Tempo de Deus, nossas ações
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Eclesiastes 3.1-13
Leituras: Mateus 25.31-46 e Apocalipse 21.1-6a
Autoria: José Manuel Kowalska Prelicz
Data Litúrgica: Véspera de Ano Novo
Data da Pregação: 31/12/2019
1. Introdução
Estamos virando o ano, em nosso caso, trocamos 2019 por 2020. A celebração deste culto não teve motivação incialmente eclesial, mas terminou sendo incorporado no calendário litúrgico. Aqui vemos como a cultura também influencia a igreja. A determinação de que o ano civil terminasse em 31 de dezembro não foi eclesial. Mesmo assim, como igreja aproveitamos o momento secular da troca de calendário para pregar o evangelho. Estamos numa ocasião especial, a transição entre olhar o ano que passou e prever o ano que virá sob o olhar divino.
Todos os textos bíblicos foram escolhidos ao redor da temática da virada do ano. Por isso, à diferença de outras ocasiões, temos coerência interna. Em nosso caso, os textos gravitam entre a majestade divina e o agir humano. No Evangelho de Mateus 25, Jesus em glória julga as pessoas de acordo com o seu agir diante daqueles que mais necessitavam. Em Apocalipse 21, fala-se sobre o futuro e como a ação divina determina tudo, levando a humanidade para uma nova existência, na qual não existirão os problemas atuais.
2. Exegese
Recomendo a leitura sobre a origem do livro, autoria e contexto no PL 35. No presente texto, queremos somente ressaltar, junto com Andiñach, dois detalhes: a vinculação do livro com a Festa das Cabanas, em que a obra “não tende ao pessimismo, mas a aceitar a vontade de Deus, seja qual for o curso da história que nos compete viver” (ANDIÑACH, 2015, p. 411); por outro lado, também lembrar que a expressão hebel, muitas vezes traduzida por vaidade, “no contexto da obra seu sentido é fugaz, transitório, perecível […] Não deve ser confundido com superficial ou degenerado, mas expressa essa condição de fugacidade pela qual tudo passa e vai embora sem deixar rastros” (ANDIÑACH, 2015, p. 415).
Com esses comentários iniciais, podemos passar ao nosso texto em estudo. Uma primeira observação é que literariamente ele consta de duas partes, uma em verso (3.1-8) e outra em prosa (3.9-13). A delimitação inicial é dada pelos versos, mas o final em prosa poderia ter incluído os versículos 14 e 15.
Versículos 1 a 8 – A parte poética versa sobre o tempo e as possíveis ações nele realizáveis. Ao todo, encontramos 29 vezes a palavra ‘et (tempo entendido como o tempo usual, período). Depois de um verso introdutório (v. 1), onde é indicado, o poema passa por uma série de verbos antônimos colocados em pares, onde um é positivo e o outro é negativo. Cada versículo (v. 2 ao 8) apresenta dois pares de verbos. Vale ressaltar que os verbos indicam ações bem corriqueiras como abraçar, rir ou chorar, assim como também questões existenciais como nascer ou morrer, ter guerra ou paz. Os 28 verbos se abrem diante do leque da vida corriqueira dessa época, homens e mulheres são incluídos com as suas ações dentro do poema.
Em geral, as versões bíblicas seguem traduções coerentes com o seu estilo e adequadas ao texto original. Apresentamos as seguintes exceções: o versículo que mais apresenta divergência nessa parte é o v. 1: a NTLH adiciona “mundo”, a ARA e NAA adicionaram “tempo” antes de “determinado” para facilitar o entendimento, mas considera-se que a NVI tem uma melhor tradução para esse verso inicial; no v. 4 a NTLH é a única que traduz o verbo raqad no piel como dançar e não saltitar; no v. 5, NVI e NTLH interpretam o tempo de deixar/afastar-se de abraçar, NAA/ARA como tempo de afastar (NTLH) ou de se conter (NVI); no v. 6, a NVI troca o ‘abed – perder por desistir, a NTLH interpreta atualizando com economizar e desperdiçar; no v. 8, a NVI interpreta guerra e paz como tempo de lutar e tempo de viver em paz.
