Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Efésios 1.3-14
Leituras: Amós 7.7-15 e Marcos 6.14-29
Autor: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/07/2015
1. Introdução
Talvez você já tenha tido a oportunidade de visitar uma casa em construção. Enquanto você anda pelos recintos da construção, cuidando para não tropeçar sobre algum saco de cimento ou para não se machucar com o entulho no caminho, o dono da casa mostra-te, entusiasmado, os detalhes da casa: a sala de estar que terá um canto de aconchego e lazer, a cozinha, os quartos… Ainda que a construção esteja em estado bruto, ainda que falte todo o acabamento, o dono da casa em construção já vislumbra a sua moradia quando ficar pronta: tudo é apenas uma questão de tempo.
De modo semelhante, Paulo está explicando o grande projeto de “construção” de Deus, o projeto de edificação de Deus com sua comunidade. Paulo não se importa com a aparência bruta de muitas comunidades de fé. Ele sabe que por trás de pequenas e frágeis comunidades está o imensurável amor de Deus Pai. Através de Jesus Cristo, Deus chamou pessoas para junto de si. E, antes mesmo de podermos reagir e responder ao amor de Deus, Deus já se comprometeu com seu plano de eleição. Sobre esse fundamento (invisível) a fé permanece inabalável. O plano de “construção” de Deus é muito maior e abrangente do que podemos imaginar. Antes mesmo de o mundo ser criado, Deus fez uma opção preferencial pelo ser humano, por nós. Agora, os olhos de Deus estão voltados para o futuro, para o término da construção: Deus deseja alcançar um propósito com os seus eleitos. Nós somos o “material” que Deus, o supremo arquiteto e consumador de todas as coisas, quer usar para alcançar seus propósitos há muito tempo já determinados.
2. Observações exegéticas
A Epístola aos Efésios inicia com uma expressão de louvor e adoração. Deus abençoou-nos com todas as bênçãos espirituais! O autor da carta está profundamente impactado com o que Deus está fazendo. Com entusiasmo ele nos mostra a “construção” de Deus. Ele passa a descrever o agir de Deus como que num fôlego só; quase não tem tempo para “respirar”.
No texto em estudo, há uma clara estrutura de três partes. Essa estrutura pode ser observada na maioria das traduções em português, pois elas preservaram os parágrafos que se encontram no Novo Testamento grego de Nestle & Aland. Há uma clara referência trinitária no texto:
a) O Pai que elege (v. 3-6). É importante observar no texto que Deus Pai é a fonte ou a origem de todas as bênçãos. Atente ao fato de o Pai ser o sujeito de praticamente todos os verbos principais que aparecem no texto. É ele quem nos tem abençoado (v. 3), quem nos escolheu (v. 4) e nos predestinou… para adoção de filhos (v. 5), quem nos concedeu gratuitamente sua graça (literalmente, “nos agraciou com sua graça” – v. 6) e derramou abundantemente sua graça sobre nós (v. 8). É Deus Pai quem nos revelou o mistério de sua vontade (v. 9-10) e faz todas as coisas conforme o conselho de sua vontade (v. 11). Toda a perícope está repleta de referências a Deus Pai como aquele que nos deu o seu amor e derramou a sua graça sobre nós e que está desenvolvendo o seu plano eterno.
b) O Filho que redime (v. 7-12). Se Deus é o sujeito, a esfera na qual as bênçãos de Deus são outorgadas e recebidas é a esfera do Filho, do Senhor Jesus Cristo. Nada menos do que quinze vezes o texto faz referência a Jesus Cristo, seja citando o nome ou o título (Cristo, Cristo Jesus, o Senhor Jesus Cristo, o Amado), ou pronomes (ele, dele). A expressão em Cristo ou nele ocorre onze vezes. Essas observações estatísticas têm consequências para a pregação: percebe-se que todas as boas dádivas de Deus condensam-se na pessoa de Jesus Cristo. Há um novo princípio de solidariedade humana aqui: se anteriormente estávamos em Adão (pertencendo à antiga humanidade caída), agora estamos em Cristo (pertencendo à nova humanidade redimida); é em Cristo que Deus nos abençoou no tempo e nos escolheu na eternidade; é no amado que nos concedeu a sua graça, de modo que nele temos e recebemos perdão; é nele que fomos selados como pertencentes a Deus; foi em Cristo que Deus desvendou o seu plano para unir todas as coisas nele! Anteriormente, nós estávamos sem Cristo e, portanto, sem esperança e sem Deus (2.12). Mas agora, em Cristo, fomos cobertos de bênçãos.
