Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Efésios 2.11-22
Leituras: Jeremias 23.1-6 e Marcos 6.30-34, 53-56
Autora: Silvia Beatrice Genz
Data Litúrgica: 8º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22/07/2012
1. Introdução
A Epístola aos Efésios, assim como o texto de prédica, fala da igreja e das relações de Cristo com ela. Cada peça-pessoa dessa igreja está fundamentada sobre o Cristo. A carta em seu conteúdo diz que Cristo não pertence a um povo, mas une os povos sob o mesmo alicerce.
Lutero diz: “Nessa epístola, S. Paulo ensina, em primeiro lugar, o que seja o evangelho, como foi provido em eternidade exclusivamente por Deus, merecido por Cristo, tendo partido do mesmo; e que todos os que nele creem se tornam justos, probos, vivos, salvos e livres da lei, do pecado e da morte. Isso nos três primeiros capítulos”.
É preciso lembrar que o trabalho do apóstolo Paulo e suas companheiras e seus companheiros de missão levaram a boa-nova do evangelho de Jesus Cristo para além dos limites da Palestina. Após a ressurreição de Cristo, o “IDE” foi praticado. Assim, em Éfeso, na província da Ásia, a mensagem evangélica encontra adeptos, mas que se sentem e são excluídos. No texto em análise, lemos que se abrem as portas amplamente para os não judeus, o que é a proposta do evangelho de Jesus Cristo. A carta dirige-se a uma comunidade que vive sob essa dificuldade e alegria de ser constituída por pessoas oriundas de fora do judaísmo.
Quem é o autor da epístola? Sempre a classificamos como de autoria do apóstolo Paulo. Mas há indícios de que o autor possa ser de um tempo posterior a Paulo, escrita por um discípulo seu ou por uma discípula sua. Não pretendo discutir isso aqui. Seja quem for o autor, não muda a nossa reflexão. Nessa carta, temos orientação para a comunidade e firmeza teológica de que a boa-nova de Cristo não ficou restrita a um ou outro povo. Streck diz: “A igreja não é, portanto, um amontoado de indivíduos, mas família de Deus (v. 19): pertencer a ela é dádiva e compromisso. Judeu ou pagão passam a pertencer à família de Deus não por mérito próprio, mas pela graça de Deus”.
Outro fato interessante é que, conforme 3.1, há indícios de que a carta foi escrita na prisão. E, mesmo assim, ela chegou aos novos cristãos, o que deixa claro que a comunidade não foi abandonada por nenhuma ação de forças contrárias ao evangelho. As notícias de que o apóstolo Paulo esteve em Éfeso estão relatadas no livro de Atos (18.19-20.1).
A Epístola aos Efésios apresenta-nos uma nova visão eclesiológica: igreja não é mais somente a comunidade local. Ela vai além, pois é formada por um conjunto de comunidades, de pessoas diferentes, etnias diferentes e de diversos lugares.
Os cristãos não pertencem mais ao antigo Israel nem ao mundo decadente. Por isso o destino da mensagem é a igreja como realidade global. Essa igreja santa e grande é encarada pelo autor de Efésios como força que compensa as fraquezas das comunidades particulares. É apresentada como positiva a possibilidade de integrar um corpo, a igreja, cujo cabeça é Cristo. Essa será a maneira de resistir, exercer a sua cidadania e amparar-se mutuamente dentro do império.
2. Exegese
Efésios 2.11-22 apresenta o centro teológico de toda a carta: gentios e cristãos são unidos pela cruz de Cristo. A barreira de hostilidade e de inimizade entre as pessoas está destruída. Antes elas estavam distantes, agora estão próximas da promessa de salvação. Sabemos que essa aproximação não se deu rapidamente. Podemos afirmar isso a partir de nosso pensar, pois ainda hoje temos dificuldades para aceitar os diferentes, estranhos e novos membros nas comunidades. O texto apresenta esclarecimentos a pessoas que estão se tornando cristãs.