Versículos 9 a 13 – Na parte em prosa, percebemos a seguinte estrutura:
9 e 13 – O proveito
10 e 12 – Observação e saber
11 – A impossibilidade de entender plenamente as obras de Deus
O proveito – O v. 9 troca a ênfase do tempo para o resultado daquilo que a pessoa que trabalha esforçadamente ou labuta ganha. Se os versículos 1 a 8 trouxeram diversas possibilidades na existência humana, aqui é perguntado sobre o propósito de tudo aquilo que cansa ou afadiga. Somente a NTLH troca amel – trabalhador – por pessoa, suavizando o pensamento do versículo, pois amal significa canseira, fadiga, labuta. Assim se está falando não que qualquer pessoa, mas daquela que se cansa com o seu trabalho árduo.
No v. 13 vemos o que deveria ser o resultado, cal-ha’adam (a totalidade, cada um, qualquer + ser humano) pode comer, beber e raah – ver/observar/perceber o bom em cal sua amal. Isso quer dizer que qualquer pessoa deveria poder desfrutar, seja comendo, bebendo ou observando tudo de bom que conseguiu com o seu trabalho. Mas não por mérito próprio, pois o versículo termina lembrando que tudo isso é um presente/dádiva de Elohim.
Observação e saber – O início da resposta foi escrito em primeira pessoa. O v. 10, vê/percebe que Deus dá/impõe/permite/estabelece/coloca (natan) o esforço/canseira/negócio para que os filhos dos homens, ou seja, as pessoas, se esforcem/cansem com aquilo.
O v. 12 continua com sua resposta, agora não tanto procurando o motivo, mas tentando entender o que deve ser feito. Passa da observação ao saber, se no v. 10 se percebe vendo, aqui é usado yada’ – notar, descobrir, saber, compreender. Mais do que a simples observação, é necessário o entendimento. Diante da realidade percebida surge uma pergunta: se o fardo foi colocado por Deus, qual deve ser a resposta humana? Podemos traduzir a resposta como: eu sei/entendi que não há nada melhor do que ser feliz/regozijar-se e fazer o bem na vida. A NTLH é a que mais se aproxima da essência do texto. Para explicar essa resposta humana, todas as versões bíblicas adicionaram o sujeito, seja com pessoa, homem ou ser humano.
A impossibilidade de entender plenamente as obras de Deus – Chegamos àquilo que se considera o cerne da parte em prosa: tudo fez elegante/bonito no seu tempo, também colocou o olam no coração, para que o ser humano não achasse as obras que fez Deus desde o início até o fim.
No v. 11, vemos o agir divino. Por isso todas as versões, menos a NVI, adicionam Deus na primeira frase. Traduzimos asah como fazer, mas também pode ser traduzido como manufaturar, trabalhar, pôr, colocar, transformar, fabricar, aprontar, elaborar, preparar, realizar, executar, agir, intervir.
O conceito de olam, traduzido pela ARA, NAA e NVI como eternidade, é muito mais amplo. Abrange o tempo como conceito constante e contínuo, também pode lembrar um tempo muito antigo assim como o futuro indefinido ou sem fim.
Leb – coração não necessariamente tem que ser o coração humano. Pode–se entender também como o interior da pessoa. Deus coloca o olam no coração, pois é considerado o órgão do conhecimento.
Mesmo diante de tudo isso, adam não consegue matsa’, quer dizer, que o ser humano nada consegue achar, ou seja, reconhecer e entender o agir divino.
A NTLH apresenta uma interpretação do texto hebraico que permite compreender a mensagem: Deus fez suas obras e nos deu o entendimento sobre o tempo, mas nós não o compreendemos em sua totalidade.
