Ascensão do Senhor
Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Efésios 1.15-23
Leituras: Salmo 47 e Lucas 24.44-53
Autoria: Uwe Wegner
Data Litúrgica: Ascensão do Senhor
Data da Pregação: 25/05/2017
1. Introdução
Ascensão significa “subida”. Dia da Ascensão do Senhor significa, portanto, o dia em que se comemora ou relembra a subida de Jesus ao céu para junto de Deus. Há só um escritor do NT que conta, literalmente, uma história de ascensão, subida de Jesus ao céu: Lucas. Inicialmente, ele a traz em Lucas 24.50-53. Ali escreve: “Aconteceu que, enquanto os abençoava, ia-se retirando deles, sendo elevado (verbo = anaferō) para o céu. Então eles, adorando-o, voltaram para Jerusalém […]”. Essa cena, considerando a cronologia em Lucas 24, ocorre no mesmo dia da ressurreição. O outro texto é de Atos 1.(2-3)9-11. Ali Jesus promete aos discípulos poder para ser suas testemunhas e, depois de lhes dirigir a palavra, “foi Jesus elevado (verbo = analambanō) às alturas, à vista deles, e uma nuvem o encobriu dos seus olhos”. Nesse caso, a subida ao céu ocorre só depois de 40 dias em que Jesus apareceu e ensinou seus discípulos como ressuscitado (At 1.3).
Em outros textos não temos histórias sobre a ascensão, mas só referências verbais à subida ou descida de Jesus (exemplos: Jo 6.62; 16.10; 20.17; At 1.2; 2.33; Ef 4.8-10).
Interessante é que vários textos de ascensão fazem uso do Salmo 110.1 (assenta-te à minha direita [Mc 14.62; Cl 3.1; Ef 1.20; Hb 1.3; 8.1; 12.2] até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés [1Pe 3.22; Ef 1.20-22]) ou do Salmo 8.6 (Deste-lhe [sc ao filho do homem] domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste = hypotassō [1Co 15.27; Ef 1.22 e Hb 2.6-9]. Em nosso texto de prédica são citados ambos os salmos. Nesses casos, os textos deixam entrever os efeitos da ascensão, a saber, o domínio de Cristo sobre os poderes existentes no mundo. Fala-se então da “exaltação” ou “entronização” de Jesus como Senhor sobre o universo e regente dele.
Há passagens no NT (Fp 2.6-11, 1Tm 3.16 ou Hb 1.1-4) em que não se faz menção explícita à ressurreição, mas se passa a falar diretamente da exaltação de Cristo (como regente universal sobre todos os principados e poderes). Isso parece indicar que ressurreição, ascensão e exaltação de Cristo são eventos coincidentes, embora os termos destaquem cada qual um aspecto específico da vitória de Jesus sobre a morte.
2. Exegese
O texto proposto para a pregação engloba toda a intercessão de Paulo em favor dos crentes para os quais escreve, ou seja, Efésios 1.15-23. O conteúdo da intercessão é plural, sendo que só a partir do v. 19 tematiza-se expressamente o assunto da ascensão. Minha proposta é que se aproveite a data para fazer uma pregação concentrada na data da ascensão; isso evitaria abordar todos os aspectos anteriores da intercessão (v. 15-18) e incorrer no perigo de dispersar a concentração dos ouvintes.
O texto compreenderia os v. 19-23. O pregador teria que adaptar o início da leitura. Por exemplo, em Efésios 1.19-23, Paulo ora pelos cristãos para que eles adquiram conhecimento a respeito da “suprema grandeza do poder de Deus para conosco, os crentes, segundo a eficácia da força do seu poder” (v. 20-23).
V. 19 – Este versículo é um louvor prestado à excelência do poder divino. Paulo descreve o poder de Deus com vários substantivos, procurando dessa forma ressaltar sua grande qualidade e eficácia. A grandeza do poder divino é qualificada como “extraordinária” ou “suprema” (grego: hyperballon). O poder de Deus é poder superlativo. E o detalhe: toda essa eficácia e extraordinária grandeza do poder divino são “para nós”. Segundo Comblin, o destaque de Paulo recai exatamente nesse “para nós”: “a palavra central é o ‘nós’: vejam quantas maravilhas todas oferecidas a ‘nós’! Que grandeza é a nossa! Como somos grandes, ‘nós’”(p. 35). Uma tradução literal seria: “e qual a extraordinária grandeza do seu poder para nós, os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder”.
