Outrora excluído, agora incluído
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Efésios 2.11-22
Leituras: Jeremias 23.1-6 e Marcos 6.30-34,53-56
Autoria: Kurt Rieck
Data Litúrgica: 8° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/07/2021
1. Introdução
Por volta de 630 antes de Cristo, vivia o profeta Jeremias (23.1-6). Ele trouxe uma palavra de juízo sobre as lideranças religiosas, pois conduziam o povo de Deus de forma relapsa. O profeta anuncia que Deus colocará pastores que cuidarão das suas ovelhas, culminando num rei que receberá o nome de Senhor, Justiça Nossa. Esse rei justo veio na pessoa do Messias.
O Evangelho de Marcos 6.30-34,53-56 fala acerca de um povo desesperado como ovelhas que não têm pastor (v. 34). As pessoas eram curadas de toda sorte de doenças. Eis o pastor que o profeta Jeremias havia anunciado: Cristo.
Chegamos num novo tempo descrito no livro de Efésios (2.11-22). Líderes judeus seguiam distanciando o povo de Deus. A imposição de tradições religiosas afastava as pessoas de Deus. Jesus Cristo inaugura então um novo tempo, que por intermédio da sua morte na cruz permite que todas as pessoas possam ter acesso a Deus. O legado dado às comunidades cristãs foi concretizar uma nova forma de viver, uma nova humanidade, que se constrói sobre os parâmetros deixados por Jesus. Essa nova forma de viver não se baseia em ritos externos, mas no agir interno, em que Jesus vive e reina em cada pessoa, surgindo uma nova comunidade unida por um só Espírito.
Este tempo pós Pentecostes faz buscar entender essa casa onde Deus vive por meio do seu Espírito (v. 22 NTLH).
2. Exegese
Éfeso, a mais importante cidade portuária da Ásia Menor, teve a presença de Paulo por cerca de dois a três anos. Há indícios de que essa epístola fosse uma carta circular para muitas pequenas comunidades, pois nos manuscritos mais antigos a cidade de Éfeso não é mencionada. Também a autoria de Paulo é questionada. Nenhuma dessas teses diminui a relevância do conteúdo dessa epístola.
A carta tem como tema central o anúncio do plano divino de salvação, que consiste na vocação de judeus e não judeus para formarem o povo de Deus. Ela também fala de como é a nova humanidade que se deixa conduzir na pessoa do Cristo ressurreto.
Outrora a exclusão – v. 11 e 12
Os judeus desconsideravam os demais povos, chamando-os de gentios na carne, pagãos, deixando de compartilhar com eles o conhecimento que tinham de Deus. A circuncisão, ato de cortar o prepúcio do órgão sexual masculino, era sinal visível da fé judaica. Os incircuncidados eram considerados pessoas sem Deus, pois lhes faltava o “sinal do pacto abraâmico”. A radicalidade desse pensamento segregacionista chegava ao extremo de dizer que “os gentios haviam sido criados por Deus para ser combustível para o fogo do inferno” (BARCLAY, 1973, p. 114).
“Mãos humanas” colocam sinais. A circuncisão é uma operação física. A fé em Deus, o viver com Deus é bem mais que rituais externos. Se permanece apenas um sinal externo, nada se opera no íntimo da pessoa.
Desprezar toda uma história vivida pelo povo judeu, marcada pela circuncisão, negando seu valor institucional, seria cometer o mesmo erro apontado nesses versículos. Certamente os judeus fazem parte do povo de Deus. Mas o povo de Deus não se restringe ao antigo estado teocrático de Israel. O povo de Deus é bem mais que o povo judeu.
Agora a inclusão – v. 13 a 18
Em Cristo iniciou um novo ciclo. Quem outrora era julgado de estar sem Deus, agora são […] trazidos para perto dele pela morte de Cristo na cruz (NTLH). […] fostes aproximados pelo sangue de Cristo (ARA). Menção semelhante verificamos em Efésios 1.7, que diz: […] no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados (ARA); […] pela morte de Cristo na cruz, nós somos libertados, isto é, os nossos pecados são perdoados (NTLH).
O que separa as pessoas de Deus é o pecado. Cristo na cruz opera a redenção. Quem nos restaura é a graça de Deus. “A ideia fundamental de redenção é de tornar livre uma coisa ou pessoa que se tornara propriedade de outrem” (FOULKES, 1963, p. 42). A redenção tem um preço, e o preço apontado no texto é o sangue de Cristo. Não há valor maior que a pessoa do Messias. No pensamento judaico, a redenção do povo escravizado no Egito, celebrado na Páscoa, estava relacionada a um sacrifício. Pecado requeria sacrifício; […] sem derramamento de sangue não há remissão (Hb 9.22, cf. Lv 17.11). “O pecado implica escravidão da mente, vontade e membros, ao passo que remissão é liberdade, é aphesis […] que literalmente significa a soltura de uma pessoa de algo que a prenda” (FOULKES, 1963, p. 42).
