência desses fatos tem substituído o gélido clima de confronto, tão característico de tempos passados, por uma nova fraternidade.
E no entanto, permanecem excludentes as instituições eclesiásticas, vistas como portadoras de deficiências de parte à parte, exatamente em razão de questões doutrinárias não resolvidas. O projeto da Declaração Conjunta se propõe avançar nesse tocante, colocando em pauta o assunto no qual mais se têm inflamado os conflitos teológicos do século XVI. Um consenso abriria as portas para outros acordos em direção à sempre maior documentação da unidade visível da Igreja.
II. Os objetivos
Quanto ao conteúdo, a Declaração não traz nenhuma novidade. Colhe os frutos de diálogos doutrinais anteriores. Já o Relatório de Malta, com o título O Evangelho e a Igreja, produzido pela Comissão Mista Internacional Católico-Romana/Evangélico-Luterana e publicado em 1972, havia constatado: Hoje se esboça sobre este assunto (sc. a justificação) um amplo consenso (n° 26). Desde então uma série de outros estudos corroborou a afirmação. O próprio texto da Declaração menciona, além do Relatório de Malta, o resultado do diálogo católico/luterano nos Estados Unidos da América (1987), o estudo Lehrverurteilungen kirchentrennend? (Condenações Doutrinais — Divisoras da Igreja?) da Alemanha (1986) e a mais recente publicação da Comissão Mista Internacional sob o título Kirche und Rechtfertigung (Igreja e Justificação) de 1994 (entrementes também disponível em tradução espanhola). Diversos anexos remetem para essas e outras fontes. Diante de tamanha nuvem de testemunhas cabe de fato perguntar se o tempo não está maduro para ratificar o êxito que os diálogos conseguiram lograr.
É precisamente isto o que a Declaração Conjunta tem em vista, a saber: oficializar um acordo teológico. Nada lhe acrescenta. Tão-somente o acolhe. É um exemplo de recepção dos progressos teológicos no caminho para a unidade. Documentaria, em caso de aprovação, a conversão desses progressos em decisão político-eclesiástica.
A medida obviamente implica algo de reconhecimento mútuo das instituições. Mas as aspirações não chegam a esse ponto. Em vista das muitas outras questões a discutir, a que tem aludido, entre outros, o Papa João Paulo II, em sua Encíclica Ut unum sint, a meta permanece modesta. Pretende-se seja constatado que as condenações doutrinais de outrora, concernentes à justificação, não mais atingem os parceiros de hoje. Diz o parágrafo 7 da Declaração ser ela movida pela convicção de que a superação das tradicionais controvérsias não minimiza a separação havida nem desabona a tradição e a história das Igrejas. Acredita, porém, que no decorrer da história nossas igrejas chegam a novas percepções e (…) que ocorrem desdobramentos que não só lhes permitem, mas ao mesmo tempo também exigem que as questões e condenações divisoras sejam examinadas e vistas a uma nova luz.
Não se trata de corrigir a história, portanto. Seria arrogância preconizar a revisão do Concílio de Trento ou das Confissões Luteranas. Do mesmo modo, porém, seria cegueira e até descrença negar que o povo de Deus em sua jornada seja incapaz de crescer em compreensão comum do evangelho. Se assim fosse, seria em vão todo trabalho teológico. Por isso, a pergunta não é se as condenações, naquela época, eram procedentes ou não, e sim se elas ainda hoje se aplicam. Não se trata de anulá-las, mas de verificar sua validade 450 anos depois.
O texto da Declaração é muito preciso nesse ponto. Diz que algumas das condenações não foram simplesmente infundadas. Elas continuam tendo o significado de advertências salutares (par. 42). Obrigam, pois, ao exame criterioso do que as Igrejas ensinam hoje e como interpretam a tradição. Simultaneamente, porém, exige-se prestação de contas sobre a legitimidade de sua vigência sob circunstâncias incisivamente alteradas. Conforme a Declaração, essa legitimidade já não mais existe.
O acordo pretendido será parcial. Concentra-se num só tópico dogmático, sob exclusão de outros que, entrementes, igualmente têm sido discutidos, a exemplo de eucaristia, ministério, Igreja. O entendimento em assuntos de doutrina é possível. Quem tem participado de conversações interdenominacionais certamente o confirmará. Surpreende o quanto nos é possível afirmar (e fazer) em conjunto, sendo que as divergências remanescentes normalmente não ultrapassam o grau das que existem também internamente em cada uma das Igrejas. Há, pois, outros acordos semelhantes a planejar. Subsídios já existem.