V. 20 – Aqui se descreve onde e como Deus evidenciou esse seu extraordinário poder. Onde: Ele o evidenciou na pessoa de Jesus Cristo. Como: O modo pelo qual o poder foi evidenciado foi duplo: a) pela ressurreição de Jesus dentre os mortos. Com isso, o maior poder contrário à vida, a morte, foi definitivamente vencido; e b) pela sua entronização à destra de Deus. Com isso Deus outorga a Jesus seu poder de rei, de reinado, de regência. A imagem é extraída de um costume arraigado nas antigas cortes régias orientais, em que, enquanto o rei se encontrava assentado em seu trono, a pessoa que participava do reinado e desempenhava o poder do rei era convidado a sentar-se à sua direita. A mão direita simbolizava autoridade e poder. Era nessa que o rei segurava seu bastão real. Assim, o assentar-se de alguém à sua mão direita simbolizava participação no poder de Deus.
Nordstokke também destaca que “à direita” quer dizer à mão direita = destra de Deus. Ele acha que a versão portuguesa do Credo Apostólico não deveria traduzir o original latino sedet ad dexteram Dei Patris como “sentado à direita de Deus”, mas “sentado à destra de Deus”. Para ele, “destra” afirma algo mais do que a mera presença de Jesus ao lado direito de Deus Pai. Ora, “a metáfora ‘mão’ expressa o poder de Deus e sua atuação no mundo para salvar o seu povo. Foi por essa mão que Javé libertou da escravidão no Egito (Êx 15.6) […] Na maioria dos casos em que a Bíblia usa essa metáfora […] a mão de Deus expressa sua presença para proteger, abençoar e salvar […] na mão de Deus há salvação e vida. É nessa tradição que os cristãos confessam que Jesus está sentado à destra de Deus Pai, pois nessa posição ele ‘intercede por nós’ (Rm 8.34) e garante que nenhum poder alheio possa ‘separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor’(8.39)” (Nossa fé e suas razões, p. 129-130).
No final do v. 20 e no v. 21, a carta localiza a referida “destra de Deus” – ela se encontra “nos lugares celestiais”, muito acima (grego: hyperanō) de todos os demais poderes. A Carta aos Efésios e outras dão testemunho de uma cosmovisão que estrutura o universo em espaços geográficos distintos. A cosmovisão de Efésios subdivide o universo em três ou quatro espaços claramente delimitados, como abaixo:
O trono de Deus (e de Cristo) (1.20; 2.6)
“acima de todos os céus” (4.10)
“acima de todo poder…” (1.21)
“subiu às alturas/ao alto” (4.8)
“nas regiões celestes” (1.20; 2.6)
Reino dos poderes demoníacos (do diabo) (1.21; 2.2; 3.10; 6.12)
“as regiões celestes” (1.3; 6.12)
“príncipe da potestade do ar” (2.2)
Seres humanos
“terra” (1.10; 3.15; 4.9; 6.3)
Lugar da habitação dos mortos
“regiões inferiores da terra” (4.9)
(Cf. EBNER, M.; SCHREIBER, S. Einleitung in das Neue Testament. 2008. p. 419 [com pequena adaptação]).
Dúvidas quanto a essa cosmovisão em Efésios há só em relação ao último ítem, pois em Efésios 4.9 a descida de Cristo para as “regiões inferiores da terra” pode indicar simplesmente sua encarnação como ser terreno, sem pressupor, necessariamente, uma descida ao reino dos mortos (p. ex. Mt 12.40).
O v. 21 afirma que Deus exaltou Jesus muito acima de todos os demais poderes. Essa colocação espacial de Jesus bem acima de todos os outros poderes deixa transparecer, é claro, a superioridade do poder de Cristo. Quem são esses poderes bem acima dos quais/sobre os quais Cristo exerce seu domínio? Os exegetas afirmam que não é mais possível delimitar exatamente o sentido dos quatro poderes mencionados (principados, potestades, poderes e domínios), mesmo porque o próprio NT não apresenta interesse em descrevê-los ou caracterizar sua essência separadamente. Textos do NT que se referem a poderes “celestes” que podem opor-se a Deus por vezes apresentam elementos dessa lista aqui no v. 21, mas também podem representá-los com termos parcialmente diferentes, como se pode verificar em Romanos 8.38 ou na própria Carta aos Efésios (2.6 e 6.12) (cf. também Cl 1.13,16; 1Pe 3.22). Todos eles constituem o que Efésios 6.12 resume como sendo as “forças espirituais do mal nas regiões celestes”. Interessante é também que a carta pode resumi-los num só termo ou expressão, como em 2.2 (o “príncipe da potestade do ar”) ou em 6.11 (o “diabo”).