O texto insistentemente aponta para a eirēnē. “Ele mesmo é a nossa paz.” A paz concretiza-se na pessoa de Jesus Cristo. Segue uma sistematização para perceber as ênfases dos versículos que gravitam em torno do tema paz.
v. 14
NTLH – Cristo quem nos trouxe a paz
ARA – Ele é a nossa paz
Consequência – Derrubou o muro da inimizade entre os judeus e não judeus
v. 15 e 16
NTLH – Foi assim que ele trouxe a paz
ARA – Fazendo a paz
Consequência – Acabou com a lei, juntamente com os seus mandamentos e regulamentos, formando novas pessoas, uma nova humanidade (2Co 5.17), eliminando a inimizade
v. 17
NTLH – Anunciou a boa notícia da paz
ARA – Evangelizou paz
Consequência – Para todos os que estavam perto e aos que se encontravam longe
Quando se menciona que Cristo aboliu na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças (v. 15 ARA – texto semelhante encontrado no livro de Romanos 10.4), vemos uma nova forma de entender a religião. O rabino Guershon Kwasniewski escreve: “No judaísmo existe uma rigidez muito grande no cumprimento dos preceitos e mandamentos. Temos como pilares 613 preceitos e mandamentos, que foram ordenados por Rambam” (In: WONDRACEK et al. (Orgs.), 2016, p. 28. No cristianismo surge uma nova forma de se relacionar com Deus a partir da graça de Deus revelada na cruz.
Todos chegarão até a presença do Pai em um só Espírito. Há somente um Espírito Santo. Há um Espírito que unifica pensamentos e ações. Esse sopro que vem de Deus permite o acesso ao Pai (ARA). Deus tem poder de transformar a tensão existente entre judeus e não judeus num novo caminho de paz, que tem o único propósito de nos levar à presença de Deus, que é único.
Igreja: a família de Deus – v. 19 a 22
A fé monoteísta deixa de ser exclusividade dos circuncidados. Estrangeiros e peregrinos (xenoi e paroikoi), pessoas que eram tratadas com antipatia e desconfiança, são reclassificados socialmente. É-lhes dada a dignidade de serem membros da família de Deus.
Brota uma figura de linguagem: um edifício. Ele é construído. É uma obra que se encontra em movimento. Seu alicerce são os apóstolos e os profetas. Abusos foram cometidos quando muitos se intitulavam apóstolos. São apóstolos os 12 discípulos de Jesus e Paulo. E quem são os profetas? No Antigo Testamento encontramos muitos. Há a menção de profetas também no Novo Testamento, conforme Efésios 4.11 e Atos 11.27. Observando a discussão inicial, é possível concluir que o autor está considerando a história do povo de Israel contada pelos seus profetas, que carece de ser conhecida e compreendida. É inegável que Deus falou com seu povo por intermédio dos profetas do Antigo Testamento.
A pedra angular é uma: Jesus Cristo. O parâmetro dessa construção é ele quem dá.
3. Meditação
Transpondo essa palavra para nossos dias, seguem algumas perguntas:
1) Em algum momento da sua vida você já se sentiu “sem lugar”, excluído?
2) Olhando para os v. 13 a 18, como somos “trazidos para perto de Deus” e quais as consequências práticas dessa aproximação?
3) Pensando nos versículos 19 a 22, o que Deus espera da igreja?
4) Qual é seu lugar na igreja de Cristo?
Na exegese, sistematizamos o estudo em três blocos. Seguimos nessa linha de pensamento.
Outrora a exclusão
Havia um grupo étnico que se achava melhor que os demais. Ele acreditava ter nas mãos a fé legítima. Os demais eram pagãos, não merecedores de terem o conhecimento de Deus. Desconsideravam ser instrumentos de Deus para a evangelização.
Saulo, homem de fé monoteísta, tinha como missão perseguir cristãos. Cristo o converte, mudando radicalmente sua visão de mundo. Paulo tem seus horizontes abertos, extrapolando limites étnicos, compreendendo que havia muitas ovelhas sem pastor. O bom pastor, Jesus Cristo, se revela a todos os povos e raças.
Há um grande segmento social que vive sem ser pastoreado. Etnicamente, descendentes de alemães carregam um peso semelhante ao do povo judeu. Facilmente nos fechamos em nós mesmos. Somos até classificados como sendo uma “igreja particular”. Temos dificuldade de chegar naquelas pessoas que se encontram sem rumo, sem Deus. Outras denominações cristãs chegam mais fácil lá onde o povo está.
A mensagem do evangelho trouxe alterações radicais. Em Jerusalém, entre o recinto do templo e o pátio dos gentios havia um muro de pedra no qual existia uma inscrição em grego e latim que “proibia qualquer estrangeiro de entrar, sob pena de morte” (FOULKES, 1963, p. 69). Esse quadro de separação é alterado por Cristo, unindo os povos, não nos ritos judaicos, mas sim na cruz.