c) O Espírito Santo que sela (v. 13-14). Embora o Espírito Santo seja mencionado explicitamente apenas nos v. 13-14, sua atividade é pressuposta em todo o texto. O destaque que é dado reside no fato de a bênção que Deus nos dá em Cristo é espiritual. Penso que aqui há um contraste intencional com os dias do Antigo Testamento, quando as bênçãos prometidas por Deus eram, em grande medida, materiais. Dt 28.1-14, por exemplo, fala da bênção de filhos, boas colheitas, abundância de gado e ovelhas etc. É verdade que Jesus também fala de bênçãos materiais que são dadas a seus discípulos. Por isso proibiu seus discípulos de viver ansiosos quanto ao que comer e vestir, pois assegurou que o Pai supriria todas as necessidades básicas se colocassem em primeiro lugar os interesses do reino. No entanto, as bênçãos da nova aliança traduzem-se em primeiro lugar como bênçãos espirituais, não materiais. Trata-se, por exemplo, da lei de Deus que é inscrita em nossos corações pelo agir do Espírito Santo (Jr 31.31- 34), da possibilidade de um relacionamento pessoal com Deus (Rm 8), da dádiva do perdão dos pecados. Também esse aspecto tem profundas implicações para a prédica, haja vista que vivemos num contexto onde se procuram (e também se oferecem) essencialmente bênçãos materiais. Toda bênção do Espírito Santo nos é dada pelo Pai, se estamos no Filho (Cl 2.9-10).
A perícope em estudo menciona alguns temas complexos, como o tema da Trindade, o tema da eleição/predestinação. Penso ser fundamental para a correta interpretação desses temas que o pregador tenha clareza do gênero literário da perícope. É evidente que em seu sentido lato a perícope pertence ao gênero literário de uma carta. No entanto, em seu sentido mais estrito, a perícope adquire uma linguagem litúrgica, de confissão de fé em atitude de adoração. Note que o texto posterior à perícope é uma oração! Portanto o ensino a respeito da doutrina da predestinação, por exemplo, não deveria ser dissociado de uma postura de louvor e adoração. É nessa moldura que o tema é desenvolvido. Seu propósito é gerar fé, confiança e certeza para a comunidade. Para quem deseja aprofundar o tema da predestinação, remeto ao texto de Claus Schwambach, indicado na bibliografia.
3. Meditação rumo à prédica
O texto inicia com uma doxologia: “Bendito seja Deus!”. Toda a perícope destaca o agir de Deus em Jesus Cristo. A partir do texto, somos convidados a desprender o nosso olhar da “realidade” que nos cerca para ver o que Deus está fazendo. Fato é que, no contexto em que vivemos, nossos sentidos são cativados e disputados por milhares de impulsos. A mídia bombardeia-nos com seus apelos para o consumo. Em meio a tanto brilho e fascinação, será que ainda conseguimos ver a vida na perspectiva divina? Penso que, quando o horizonte do agir de Deus é apagado da consciência da comunidade cristã, resta apenas alienação. No entanto, a palavra nos convida a ver o que o autor da Epístola aos Efésios vê, a ouvir o cântico de alegria e esperança.