Além dos quatro poderes mencionados, há, por fim, ainda a menção a “todo nome que se possa referir”. Segundo pensamento antigo, os “nomes” podiam expressar a essência e o poder que emanava de coisas, seres ou pessoas. A referência quer deixar claro: nada escapa à soberania de Cristo.
“Não só no presente século, mas também no vindouro” – é discutível se essas palavras devem ser ligadas a “todo nome que se possa referir” ou se se referem à afirmação final do v. 20. Nesse último caso, as palavras quereriam afirmar que Jesus foi assentado à destra de Deus não só no presente, mas também no futuro.
V. 22 – Este versículo afirma a superioridade do poder de Cristo sobre todos os demais poderes de duas maneiras. Primeiro: recorrendo às palavras do Salmo 8: “e pôs todas as coisas debaixo dos seus (isto é, de Cristo) pés”. Na Antiguidade, colocar algo ou alguém aos pés de uma pessoa equivalia a submetê-los a seu poder (Sl 8.6; 1Co 15.25,27; Rm 16.20 e outros). O v. 22 faz a afirmação no pretérito: Deus (já) colocou todas as coisas sob seus pés (assim também em 1Co 15.27 e Hb 2.7; em Mt 22.44 par.; At 2.34; 1Co 15.25 e Hb 1.13). Segundo: Cristo é qualificado como o “cabeça” de todas as coisas. Aqui, como em outros textos (Jz 11.8; Os 2.2; Cl 1.18; 2.10,19; Ef 5.23 etc.), ser o cabeça tem o significado de ser o chefe, o dirigente, o que está investido de poder. Todas as coisas, portanto, estão sob o seu poder e comando.
V. 23 – Nessa qualidade de “cabeça”, Deus também deu Cristo à igreja. Ela é caracterizada como seu corpo, “a plenitude daquele que tudo enche em todas as coisas”. A igreja, como plenitude de Cristo, reflete valores e práticas de Jesus dentro do mundo. Dessa plenitude de Cristo ela é receptora, sendo convidada a repassá-la e vivenciá-la cada vez melhor na sociedade circundante. A Carta aos Efésios convida a igreja, os cristãos, a ser tomada de toda a plenitude de Deus (3.19), a chegar à medida da estatura da plenitude de Cristo (4.13), a encher-se do Espírito Santo (5.18). Mas, diante da plenitude de Cristo, os cristãos são primariamente receptores: agentes do enchimento com a plenitude são Cristo (4.10) e o Espírito (5.18).
A pergunta que se coloca é: mas, afinal, qual o conteúdo dessa plenitude, dessa abundância e profusão de Cristo na igreja e, por ela, no mundo? Quanto a isso, remetemos às duas outras passagens em Efésios em que é usado o termo “plenitude” em referência a Deus e Cristo: Efésios 3.19 e 4.13. Em 3.19, Paulo intercede a Deus que os cristãos venham a conhecer o amor de Cristo “para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus”. Dois versículos antes, em 3.17, ele afirma semelhantemente: “E, assim, habite Cristo no vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor”. Na segunda passagem, em 4.13, o apóstolo dá conta de que o objetivo dos cristãos não pode ser o de permanecer eternas crianças na fé, mas tornar-se adultos, alcançar a estatura da plenitude de Cristo. E como é que se consegue isso? O v. 15 responde: “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo”. Conclusão: a plenitude de Cristo, em direção da qual cabe crescer, é o amor que ele tem vivido e oferecido à humanidade.