V. 11-13 – O autor faz aqui a contraposição entre o passado e o presente: antes, distantes; agora, próximos. Martini diz: “Aliás, essa antítese perpassa a perícope e o capítulo todo (agora x antes; um x ambos; paz x lei; concidadãos x estrangeiros e peregrinos). O que determinou a vida dos ouvintes ‘outrora’ e ‘naquele tempo’ (v. 12) pode ser resumido na expressão ‘estando nós mortos em nossos delitos’ (v. 5)”. Estavam longe, foram trazidos para perto pelo sangue de Cristo. As palavras do texto nos dão a descrição da total falta de esperança de pessoas excluídas, marginalizadas: “Outrora vocês estavam sem Cristo, excluídos da comunidade de Israel, estranhos às alianças da promessa; vocês viviam sem esperança e sem Deus neste mundo”. Essa era a situação em que antigamente os gentios se encontravam quando comparados aos judeus. Estavam longe, distantes, afastados, à margem, sem futuro. Israel era o povo da velha aliança, o povo eleito por Deus. Mas o sangue de Cristo aproximou aqueles que antes eram mantidos à distância. Judeus e gentios, em Cristo, agora estão irmanados na igreja pela graça de Deus. Em Cristo, que perde toda a sua vida dando-a ao mundo, Deus cria a possibilidade de uma nova existência entre as pessoas (G. Casalis, conforme Streck).
V. 14 – Para ninguém está negado o acesso à boa notícia de paz. A paz é um presente de Deus na pessoa de Jesus Cristo. Em Jesus, Deus termina com a barreira entre ele e as pessoas. Ao encarnar-se em Cristo, derruba o “muro de separação que havia”. O muro da lei e das ordens casuísticas não conseguia levar as pessoas a Deus; antes, separava judeus de não judeus.
V. 15 – Acabam-se as contraposições entre aceitos e rejeitados por Deus, salvos e perdidos. Surge uma nova pessoa, “um só homem novo”, isto é, o modelo da nova humanidade que Deus recriou na pessoa do Cristo ressuscitado. A velha humanidade morreu na cruz.
V. 16 – A reconciliação vem pela cruz. Deus torna-a possível por amor. O acesso a Deus torna-se livre para todas as pessoas que aceitam a cruz de Cristo e a salvação que ela traz.
V. 17 – O anúncio da boa notícia de paz, trazida por Cristo, dá aos gentios a possibilidade de pertencer à família de Deus sem antes se tornar judeus. O v. 17 retoma Isaías 57.19 e fala da paz que toma corpo na igreja de forma visível, histórica.
V. 18 – Pelo poder de um só Espírito, o mesmo que ressuscitou Cristo, que foi soprado sobre os discípulos, temos acesso a Deus. Com fé podemos ir à presença do Pai como irmãos e irmãs com direitos iguais, sem limitação ou divisão étnica. O amor de Deus não faz diferença entre filhos e filhas.
V. 19 – Na comunhão dos santos, o cristão encontra paz e pertença à família de Deus: “Agora vocês são cidadãos que pertencem ao povo de Deus”. Streck diz: “A igreja não é, portanto, um amontoado de indivíduos, mas família de Deus; pertencer a ela é dádiva e compromisso. Judeu ou pagão passam a pertencer à família de Deus não por mérito próprio, mas pela graça de Deus”. A pessoa cristã é animada a assumir a sua cidadania sob o critério do evangelho de Jesus Cristo. Sabe-se que isso gera conflitos, pois, para os adversários do evangelho, ele não é sinal de salvação, mas de destruição do seu plano de dominação.
V. 20 – Aqui as receptoras e os receptores da epístola são chamados de pedras, que formam um edifício construído sobre o alicerce que os apóstolos (testemunhas da ressurreição de Cristo) e os profetas (pessoas que edificaram as comunidades iniciais) colocaram. A pedra fundamental (angular) é Jesus Cristo. Essa expressão também é citada em 1 Coríntios 3.10ss e 1 Pedro 2.6ss, onde se fala do sacerdócio de todas as pessoas que creem em Jesus Cristo.
A definição de pedra angular no dicionário diz que ela é uma pedra que faz fundamento e ângulo de um edifício. Definição do pedreiro Irineu: ela é fundamental para toda a obra, do começo ao fim. Cristo é o começo da igreja e o fim (em Mt 28, ele diz após enviar os discípulos: “estarei com vocês até o fim”). Não há nada a temer como igreja: quem a iniciou estará sempre presente.
V. 21 – Cristo mantém e faz crescer a obra dedicada ao Senhor. A igreja de Jesus Cristo tem estabilidade e firmeza. Ela é dinâmica e inclusiva. Nela, Cristo é o caminho, a verdade e a vida. A construção é de Deus, e nós somos usados como pedras vivas. O fim é o seu Reino, já iniciado com o próprio Cristo. Nós vamos em direção a ele com sua força e condução.