Nessas circunstâncias, a Declaração sobre a justificação é uma espécie de teste: será possível elevar as convergências teológicas ao nível das estruturas, atribuir-lhes oficialidade e instrumentalizá-las como passos de aproximação das instituições? A limitação à doutrina da justificação, sob esse aspecto, é vantagem. Projetos por demais ambiciosos costumam redundar em fracasso. É preferível, pois, iniciar em marcha lenta, dando passos, não saltos. A Declaração será um ensaio, uma investida pioneira, de cuja sorte, em boa medida, vai depender a velocidade com que avançará a nave do ecumenismo intereclesiástico em futuro próximo.
Aliás, a Declaração pertence ao tipo dos acordos bilaterais. Será firmado entre católicos e luteranos. E todavia, não há dúvidas quanto ao profundo significado de que ela se reveste para todo o protestantismo e o mundo ecumênico em geral. O objetivo não consiste num acerto particular, em benefício de apenas este ou aquele parceiro, ou então, pior, na criação de novas facções da cristandade. A Declaração tem em vista o evangelho, não interesses partidários luteranos e católicos. O que se tenta promover é a unidade visível da Igreja de Cristo, não simplesmente a de duas instituições, embora uma coisa implique a outra. De qualquer maneira, o projeto quer ser visto nos horizontes do movimento ecumênico global, do qual se sabe devedor.
Apesar da concentração no tema da justificação e nas condenações que lhe dizem respeito, são abrangentes as dimensões teológicas. Pois justificação é assunto complexo. A Declaração realça uma série de aspectos importantes. Fundamenta a superação dos tradicionais antagonismos nesses detalhes e, simultaneamente, revela o método que o permite. Convém, pois, olhar mais de perto o conteúdo do acordo.
III. As dimensões teológicas
Não é nenhum segredo que o recurso comum à Bíblia tem sido uma das principais forças propulsoras do ecumenismo em nossos dias. Vemo-lo confirmado mais esta vez. A Declaração inicia com o testemunho bíblico. Em sua versão final, a parte respectiva sofreu considerável ampliação em comparação com a primeira redação. Sublinha-se assim a importância que se dá à base bíblica comum de todas as Igrejas. É lembrado o amor que Deus tem ao mundo (Jo 3.16), constatando-se que esta mensagem se desdobra nas Escrituras Sagradas de várias maneiras: como libertação, reconciliação, paz com Deus, nova criação e outras. Salienta-se entre esses conceitos a descrição como ‘justificação’ do pecador pela graça de Deus na fé (Rm 3.23-25), que foi destacada de maneira especial no tempo da Reforma. (par. 9)
Justificação — isto engloba o perdão dos pecados, a libertação do poder do pecado, da morte e do jugo da lei, bem como a aceitação na comunhão com Deus. Tudo isso provém somente de Deus, por amor de Cristo, por graça, pela fé no ‘evangelho de Deus (…) com respeito a seu Filho’ (Rm 1.1-3). (par. 11) Ademais, está claro que essa fé deve tornar-se ativa no amor e trazer frutos do Espírito (par. 12). Portanto, afirmam-se simultaneamente o sola gratia e a necessidade de uma fé atuante. Conclui o parágrafo 15, dizendo: Confessamos juntos: somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para boas obras.
À luz da exegese bíblica, pois, as tradicionais divergências confessionais se amenizam ou então desaparecem de vez. Para tanto, dois exemplos:
1. A Declaração reconhece a centralidade da justificação no todo da soteriologia cristã. Diz o parágrafo 17: Compartilhamos da convicção de que a mensagem da justificação nos remete de forma especial ao centro do testemunho neotestamentário da ação salvífica de Deus em Cristo (…). Eis por que essa mensagem não representa uma só parte no todo da doutrina cristã da fé. Ela é critério indispensável que visa orientar toda a doutrina e prática de nossas Igrejas incessantemente para Cristo. (par. 18) De fato, a compreensão profunda que a Bíblia tem de justiça de Deus impossibilita inserir justificação como apenas um conceito soteriológico entre outros, muito embora todas as verdades da fé devam ser vistas numa conexão interna entre si (ibid). Justificação expressa algo fundamental. É um critério teológico, no que a Reforma luterana tem insistido com razão. Portanto, a exegese bíblica revela que as divergências na valorização da justificação decorreram de uma conceituação diferente do termo, não necessariamente de uma divergência na causa.