3. Meditação
3.1 – A área de atuação dos poderes, a cosmovisão da época e uma tentativa de atualização
O quadro cosmológico de Efésios mostrado acima dá conta de que as pessoas da época se sentiam determinadas, ameaçadas e à mercê de poderes “supraindividuais, suprassociais, realidades espirituais que influenciavam os acontecimentos e o comportamento” (DUNN, 2003, p. 146). Esses poderes, segundo crença da época, podiam determinar o curso dos anos, dos astros, mas também catástrofes, guerras, distúrbios, infortúnios pessoais e sociais e afastamento dos deuses. Eles eram cridos como responsáveis últimos pela sorte, pelo destino das pessoas. Para Efésios, eles redundavam numa espécie de “morte” ou escravização das pessoas. Sob sua influência, elas andam “segundo o curso deste mundo […] segundo as inclinações da carne, fazendo a vontade da carne e dos próprios pensamentos” (Ef 2.1-3) ao invés de obedecer a Deus.
Atualmente, só poucas pessoas ainda possuem essa cosmovisão espacial, imaginando o espaço acima de nós (= firmamento) permeado de espíritos e anjos hostis a Deus, influenciando direta ou indiretamente nossas vidas. Esse arcabouço é mitológico. Todo mito, porém, mesmo não sendo histórico, testemunha verdades históricas. Assim sendo, o valor perene dessa representação é que, como antigamente, ainda hoje continuamos cercados por forças e poderes suprapessoais e suprassociais que nos podem prejudicar e manter nossa vida afastada de Deus e do próximo, mesmo que agora os situemos ao nosso redor e não acima de nós, no firmamento. A igreja antiga falava aqui dos poderes do “pecado, morte e diabo”. Wink, nos tempos modernos, procurou atualizar o significado de “principados e potestades” (grego: archas kai exousias) afirmando: representam para nós hoje “os aspectos interno e externo de qualquer manifestação de poder. Como aspecto interno eles são a espiritualidade das instituições, o ‘interior’ das estruturas e sistemas corporativos, a essência interna de organizações externas de poder [aqui também entram as legitimações, sanções e permissões que dão suporte ao exercício cotidiano de poder]. Como aspecto externo são sistemas políticos, funcionários nomeados, a ‘carne’ de uma organização, leis – em suma, todas as manifestações tangíveis que o poder assume” (apud DUNN, 2003, p. 147, nota 42). Semelhantemente se manifesta também Schlier, que, para efeitos de uma atualização, afirma que referidos poderes atualmente se apoderam de pessoas ou de instituições políticas e sociais, de determinadas condições e situações históricas, influenciando correntes religiosas e de pensamento (em seu livro Mächte und Gewalten im Neuen Testament, p. 63). Na teologia da libertação, poderes e principados suprapessoais são geralmente vinculados à ideia da dimensão social do pecado, do pecado social, do pecado estrutural. A estrutura social dominante, p. ex., de um liberalismo econômico ou de um modo de produção capitalista, pode condicionar de antemão negativamente nossas melhores intenções. As estruturas engessam nossas ações com condicionantes e consequências das quais não é possível escapar se quisermos sobreviver dentro do sistema. Essas estruturas têm “espírito” próprio, leis próprias, contra as quais é muito difícil lutar para quem vive dentro do esquema/sistema. Exemplo: se você quer prosperar, terá que ser às custas da concorrência: tem que acabar com ou vencer os concorrentes. Assim também Nordstokke: “Em nosso contexto latino-americano, esses poderes se manifestam nas estruturas injustas, nos mecanismos de exclusão e na lógica de morte que justifica a miséria da maioria da população […]”. E se você prefere vê-los menos em sua atuação social do que na pessoal, diria: pessoalmente, esses poderes escravizantes se manifestam na dependência das drogas de todo tipo, no apego ao dinheiro e bens materiais, exaltando o ter sobre o ser; no consumo irrefreado e irresponsável, no descaso com o meio ambiente etc.