3. Meditação
O tempo é relativo, já o disse Albert Einstein com a sua teoria da relatividade. Tudo depende do ponto de vista da pessoa que observa. Quanto é muito tempo? Quanto é pouco? Enquanto escrevo, Sommarøy é notícia, uma vila que supostamente quer abolir o tempo. Pela localização ao norte da Noruega, Sommarøy apresenta no verão dias sem fim e no inverno noites sem fim. Para seus habitantes, conceitos como dia ou noite não são tão necessários. Talvez possam pensar o tempo como uma construção humana para entender o mundo e a sucessão dos eventos.
Os conceitos no poema são antagônicos ou complementares? A vida precisa da morte, assim como a morte precisa da vida. Se tudo fica num extremo, será que é bom? As células do corpo humano precisam nascer e morrer. O câncer é a construção sem limite de células, o que não é bom. Os pares de conceitos apresentados no poema são as duas caras da mesma moeda. No poema, encontramos pares de verbos que são conhecidos para as pessoas comuns daquela época. Quais seriam os pares para os dias de hoje? Em que extremos podemos pensar? Individualismo e coletivismo, fanatismo ou apatia? Como podemos atualizar a lista do poema? Qual a perspectiva em que nós a colocaremos? Na vida humana atual, podemos ver que bebês nascem, a semente é plantada na terra, os bens são adquiridos, assim como também as pessoas morrem, a lavoura se perde, o carro é batido. A sucessão de eventos no tempo não é necessariamente excludente. O poema “[…] é um texto que vê a vida em sentido positivo e reconhece que as diversas atividades, as felizes e as infelizes, fazem parte da vida, e temos que entendê-las como momentos naturais dos dias humanos” (ANDIÑACH, 2015, p. 414).
Existem coisas que desejemos ou não, existirão ou acontecerão. Farão parte da nossa vida sem que nós possamos detê-las. Aqui entra a nossa intencionalidade diante daquilo que enfrentamos. Como podemos viver diante do nascer ou do morrer? De que perspectiva vemos a vida, seja a nossa ou a das outras pessoas? O que fazemos com o “nosso” tempo?
Em diversas culturas, celebra-se a troca de ano como um momento importante. Tempo de olhar para trás e sonhar para frente. No olhar para o passado, pode-se perceber que nem sempre foi como planejado ou conforme o agrado. Doença pode tornar-se tempo de aprendizagem; o sucesso profissional pode mostrar-se como uma armadilha para a quebra das relações familiares. Mesmo assim, circunstâncias adversas levam as pessoas lá onde hoje elas estão. No olhar para o futuro, muita esperança é colocada na elaboração de listas de desejos ou promessas para o ano que vem. Se a vida não incluir a esperança de um tempo melhor, as forças se perdem. Sem uma motivação para a vida, muitas pessoas se suicidam. Sem as promessas do Apocalipse, as primeiras comunidades não aguentariam tanto sofrimento e perseguição. A virada do ano é tempo de colocar tudo na balança e voltar a sonhar, ainda que o trabalho seja enfadonho, cansativo ou molesto. Naqueles poucos segundos do réveillon, tudo é permitido, sonhos são possíveis e o passado com o seu fardo fica para trás. Estamos diante da relatividade do tempo, pois o passado passou, mesmo que deixou as suas marcas, porém as pessoas podem continuar a sonhar e viver.
Como é possível viver diante de tanta incerteza sobre o que virá? Como saber o que é melhor para a vida? Confiemos no conselho que nos dá Eclesiastes: vivamos bem a vida. Desfrutemos nossa vida fazendo o bem e desfrutando daquilo que temos, no momento em que o temos. A situação da nossa vida troca, aquilo que parecia tranquilo vira complicado e o complicado termina sendo simplificado. “Diante da angústia, o autor afirma que a ação de Deus e sua vontade são inexplicáveis […] mesmo que não se possa entender o sentido da vida e que tudo pareça conduzir a nada, deve-se reservar um espaço para a ação de Deus, que, embora não cheguemos a compreender, está ali e tem um propósito para cada coisa” (ANDIÑACH, 2015, p. 416).