2. A Bíblia possui uma concepção dinâmica de justificação. Esta não deixa a pessoa como está. É o poder transformador de Deus que nela se manifesta, uma ênfase justa da tradição católica. É interessante como a Declaração formula nesse tocante a convergência. Transcrevemos aqui os parágrafos 19-21:
19) Confessamos juntos que o ser humano, no concernente à sua salvação, depende completamente da graça salvadora de Deus. A liberdade que ele possui para com as pessoas e coisas do mundo não é liberdade com relação à salvação. Isto quer dizer que, como pecador, ele se encontra sob o juízo de Deus, sendo por si só incapaz de se voltar a Deus em busca de salvamento, ou de merecer sua justificação perante Deus, ou de alcançar a salvação pela própria força. Justificação acontece somente por graça. Porque católicos e luteranos confessam isso conjuntamente, deve-se dizer:
20) Quando católicos dizem que o ser humano coopera no preparo e na aceitação da justificação por assentir à ação justificadora de Deus, eles vêem mesmo nesse assentimento pessoal um efeito da graça, e não uma ação humana a partir de forças próprias.
21) Segundo a concepção luterana o ser humano é incapaz de cooperar em sua salvação, porque como pecador ele resiste ativamente a Deus e à sua ação salvadora. Luteranos não negam que o ser humano possa rejeitar a atuação da graça. Quando sublinham que o ser humano pode tão-somente receber (mere passive) a justificação, rejeitam com isso qualquer possibilidade de uma contribuição própria do ser humano para sua justificação, mas não negam sua plena participação pessoal na fé, que é operada pela própria palavra de Deus.
Em resumo: passividade nos luteranos não significa apatia; cooperação nos católicos não significa iniciativa própria. O ser humano é integralmente receptor da salvação. Todavia, não o é como peça morta, e, sim, como pessoa viva da qual se pede resposta à palavra e ao agir de Deus. A graça não despersonaliza o ser humano.
O pano de fundo bíblico transparece de maneira mais ou menos nítida também nas demais questões dogmáticas listadas na Declaração como implicações da justificação. Referem-se, entre outras, à pergunta tão crucial se justificação se limita ao perdão dos pecados ou se é eficaz para produzir renovação. Em outros termos: a pessoa é apenas declarada justa ou é realmente feita justa? A primeira posição costumava ser atribuída aos luteranos, a segunda, aos católicos. É uma falsa alternativa, como bem o constata o artigo 22. A formulação é altamente instrutiva:
22) Confessamos juntos que Deus, por graça, perdoa ao ser humano o pecado, e o liberta ao mesmo tempo do poder escravizador do pecado em sua vida e lhe presenteia a nova vida em Cristo. Quando o ser humano tem parte em Cristo na fé, Deus não lhe imputa seu pecado e, pelo Espírito Santo, opera nele um amor ativo. Ambos os aspectos da ação graciosa de Deus não devem ser separados. Eles estão correlacionados de tal maneira, que o ser humano, na fé, é unido com Cristo, que em sua pessoa é nossa justiça (1 Co 1.30): tanto o perdão dos pecados quanto a presença santificadora de Deus (…).
Vários outros aspectos da justificação, matéria de ferozes polémicas no passado, são abordados de forma análoga. Não podemos ser exaustivos. Além das já apresentadas, mencionamos ainda as seguintes questões: como entender que a pessoa justificada continua pecando’? Portanto, qual é o sentido do simul justus et peccator, de que fala a tradição luterana? De que deriva a certeza da salvação? Como definir a relação entre lei e evangelho? E como interpretar, quando a tradição católica qualifica boas obras como sendo meritórias?