Temos que perguntar: o que o autor do texto vê e ouve para que se encha de júbilo e alegria? Resposta: Deus, em Cristo, abençoou-nos com todas as bênçãos espirituais. Nós somos uma comunidade abençoada! Portanto a razão do louvor e da adoração é que Deus, em Cristo, abençoou-nos de maneira inesperada e imerecida. Aqui reside o evangelho, a graça de Deus. Mas o texto vai além. Não encontramos apenas um convite para nos alegrarmos com as bênçãos espirituais. Encontramos também no texto respostas para o conteúdo da bênção. Em que consistem as bênçãos espirituais? Como é que essas bênçãos se tornam concretas e visíveis na vida da comunidade? Como podemos experimentar essas bênçãos? A perícope permite-nos sintetizar cinco respostas (para aqueles que desejarem ampliar o estudo sobre o significado de bênção na Bíblia, sugiro a leitura de Heinzpeter Hempelmann e Estefânia Lemke Porath, indicados na bibliografia):
1) Em Jesus Cristo, Deus nos escolheu (v. 4-6). Essa constatação conduz-nos à admiração, ao louvor e à adoração! Nossa vida não é fruto do acaso, mas está envolvida pelos planos de Deus que alcançam a eternidade. Em Cristo, Deus escolheu, fez uma opção preferencial pela humanidade. Ele opta por nós porque nos ama. Através da eleição da humanidade por Deus, abre-se para todos, sem exceção, o âmbito da graça e da salvação. Deus sempre nos amou! Na medida em que o Filho de Deus torna-se humano, a humanidade é aceita por Deus. Na medida em que o Filho de Deus vive uma vida justa e santa diante de Deus, é colocado o fundamento (por Jesus Cristo) para que nós possamos ser justos e santos diante de Deus. Na medida em que o Filho de Deus continua sendo o Filho de Deus (ressurreto), se abre para nós a perspectiva de sermos filhos de Deus. Ao confiarmos na obra de Jesus em fé, ao sermos batizados no nome de Jesus, ao nos aproximarmos da mesa da comunhão do Senhor, ao vivermos uma vida de obediência e gratidão, participamos da filiação. Note que a nossa eleição acontece em (através de) Jesus. Por Jesus somente, não ao lado de Jesus, nem sem Jesus, nem por nós: solus Christus!
2) Em Jesus Cristo fomos reconciliados com Deus (v. 7-8). Quem se rebelou contra Deus não é capaz de interceder pela rebelião de outros. Quem está escravizado não pode libertar outros que estão escravizados. Quem é devedor não pode pagar a dívida de outros devedores. Quem é pecador não pode carregar o pecado de outros. Essa é a situação da humanidade diante de Deus. Nós estamos diante de Deus como aqueles que se rebelaram, como os escravizados pelo peca- do, como devedores e pecadores. E ninguém pode ajudar-nos porque todos estamos debaixo da mesma sentença de condenação e juízo. Ninguém pode ajudar–nos. Só Deus! Aqui reside o mistério que gera espanto, alegria e esperança: Deus interveio em nosso favor. Deus abençoa-nos e concede-nos, em Cristo, o que nos falta e o que não podemos providenciar por esforço próprio. Perdão dos pecados, libertação, redenção: essas são verdadeiramente bênçãos espirituais.
3) Em Jesus Cristo Deus revela a nós seu plano de salvação (v. 9-10). Deus não deixa a humanidade na incerteza a respeito de seus propósitos. Ele deixa ressoar por toda a terra seu convite, sua intenção, seu propósito. Ele deseja que todos sejam salvos. Deus ama o mundo (kosmos). Ele concede, sem restrições, redenção da culpa e perdão dos pecados a todos os que lhe pedem. Aquele que tem a sua vida arrebentada pode experimentar restauração; o que vive na angústia encontra a paz; o que passa pela morte experimenta a vida; o que está escravizado é liberto. Isso vale tanto para o ser humano na sua individualidade como para as estruturas e conjunturas deste mundo. Tudo é conduzido à paz, à salubridade (salvação) debaixo do senhorio de Jesus Cristo.
4) Em Jesus Cristo Deus nos torna herdeiros (v.11-12). Fomos escolhidos, feitos herdeiros. Na medida em que confiamos na obra de Jesus Cristo, somos herdeiros. Em Cristo, por Cristo e com Cristo nós somos herdeiros. Nós, que éramos rebeldes, pecadores, filhos pródigos, que desperdiçamos a herança recebida do Pai: nós somos herdeiros. Essa é a bênção que Deus, em Cristo, estende àqueles que se deixam presentear.