V. 22 – Todas as pessoas que vivem unidas com Cristo creem nele, tornam-se parte desse edifício, estão sendo construídas lado a lado com as outras pessoas para tornar-se uma casa onde Deus vive por meio de seu Espírito. Vejam o verbo no passivo (são construídas): não é a nossa ação, mas a graça de Deus que nos torna pedras vivas em sua construção. Em 1 Coríntios 3.16 e 2 Coríntios 6.16, Paulo também afirma: as pessoas que creem são templo vivo. Quem crê nesse Deus vai estar lado a lado com pessoas diferentes, formando um corpo. Essa igreja, em processo de construção (semper reformanda), é local de morada do próprio Deus.
3. Meditação
A partir do estudo do texto de Efésios 2, quero deixar algumas ideias para a pregação. Podem certamente surgir muitas outras, e tomara que seja assim. A situação de desesperança em que viviam os receptores dessa carta é evidente. A grande transformação, a mudança de vida que Cristo traz, é promessa de nova vida. “O sangue de Cristo aproximou os que antes eram mantidos a distância. Judeus e gentios, em Cristo, agora estão irmanados na igreja. Pela graça de Deus. Em Cristo, que perde toda a sua vida, dando-a ao mundo, Deus cria a possibilidade de uma nova existência entre as pessoas” (Streck). Nesse sentido, é fundamental ter claro que o acesso a Deus dá-se unicamente pela sua graça. Em Cristo Jesus, não há outra força, como lei ou tradição, que nos possibilita isso. Também é importante saber que quem nos une a Deus é o próprio Deus, e não os escolhidos por nós ou pela instituição igreja.
3.1 – A ausência de paz no mundo: o sentimento de conflito, violência ronda-nos diariamente. As notícias em rádio, jornal e televisão apresentam-nos a realidade da ausência de paz. O evangelho fala de pessoas que vieram ao encontro de Jesus como ovelhas sem pastor, com fome e doentes em busca de cura. O profeta Jeremias (23.1-6) alerta, mais do que isso, ameaça, dizendo: “Ai daqueles que perdem e dispersam as ovelhas do meu rebanho”. Também hoje sofremos com falsos anunciadores de paz e salvação. O mundo, regido pelo poder do capital, produz cada vez mais pessoas com fome de pão e outras com fome de consumir, para preencher o vazio em suas vidas. Por outro lado, as ofertas de consumo aumentam, causando um vazio cada vez maior de não ter as novidades do momento. Pessoas com vazios profundos tratam a depressão e a tristeza com a medicina que avança e promete vida longa com qualidade.
Que vida? Jesus diz: “Eu vim para que tenham vida em abundância”.
3.2 – Saudades de paz! Cristo traz a paz! Cristo traz e é a paz para dentro deste mundo, para a vida das pessoas que o buscam. Cristo é a vida! É o pão da vida e ensina que o pão (tudo o que necessitamos para viver) está entre nós, é dado por ele, mas precisa ser partilhado. Ele dá pão a quem tem fome, dá pão a todas as suas criaturas, não somente às escolhidas. Ele cura tocando as pessoas que já estão distantes, abandonadas, carentes de carinho e atenção. Ele derruba os muros da lei que separam, dividem, criam inimizade e exclusão. Ele derruba os muros que matam. Ele abre os caminhos que separam Deus e as pessoas. Ele dá cidadania. Ele reconcilia com Deus, inclui e acolhe como família de irmãos e irmãs. Streck diz: “Essa reconciliação vem pela cruz: é obra que Deus torna possível, por amor. O acesso a Deus, dessa forma, torna-se possível para todos os que aceitam a cruz de Cristo e a salvação que ela traz. Abre-se, assim, a possibilidade aos gentios de pertencer à família de Deus, sem necessidade de transformar-se antes em judeus. O acesso a Deus não está mais limitado e condicionado a divisões étnicas” (p. 58). É possível isso?
3.3 – A igreja, comunidade, como canteiro de obras! Na comunidade, na igreja, preparamo-nos para viver a fé, a paz. A igreja integra cada peça da construção e liga uns aos outros para tomar parte em tudo o que Deus oferece, na vida nova, na paz que Cristo traz. A igreja, a comunidade, é instrumento para que a paz de Cristo seja vivenciada já agora na comunhão. Ela prepara e encoraja para ir anunciar, viver e testemunhar no palco do mundo, no dia a dia da vida. A comunidade prepara cada pedra viva para tornar visível o servir e o cuidar do próximo, para com os distantes e diferentes. É um canteiro de obras em andamento, inacabado, “sempre em reforma”. E essa igreja em processo de construção é local de morada do próprio Deus (v. 22).