A esse último assunto voltaremos abaixo. Por ora constatamos que em todas essas questões tradicionalmente tão controvertidas foi e é possível uma notável aproximação das posições. Essa já em si mesma, sem o atestado da oficialidade, representa um fenômeno ecumênico digno do mais alto apreço. Elimina os preconceitos que têm envenenado o convívio das Igrejas. Acaba com mal-entendidos e substitui alvissareiramente a divergência pela convergência. Isso, primordialmente, graças ao recurso comum à Bíblia, como dissemos. Entretanto, cabe chamar a atenção igualmente ao novo método que tem pautado os diálogos ecumênicos e conduzido a surpreendentes resultados.
IV. O método e a natureza do Consenso
As passagens transcritas acima já têm elucidado o método seguido na Declaração. Inicia-se com o testemunho comum para então ser constatado que as peculiaridades confessionais remanescentes já não mais são motivo de conflito e muito menos de separação das Igrejas. A Declaração é uru exemplo clássico de unidade na diversidade reconciliada, ou seja, ela busca a unidade das Igrejas, não suprimindo a diversidade, e, sim, compatibilizando-a. Que nesse processo as tradições confessionais também se modificam, é óbvio. Ecumenismo sério sempre significa aprendizagem. Mas ninguém é obrigado a renunciar à sua identidade. O método que o permite alicerça-se em três princípios:
1. Diferença de formulação e vocabulário não indica obrigatoriamente contrariedade de posição, assim como identidade verbal não representa nenhuma garantia de compreensão igual. Por isso importa perguntar pela intenção que está por trás das palavras. Como devem estas ser entendidas, a exemplo de passividade ou cooperação? Consensos não se estabelecem pela mera uniformização de sentenças. Exigem, antes, o comum acordo quanto ao significado das assertivas. Que é que a outra parte queria e quer dizer com exatamente esta formulação?
2. As divergências doutrinais do passado têm seu contexto histórico. Este não as invalida, mas exige seja respeitada a tendência à distorção das posições alheias, típica de situações de conflito. Cabe perguntar, portanto, se as divergências herdadas são tamanhas como a polêmica alega e se o testemunho comum não merece atenção prioritária. Faz diferença para o diálogo ecumênico se o ponto de partida é tomado nos fatores divisórios ou nos que nos são comuns. A Declaração busca as afinidades por trás das polêmicas.
3. Também posições unilaterais, assumidas em situações conflituosas, podem defender causas justas. Precisam ser complementadas ou até corrigidas, isto sim. Mas não são erradas e, desde já, refutáveis. Consequentemente é essencial perguntar pela verdade que está por trás das unilateralidades, a fim de que seja respeitado o evangelho em seu todo. É o que a Declaração se propõe: tenta detectar a legitimidade teológica, mesmo relativa, oculta nas posições em debate. Procura fomentar, assim, uma compreensão mais profunda de parte a parte e proporciona a sensação de surpreendente sintonia evangélica na catolicidade da Igreja de Cristo.
Os avanços ecumênicos na confissão da fé comum devem ser atribuídos em boa medida a esse método. Ele é expressão do novo espírito, que sabe ser a unidade em Cristo anterior às divisões dos cristãos. Sem essa consciência, fica difícil vencer os fossos separativos. Portanto, ecumenismo não pode produzir a unidade. Cabe-lhe, antes, tornar visível a unidade que em Cristo já nos foi dada. Todo esforço ecumênico entre as Igrejas parte desse consenso fundamental. O método acima descrito procura tão-somente corresponder-lhe. Por isso, não julga precipitadamente. Respeita o parceiro e assegura haja verdadeiro diálogo.
Mas ele tem seu preço. Somente em casos excepcionais serão alcançadas formulações uniformes das convicções comuns. Os consensos permanecerão diferenciados, razão pela qual há quem prefira falar em convergências. A terminologia é de importância secundária. De qualquer maneira, o consenso diferenciado não exige a adoção do discurso da outra parte. O que importa é a concordância na compreensão e interpretação do respectivo tópico doutrinal, ou seja, o comum acordo na causa. Desde que compatíveis com esta, ênfases confessionais não são abolidas, mas assumidas. O consenso diferenciado, pois, não nivela as articulações próprias das confissões, antes as reconcilia. Tira-lhes o caráter e o conteúdo mutuamente excludentes, para colocá-los a serviço um do outro. Toda unidade requer consenso. Este, porém, a fim de não redundar em imposição violenta e descaracterização do parceiro, requer espaço para a manifestação de legítima diversidade. Cresce no mundo ecumênico o consenso nessa questão.