3.2 – A representação espacial metafórica do céu como a mais alta esfera do firmamento e de um Deus ali assentado sobre um trono e de Jesus assentado no lado de sua mão direita
Também esse conjunto de ideias tem a ver parcialmente com a cosmovisão da época bíblica, para a qual o mundo se subdividia espacialmente em várias esferas: a divina, acima de todas as demais (escritos apocalípticos falam de um, três, cinco ou mesmo sete céus, sendo que o paraíso, a habitação divina, situa-se sempre no último), denominada de céu; depois a esfera do ar, em que habitavam os espíritos, anjos, principados e poderes; a seguir, a terra, local de habitação dos seres humanos, e por último, o reino dos mortos, abaixo da terra. Essa cosmovisão não é unívoca na Bíblia, apresentando muitas variantes. Por vezes, céu é simplesmente outro termo para designar Deus (Mt 5.10; 6.20; Mc 11.30; Lc 10.20; 15.18,21; Jo 3.27), em especial na expressão mateana “reino dos céus” 3.2; 4.17 etc.), em que a maioria dos paralelos apresenta “reino de Deus”. Que o céu, local da presença de Deus, não pode ser simplesmente limitado a um espaço superior definido dentro do sistema sideral já sugere a própria Bíblia em passagens como 1 Reis 8.27 (“Mas, será verdade que Deus habita nesta terra? Se os céus e os céus dos céus não te podem conter, muito menos esta casa que construí!”), Isaías 66.1 (“O céu é o meu trono, e a terra, o escabelo dos meus pés” [cf. Mt 5.34s; At 7.49- 55]), Jeremias 23.24 (“Pode alguém esconder-se em lugares secretos, sem que eu o veja? – oráculo de Iahweh. Não sou eu que encho o céu e a terra? – oráculo de Iahweh.”) ou 1 Timóteo 6.16, que afirma habitar Deus “em luz inacessível”. Ou seja, Deus não pode ser limitado a um lugar definido; está em todas as partes de sua criação, “nos céus e na terra”. Crer diferentemente seria limitar o poder de Deus e sua irradiação e abrangência universais. Também o antroporfismo da “destra” = mão direita de Deus não passa de analogia humana para expressar a ideia de um Deus poderoso e salvífico. O mesmo vale para a ideia de um Deus assentado sobre um “trono”. Um Deus que se assenta sobre um trono soa parecido a uma pessoa = rei, assentado num trono. Mas essas são imagens terrenas que, por analogia, os autores bíblicos empregavam para expressar a ideia de que Deus reinava e tinha poder. A própria Bíblia delimita e relativiza todas essas representações antropomórficas e metafóricas de Deus com palavras como Isaías 55.8s (“Meus pensamentos não são os vossos, nem vossos caminhos são os meus, diz o Senhor. Assim como os céus são mais altos do que a terra, também os meus caminhos são mais altos do que os vossos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos”); 64.4 = 1 Coríntios 2.9 (“Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam”) ou mesmo com o mandamento de não fazer imagem de Deus (Êx 20.4s) ou, por fim, com a declaração de que Deus não é ser humano, mas Espírito (Jo 4.24), embora ela própria, por seu emprego de tal linguagem, demonstre que, como humanos, não temos outros meios para falar de Deus senão por analogias e metáforas tiradas de nossa realidade. Assim sendo, não há – para finalizar esta reflexão sobre o céu nas alturas, com trono e um Deus assentado sobre ele – como não compactuar com a célebre frase de Gerhard Ebeling numa prédica sobre o Pai-Nosso: “Deus não está onde se localiza o céu, mas o céu se localiza ali onde Deus se encontra”. A cosmovisão de esferas espaciais distintas tende a separar e a distanciar um Deus nas alturas de suas criaturas aqui embaixo. Nordstokke: “A fé cristã questiona profundamente essa cosmovisão por ter como cerne a convicção de que Deus atua em nosso meio, na história e nos eventos diários e, principalmente, na periferia, onde estão os excluídos e humildes” (Nossa fé e suas razões, p. 132). Ora, segundo a Bíblia, Deus quer armar sua tenda justamente entre nós (Jo 1.14) e quer, em Jesus, oferecer-nos sua companhia “todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28.20; cf. 18.20). Resumindo: Quando a Bíblia afirma que Deus está no céu, acima de todas as regiões celestiais com seus principados e potestades, e que Jesus está ali à sua destra, ela o faz com o uso de metáforas que sinalizam – espacialmente – que Deus está acima, ou seja, é infinitamente superior em poder (trono) a todos os demais poderes, permitindo que, no presente, esse poder esteja sendo exercido por Jesus (sentado à sua destra).
3.3 – Como devemos entender o reinado presente de Cristo, segundo o qual Deus lhe pôs todas as coisas sob os pés para ser o cabeça de todas as coisas (v. 22) na igreja e no mundo? Como entender que Deus JÁ submeteu todas as coisas a Cristo?