Ainda que os seres humanos possam saber muito sobre o tempo, sempre fica a dúvida sobre o que acontecerá. Aprendendo do texto em estudo, podemos reconhecer-nos nas mãos de Deus, saber que tudo está sob o seu cuidado e sabedoria. Nós, seres humanos, não conseguimos entender tudo. Os planos de Deus são desconhecidos para nós, assim como também a disposição do tempo divino. O que acontecerá em 2020? Quem sabe? Deus! Por isso podemos entrar confiantes neste novo ano que chega iminente.
4. Imagens para a prédica
Diversas medições subjetivas do tempo:
• Como ficamos nos últimos minutos do segundo tempo se o nosso time estiver perdendo, com certeza será uma atitude contrária se estiver ganhando.
• Uma criança uma vez perguntou: Quanto dura a eternidade? Uma viagem de carro pode ser uma eternidade para uma criança de cinco anos.
• O “experimento com marshmallow”, realizado na Universidade de Stanford com crianças pré-escolares: cada criança entrava numa sala e lhe era oferecido um marshmallow, mas se ela esperasse aproximadamente 15 minutos para comê-lo, poderia receber dois marshmallows. A imensa maioria não aguentou muito tempo e logo comeu o doce. Se elas entendessem melhor o tempo, poderiam ter esperado e recebido uma melhor recompensa. Um vídeo de Joachim Posadas sobre o experimento pode ser visto em TED.com.
• O uso do tempo pode ser questionado, com perguntas tais como:
• Hoje, você já disse ‘te amo” para as pessoas que você ama?
• Em 2019, fez aquilo que tanto desejava fazer e sempre postergava?
• Você já pensou o que quer fazer em 2020?
Existem diversas formas de medir o tempo, se pudessem ser expostas durante o culto ajudarão a refletir o passo do tempo. Um calendário de 2019 pode ajudar a perceber o que aconteceu no ano que está findando, assim como também um calendário de 2020 ajudará a pensar no ano que virá.
5. Subsídios litúrgicos
Receber as pessoas com velas apagadas, uma vela nova para cada mês de 2020. Durante o culto são acessas em momentos como saudação apostólica, confissão de pecados, antes de cada leitura bíblica, da pregação, da confissão de fé, da oração geral da igreja, da oração eucarística e da bênção.
Na confissão de pecados pode ser usada a seguinte costura: lembramos que um ano se passou, 365 dias que estiveram à nossa disposição pela graça de Deus. Agora é momento para pensar e sentir, refletir sobre aquilo que aconteceu em 2019 e reconhecer aqueles pecados que ainda pesam em nós e pedir a misericórdia de Deus para que nos liberte desse fardo.
Oração do dia: Senhor, mais um ano se passou e nós queremos agradecer–te por ele, pelas coisas boas que aconteceram, assim como também pelas coisas más. Obrigado por estar junto conosco em todo momento e por sentirmos tua presença. Ajuda-nos neste ano que se aproxima pela tua graça. Permite-nos que em 2020 possamos desfrutar de cada dia e que saibamos que tudo é feito de acordo com a tua vontade. Oramos por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.
Para a oração geral da igreja, podem ser distribuídas pequenas folhas nas quais as pessoas podem escrever seus desejos para 2020. Podem ficar sem ser lidas, mas seria importante colocá-las diante do altar no momento da oração.
Se a paróquia/comunidade tem um calendário impresso, seria bom colocá-lo no altar durante o ofertório para dedicar as programações agendadas para o ano que se aproxima. O mesmo pode ser realizado com o planejamento missionário.
Bibliografia
ANDIÑACH, Pablo R. Introdução Hermenêutica ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2015.
FELDMEIER, Reinhard; SPIECKERMANN, Hermann. O Deus dos vivos. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).