É o que também está em evidência na Declaração. Exemplificamos no subtema As boas obras das pessoas justificadas e na natureza meritória dessas obras. Novamente o ponto de partida é a confissão comum: Confessamos juntos que boas obras — uma vida cristão em fé, esperança e amor — se seguem à justificação e são frutos da justificação. (par. 37) Portanto, a vida cristã é uma vida atuante, pois a fé autêntica atua pelo amor. Boas obras são exigidas da pessoa cristã. Quanto a isso não há nenhuma divergência. A polêmica se inflama na palavra mérito ou meritório com que a parte católica costuma qualificar essas obras. Não significaria isso um prejuízo para a graça de Deus e a anulação da gratuidade da justificação? Os termos do parágrafo 38 da Declaração dizem que não:
38) De acordo com a concepção católica, as boas obras, tornadas possíveis pela graça e pela ação do Espírito Santo, contribuem para uni crescimento na graça de tal modo que a justiça recebida de Deus é conservada e a comunhão com Cristo, aprofundada. Quando católicos sustentam o caráter meritório das boas obras, querem dizer que, segundo o testemunho bíblico, essas obras têm a promessa de recompensa no céu. Querem destacar a responsabilidade do ser humano por seus atos, mas não contestar com isso o caráter de presente das boas obras nem, muito menos, negar que a justificação como tal permanece sendo sempre presente imerecido da graça.
O pensamento luterano pode bem ir ao encontro de tal interpretação, como mostra o parágrafo que segue:
39) Também entre os luteranos existe a ideia de uma preservação da graça e de um crescimento em graça e fé. Acentuam, contudo, que a justiça, como aceitação da parte de Deus e como participação na justiça de Cristo, sempre é perfeita; mas dizem ao mesmo tempo que seu efeito na vida cristã pode crescer. Quando veem as boas obras da pessoa cristã como frutos e sinais da justificação, não como méritos próprios, não deixam, no entanto, de entender a vida eterna, conforme o Novo Testamento, como galardão imerecido no sentido do cumprimento da promessa divina aos crentes.
De fato, a palavra mérito é irritante para os luteranos. Eles continuam a perguntar pela adequacidade desse termo. Se este, porém, for interpretado como sinônimo da recompensa (galardão) que Deus, conforme Mt 6.1-4, não fica devendo à boa obra, o entendimento se toma possível. Mérito, então, não equivale a pagamento devido, e sim ao reconhecimento que Deus se digna conceder por livre e espontânea vontade. Há certa proximidade, nesse caso, entre mérito e bênção. Ambos são graça pela qual, entretanto, compete pedir e trabalhar (cf. Fp 2.12s.).
Portanto, o ser humano nada pode acrescentar por esforço próprio à justificação, ainda que ela deva ser recebida e concretizada em boas obras. Os luteranos advertem que o termo mérito é suscetível de mal-entendidos. Os católicos, por sua vez, alertam que a graça não extingue a responsabilidade humana. Ainda assim, há um consenso. Ele é diferencia-o, e todavia transparente para a base comum. As nuanças que permanecem, acaso legitimam a permanência das condenações do passado com sua força divisória nas Igrejas? Eis a questão.
V. Expectativas
A forma da tramitação da Declaração até a sua aprovação varia de acordo com as estruturas das entidades que a devem responsabilizar. A Federação Luterana Mundial não possui autoridade doutrinal própria. Depende de consulta às Igrejas-membro, o que exige maiores espaços de tempo. Eventuais reações negativas à Declaração deverão ser explicitamente fundamentadas. Mas continuamos confiantes na ratificação maciça do acordo pela comunhão de Igrejas luteranas. Também a Igreja Católica costuma tomar decisões de tamanha envergadura não sem pareceres de diversas instâncias. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) está entre as convidadas a opinar. Em razão da responsabilidade comum da Igreja Católica Romana e da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) resolveu-se realizar um seminário conjunto sobre o assunto, resultando daí uma só manifestação de decidido apoio ao projeto — um bonito exemplo ecumênico, recomendado à imitação.