A vivência de comunidade é o ensaio e a preparação para poder exercitar no mundo, na vida do dia a dia, na sociedade. Aprendemos que fé e vida não podem ser separadas. Deus fez e faz tudo para que tenhamos condições de permanecer firmes mesmo em meio às dificuldades que se apresentam. Fomos trazidos para perto de Cristo por sua morte de cruz e ressurreição. Ele nos trouxe a paz; é graça, dádiva e nos é dado antes de dizermos sim. “Fazer parte de uma comunidade é ter uma família de fé onde Cristo é a pedra angular” (Streck). A igreja é graça, doação, ação, é presente, mas também responsabilidade e compromisso. O que aprendemos no texto é que as pessoas são valorizadas, dignificadas como filhos e filhas da família de Deus. O/a pregador/a pode buscar exemplos positivos que acontecem na comunidade.
“A igreja passa a ser descrita como a figura da construção, muitas vezes usada no NT para retratar com clareza o lugar e a tarefa de Cristo e para lembrar da necessidade de ajuda mútua entre as partes integrantes da construção. O fundamento da igreja são os apóstolos e os profetas. Cristo é comparado à pedra angular. Apóstolos são as testemunhas da ressurreição de Cristo, as pessoas autorizadas e fortalecidas por ele para a edificação das primeiras etapas da igreja. Eles são lembrados aqui, numa época pós-apostólica, pela credibilidade de sua pregação. Cristo torna-se acessível através da pregação desses e dos profetas. O texto certamente não se refere aos profetas do AT, mas aos pregadores da palavra de Deus nas comunidades primitivas. Jesus Cristo permanece sendo início e fim da igreja” (Streck, p. 59). É necessário também se conscientizar de que essa construção, como descrita no texto de Efésios, é a casa de Deus que almejamos.
Os exemplos da construção e do corpo fundem-se (v. 21): a construção ergue-se, cresce. A partir de Cristo e na direção dele cresce a igreja. Ela não está pronta. É dinâmica. Todos os que se encontram “em casa” junto a Deus tornam-se finalmente parte dessa casa: como pedras vivas são “construídos juntos para a morada de Deus no Espírito” (v. 22). São integrados à construção. Uma pedra isolada da obra não contribui para o conjunto. Torna-se inútil. Na parede, entretanto, uma pedra segura a outra, dando consistência e segurança à construção. Os ouvintes e leitores dessa carta são convidados a deixar-se integrar nessa construção viva, para que ela cresça em direção à sua realização plena no reino de Deus (Streck, p. 60).
As imagens do texto de Efésios mostram a total dependência da igreja em relação a Jesus Cristo: ele é seu ponto de partida, sua meta, ele é a única fonte que alimenta, ele é o único plano que a reorienta constantemente em direção a um futuro de paz e justiça, ele é quem a mantém unida, ele é o único acesso a Deus. Não acharemos essa casa pronta, pois ela não é de construção feita por gentes, mas por Deus. Mas nós podemos ter acesso a ela e fazer parte dela. Felizes as pessoas que têm saudades dessa casa. Elas farão de tudo para encontrar o caminho até lá, farão o possível para chegar em casa, mas sabem que isso só é possível com fé naquele que é o caminho, pois ela é graça de Deus.
Comunidade que experimenta vai além da comunidade local, aos de longe; não constrói mais muros nem leis que excluem; convida o próximo para fazer parte da família de fé; inclui os que estão à margem. Há muito a fazer. O pregador pode citar projetos locais ou de outros lugares onde se pode colaborar, a exemplo da campanha Vai e Vem, da IECLB. Concluo com uma frase de G. Brakemeier no VAI E VEM de 2011: “Enquanto o reino de Deus ainda não chegou em plenitude, a tarefa da missão está inacabada. Por isso mesmo necessitamos de periódicas motivações para não ceder ao cansaço. Importa impedir que a chama da ‘nossa paixão’ se apague”.
Bibliografia
STRECK, Edson. Proclamar Libertação 10. São Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 48-64.
SMOLDT, Hans. Neue Calwer Predigthilfen. Zweiter Jahrgang-B. Stuttgart: Calwer Verlag, 1980. p. 55-63.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).