5) Em Jesus Cristo somos selados com o Espírito Santo (v. 13-14). Certamente a vida do cristão é marcada por tentações e provações. Quantas vezes sentimo-nos inseguros ao olhar para nós mesmos e constatar a nossa infidelidade para com Deus. Perguntamo-nos se seremos capazes de perseverar até o fim. Diante das incertezas, o texto termina dando-nos uma palavra de conforto: aquele que foi escolhido, reconciliado, feito herdeiro, esse é selado com o Espírito Santo. O que significa ser selado? A imagem remete ao selo colocado pelo imperador romano sobre documentos, garantindo que aquele documento não era uma falsificação. Esse selo não podia ser violado. Em outras palavras nos é dito: nós permanecemos bem guardados e protegidos nas boas mãos de Deus. Seu selo marca a nossa vida. O Espírito Santo habita em nós. Ele nos convence da verdade do evangelho. Das mãos de Deus ninguém pode arrancar-nos (Jo 10.28).
O texto termina com uma nova expressão de louvor: o apelo da prédica poderia ser: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais.
4. Imagens para a prédica
Conta a tradição que Corrie ten Boom, a ilha do relojoeiro holandês que escondeu judeus em sua residência na época do nazismo (confira o livro e filme “Refúgio Secreto”), perguntou ao pai: “Pai, como posso saber que serei corajosa o suficiente para enfrentar dias difíceis?” O pai retrucou com uma nova pergunta: “Quando você vai viajar de trem, quando o pai te dá a passagem?” “Um pouco antes de embarcar”, respondeu Corrie. Diante de incertezas que podem nos assolar, lembremos que o Pai celeste, no momento e tempo certo, nos dará a coragem de que necessitamos para atravessar vales escuros.
Dietrich Bonhoeffer esteve nos Estados Unidos da América nos anos de 1930-1931 para uma temporada de estudos. Com grande expectativa havia viajado para lá. Mas, após poucas semanas vivendo em Nova Iorque, ele escreve uma carta descrevendo a vida religiosa na América com as seguintes palavras: “Em Nova Iorque é possível ouvir prédicas sobre praticamente qualquer assunto, com exceção de um – tão raro, que não tive oportunidade de ouvir uma só: uma prédica sobre o Evangelho de Jesus Cristo, sobre a cruz, sobre o pecado e o perdão, sobre vida e morte”. Quando mais tarde voltou para a Alemanha, teve que constatar que a mesma realidade se fazia presente em seu país.
O missionário indiano Sadhu Sundar Singh (1889-1929) fez a seguinte comparação: O carvão continua preto, mesmo se o lavarmos. Ele se parece com madeira contorcida. Quem segura o carvão em suas mãos suja as mãos. Mas quando o carvão é colocado no fogo, ele muda a sua cor. Ele se torna vermelho, em brasa, difunde energia e calor. Assim acontece com o ser humano que se deixa envolver com Jesus Cristo.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos
HPD I – 157 – Por sua paternal bondade (preste atenção na letra do hino)
HPD I – 187 – Jesus Cristo reina em glória (baseado em Ef 2.21-22)
Bibliografia
HEMPELMANN, Heinzpeter. “Tu serás uma bênção”: a marca indelével da cruz que perpassa a bênção. In: Vox Scripturae. São Bento do Sul: União Cristã, 2006. v. XIV, n. 2, p. 9-24.
PORATH, Estefânia Lemke. Bênção em Jó e suas implicações para a vida cristã. In: Vox Scripturae. São Bento do Sul: União Cristã, 2013. v. XXI, n. 2, p. 8-48.
SCWAMBACH, Claus. Evangelização no horizonte da vontade cativa: desafios da antropologia da reforma protestante. In: Vox Scripturae. São Bento do Sul: União Cristã, 2008. v. XVI, n. 2, p. 38-123.
Os textos podem ser solicitados em formato digital no endereço: cursos@lt.edu.br.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).