Estamos em vésperas de um novo milênio. Ele requer seja lançado fora o velho fermento da discórdia entre os cristãos (cf. I Co 5.7) e iniciada nova caminhada, desta vez lado a lado. O imperativo mais forte, porém, provém da própria causa. Se é pela graça de Deus que somos o que somos (1 Co 15.10), por que não confessá-lo cada qual com a sua voz e ainda assim unanimemente? A confissão da graça, se autêntica, é necessariamente ecumênica.
Bem, aguardemos o resultado. Por enquanto o texto do projeto não foi publicado. Foi remetido apenas em língua alemã e inglesa, embora sofresse numerosas traduções nas Igrejas que com ele se ocupam. Devido ao caráter inoficial da Declaração, coube às partes em diálogo decidir sobre a divulgação interna, cada qual segundo os seus critérios. E no entanto, embora não-público, não se trata de um texto secreto. Ele quer e precisa ser discutido, justamente como preparação da pretendida assinatura conjunta.
Finalizo perguntando pelo possível significado de tal Declaração Conjunta para a América Latina. A iniciativa pode parecer não-prioritária. Os luteranos perfazem absoluta minoria neste continente, registrando-se, pois, uma assimetria quantitativa nas relações católico-luteranas. Ademais, prevalece em muitas pessoas forte suspeita quanto aos diálogos doutrinais. Seriam um luxo, assunto para especialistas somente, coisa de Primeiro Mundo, sendo as urgências latino-americanas bem outras. Sofismas teológicos não cabem, quando o povo tem fome. Há algo de verdade nesta argumentação. E no entanto, é inegável também que o combate à fome é debilitado pela divisão dos cristãos enquanto persiste. A miséria em nosso continente é insistente apelo à unidade das Igrejas. E no entanto, por si só, não é fundamento suficiente. A unidade precisa da confissão comum da fé. A Declaração significa um passo adiante nessa caminhada.
E o assunto de que trata é deveras central. Não se discutem sofismas. Esperamos que a matéria seja refletida também a nível das comunidades. Ver-se-á que vale a pena. Pois justificação, com as implicações que tem, está no âmago do evangelho. Possui alta relevância para o contexto latino-americano, onde prevalece a lei da produção (= obras) e graça é vista como algo obsoleto. Qual é o discurso das Igrejas nessa situação? Pode ser que a terminologia usada seja outra. Em vez de justificação prefere-se falar em nosso continente em libertação ou Reino de Deus. Mas a causa subjacente deve ser a mesma, se é que pregamos de fato o evangelho. Se no século XVI se discutia até que ponto e como o ser humano deveria contribuir com algo próprio para a sua justificação, discutimos nós na América Latina até que ponto e como devemos contribuir para a edificação do Reino de Deus.
Discussões sobre tais perguntas não são supérfluas. Sem elas a práxis está ameaçada de perverter-se, e a unidade das Igrejas permanecerá alvo distante. Por tudo isso espera-se que a Declaração Conjunta, uma vez oficializada, desenvolva relevância também para a América Latina, como reflexão teológica sobre nosso discurso e nossa prática, e como impulso ecumênico.
Bibliografia
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WEBER, Bertoldo. O diálogo católico-luterano internacional : resumo histórico. Estudos Teológicos, v. 22, n. 3, p. 271-283, 1982/3.
Veja:
Doutrina da Justificação por Graça e Fé
Apresentação — Pastor Huberto Kirchheim
Apresentação — Dom Ivo Lorscheiter
Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação
Declaração conjunta da Federação Luterana Mundial e da Igreja Católica Romana sobre a doutrina da justificação — Dom Aloísio Lorscheider
Doutrina da justificação — no limiar de um acordo ecumênico? – Pastor Dr. Gottfried Brakemeier
A doutrina da justificação por graça e fé em Martim Lutero – Pastor Dr. Silfredo B. Dalferth
A Comissão Mista Nacional Católico-Luterana — Pastor Bertholdo Weber
Seminário Teológico Luterano-Católico sobre a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação — Parecer — Pastor Huberto Kirchheim e Dom Ivo Lorscheiter
Estudos bíblicos sobre o tema igreja e justificação – Prefácio
Estudo 1 – Justificação e Igreja
Estudo 2 – Jesus Cristo como único fundamento da Igreja
Estudo 3 – A Igreja do Deus Triúno
Estudo 4 – A Igreja como recebedora e mediadora da salvação
Estudo 5 – A missão e comunhão da Igreja