A afirmação do v. 22, segundo a qual todas as coisas, todos os poderes JÁ estariam submetidos aos pés de Cristo é entendida em Efésios a partir da “escatologia realizada” que a carta defende: essa compreende Cristo juntamente com os cristãos como já ressuscitados com ele (provavelmente pelo Batismo [Ef 2.5; cf. Cl 2.12-13], pela fé, pela posse do Espírito e pela união com Cristo num mesmo corpo) e assentados/entronizados com ele nos lugares celestiais (Ef 2.6). A afirmação poderia sugerir a ideia de que, uma vez submetidos aos pés de Cristo, os poderes atuantes no mundo não teriam mais como se opor a ele, em outras palavras, sua entronização à destra de Deus representaria a vitória última e definitiva sobre toda e qualquer atuação antidivina dessas forças. Se assim fosse, não haveria mais necessidade de uma conclamação à ética ou resistência na Carta aos Efésios. Também ficariam inverossímeis palavras como 1 Coríntios 15.25 (“Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés”). Contudo não é esse o caso. Na carta, os cristãos são conclamados a viver santos e irrepreensíveis em amor (1.4), a seguir a verdade em amor, crescendo em tudo no cabeça, que é Cristo (4.15), e a viver o aperfeiçoamento e fortalecimento dos santos no amor (3.17-19; cf. 4.12); além disso, em 6.12-20, os cristãos são diretamente conclamados à luta e resistência contra exatamente os poderes que, em 1.21-23, são caracterizados como já submetidos por Cristo, sendo que as armas propostas para essa luta são a verdade, a justiça, o evangelho da paz, a fé, a palavra de Deus (que é a espada do Espírito) e orações e súplicas. Ou seja, com a entronização de Jesus à sua destra, Deus empossa-o como Senhor sobre todos os poderes, senhorio confirmado na vitória da ressurreição sobre o poder maior da morte. Mas a entronização de Cristo por Deus acima dos principados e potestades ainda não representa que os poderes destrutivos a eles inerentes deixem de existir ou se conformem com o empoderamento concedido a Jesus. Efésios 6.12ss mostra exatamente o contrário. A vitória do amor de Jesus sobre a morte na ressurreição pode, ao contrário, transformar todos os poderes contrários a Deus em adversários e inimigos ainda mais decididos do reinado de Cristo. Disso resulta: a entronização de Jesus revela que o poder do seu amor é superior a quaisquer outros poderes existentes. Esse fato, porém, nem sempre implica que os poderes subjugados aceitem a derrota e passem a confessar Jesus como Senhor. Isso é assim, pois o poder de Jesus tem um modo de procedimento e uma escolha de meios para imperar que diferem de outros poderes. O império de Jesus estabelece-se com um modo de procedimento especial: não pela imposição com violência ou força de armas, mas pela persuasão, buscando e propondo o livre assentimento das pessoas, sua fé e obediência. Deus quer-nos como filhos, não como escravos! Também as armas usadas na implantação do poder de Jesus são próprias: fala-se em verdade, justiça, amor, fraternidade etc. Essas armas constroem comunhão e vida; as outras, geralmente, destruição, divisão e morte. Diante do mundo, esse modo de proceder e esse tipo de armas revelam fragilidade, fraqueza e muitas vezes também uma certa vagarosidade (dois passos para frente, três para trás…), mas, segundo o evangelho de Cristo, é só assim que o diabo e a morte podem ser derrotados em sua raiz. O poder de Deus constrói-se na “fraqueza” do amor, diria Paulo refletindo sobre a cruz (1Co 1.18-29), mas é só nessa fragilidade que ele é mais forte do que qualquer outro (Rm 8. 31ss).
Quanto à prédica: Nosso texto é eminentemente político. O poder de Deus, acima de todos os demais principados e poderes, é confirmado pela ressurreição (v. 19-20a), repassado a Cristo à destra de Deus (v. 20b-21) e infundido na igreja por Cristo, o seu cabeça (v. 22), igreja que é o corpo de Cristo, no qual habita a plenitude do seu amor, que preenche tudo em todas as coisas (v. 23). Como poderia ser uma prédica sobre o texto, considerando a data do Dia da Ascensão?
Uma sugestão: fazer a pregação explicando a ascensão de Cristo como aceitação dele por Deus na condição do mais poderoso regente universal
1) Breve referência à data do Dia da Ascensão de Cristo. Explicar o código espacial usado pela Bíblia quando se refere a uma “subida” de Jesus ao céu. Explicar que não se pode interpretar isso simplesmente como um distanciamento geográfico de nós, pois, nesse caso, textos como Mateus 18.20 ou 28.20 não fariam sentido. A melhor explicação é que a “subida” pretendia sinalizar o término de uma presença física de Jesus na terra. Essa presença física limitava geograficamente o campo de sua atuação. A ascensão sinaliza que, a partir de sua “subida”, Jesus está “no céu”, ou seja, junto de Deus. E Deus, como afirma a Bíblia, é Espírito e, por isso mesmo, está em todos os lugares.
2) Com a “subida” de Jesus às maiores alturas, nosso texto quer sinalizar ainda uma segunda coisa: que o poder de Deus está “acima” de todos os demais poderes e que Jesus foi entronizado por Deus como o detentor e regente desse poder. Na Bíblia, esse código espacial sinaliza o seguinte: o que está acima é sempre o melhor, mais poderoso, o que rege o resto. A razão dessa afirmação é a ressurreição: ela mostrou que nem a morte é mais poderosa do que o poder de Deus.
3) O texto afirma que ascensão tem algo a ver diretamente com a comunidade. Pois o poder de Jesus, a plenitude desse poder, foi derramado por Deus na igreja – esse poder é, sem sombra de dúvidas, o amor de Cristo. Fazendo de Cristo o cabeça da igreja, que é seu corpo, Deus quer que a igreja seja testemunha, pregadora e vivenciadora desse poder do amor, que está acima de todos os poderes. Nós estamos convidados a participar do poder de Deus que rege o universo, sendo discípulos e discípulas de Jesus na igreja.
4) Por último, a prédica poderia dar ênfase ao poder de Deus que se aperfeiçoa na fraqueza e que nos cabe pregar e vivenciar. Mostrar a natureza das “armas” (Ef 6. 12-18) com as quais os cristãos estão convidados a combater o mal e os poderes contrários a Deus dentro das comunidades e do mundo: são armas fracas à vista do mundo, mas superpoderosas diante de Deus: o amor e toda a variedade de suas expressões, como verdade, justiça, reconciliação, aceitação, paz etc. A verdade e justiça em amor (Ef 4.15; 6.14 – cf. Jo 18. 37) são talvez as armas mais poderosas que temos de Deus para combater a mentira, a corrupção, os gastos exorbitantes e a insensibilidade que apresentam os políticos e os governos municipais, estaduais e federal de nosso país na atualidade. Isso comprova que a igreja e seus membros, como testemunhas do poder de Deus, não podem ser apenas anunciantes do poder de Deus, precisam ser também denunciantes dos poderes corruptos e contrários a ele dentro do mundo.
4. Imagens para a prédica
Isaías 9.7 – Ele será descendente do rei Davi; o seu poder como rei se multiplicará sobremaneira, e haverá plena paz em todo o seu Reino. As bases do seu governo serão a verdade e a justiça, desde agora e para sempre.
Provérbios 29.4 – Quando o governo é honesto, o país tem segurança; mas, quando o governo cobra impostos demais, a nação acaba em desgraça.
Augusto Branco: “Enquanto forem permitidas campanhas eleitorais milionárias, haverá corrupção no governo, pois alguém precisará pagar a conta da campanha, certo? Ninguém doa tanto dinheiro para uma campanha eleitoral à toa. Não existe tanto idealismo assim neste mundo, ou a humanidade não padeceria de tantos males”.
Provérbios 17.23 – O ímpio acerta o suborno em secreto para perverter as veredas da justiça.
Isaías 5.22a,23 – Ai dos que… justificam o ímpio por suborno e ao justo negam justiça.
Bibliografia
COMBLIN, J. Epístola aos Efésios. Petrópolis: Vozes; São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1987.
DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003. EBNER, M.; SCHREIBER, S. Einleitung in das Neue Testament. 2008.
SCHNACKENBURG, R. Der Brief an die Epheser. Neukirchen: Benzinger; Neukirchener, 1982. [EKK , v. 10].
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).