Agora a inclusão
A morte de Cristo na cruz é o elemento que altera padrões. A morte questiona e nos faz reavaliar a vida.
Cito o teólogo Vítor Westhelle:
Uma teologia da cruz tem, por assim dizer, um princípio alopático em seu cerne; um veneno é, ao mesmo tempo, um remédio (ambos denotados pelo mesmo termo grego pharmakon). É em face da morte que a vida é uma dádiva; é em face da cruz que a ressurreição é uma palavra de graça; é no sofrimento que a salvação (saúde) é recebida gratuitamente (WESTHELLE, 2008, p. 62).
Escrevo essas linhas em tempos de pandemia. O que a Covid-19 terá causado até julho de 2021? A exemplo da inquietante busca por uma saída contra essa doença que espalha a morte, Cristo é a poderosa vacina contra a maldade humana. A força restauradora do feito de Cristo na cruz precisa ser anunciada.
A inclusão é tema sempre atual. A IECLB é constitucionalmente uma igreja ecumênica. Lamentavelmente também sofremos cisões. Respeitamos as igrejas pentecostais, sem a necessidade de nos tornarmos pentecostais. Cada denominação deve manter sua identidade sem desmerecer a forma de ser do outro. Corremos grande risco quando nos fechamos em nós mesmos. As instituições são frágeis, são humanas. Se por desapontamento quisermos criar a instituição perfeita, certamente a nossa participação a tornará imperfeita.
O choro, a dor, a injustiça na cruz jamais foram ou serão motivo de revanche. Todo aquele sangue vertido quer promover a paz.
Paulo não menosprezou a circuncisão como instituição. Para ele era o sinal da aliança, instituído por Deus; mas se o sinal externo não fosse acompanhado pela fé interior e pela obediência de vida à aliança, tornava-se sem valor e apenas obra da carne (FOULKES,1963, p. 67).
A obra redentora de Cristo, de reconciliar todas as coisas com Deus, de justificar gratuitamente os pecadores pela mediação da nova aliança, está inteiramente contida nesta palavra: Paz (ALLMEN, [s.d.], p. 318).
Igreja: a família de Deus
Em Cristo somos elevados à qualidade de povo de Deus, o mesmo título que era dado aos judeus. Judeus e gentios, pessoas de qualquer raça, cor ou posição estão juntos na família de Deus. Norteada por uma clara doutrina, a fé cristã está firmada nos ensinamentos dos apóstolos e profetas, tendo Cristo por parâmetro. Temos aqui a metáfora da construção, onde a pedra angular dá a linha certa para a edificação. Nesse povo, que hoje se chama igreja, reina o Espírito de Deus.
Deus espera que sejamos como uma casa, tijolo por tijolo postos em ordem, unidos, juntos, onde ele vive por meio de seu Espírito Santo. Não somos um amontoado de pedras que não têm vida. Somos vidas que se somam a outras vidas, tornando-se um corpo. É preciso se deixar encaixar. É preciso querer fazer parte. Os corações conquistados por Cristo somarão num mesmo propósito.
A igreja tem a oferecer uma palavra que estrutura as pessoas, que faz elas se encontrarem consigo mesmas, que as auxilia a chegar até a presença do Pai (v. 18 NTLH), que faz elas descobrirem o valor da solidariedade, da fraternidade, do amor ao próximo.
Encontre seu lugar na igreja de Cristo!
4. Imagens para a prédica
Outrora a exclusão
Você já se sentiu excluído? É um sentimento nada agradável. Ao pensar sobre essa pergunta, lembrei-me de quando tinha 13 anos. Fui ao grupo de jovens da igreja para aprender a jogar pingue-pongue. Entrei na roda por duas vezes e depois me excluíram. Eu jogava muito mal e estragava o jogo dos “bons”. Na oportunidade, havia prometido nunca mais pôr os pés naquele grupo, que se dizia cristão, mas que não era capaz de aceitar alguém com suas limitações. Histórias de exclusão acontecem em todos os segmentos e em todas as faixas etárias. Ainda bem que o ódio que senti daqueles que me rejeitaram foi passageiro, pois ali onde fui rejeitado, tornou-se espaço de vida onde o amor de Deus chegou ao meu encontro e me incluiu.
Agora a inclusão
É preciso que sempre de novo mergulhemos por muito tempo e sossegadamente na vida, no agir, no sofrimento e na morte de Jesus para reconhecer o que Deus promete e o que ele realiza. O certo é que no sofrimento se oculta nossa alegria, na morte nossa vida; certo é que, em todos os momentos, estamos em uma comunhão que nos carrega (Dietrich Bonhoeffer, Senhas Diárias 10.04.2020).
Igreja: a família de Deus
“Ubi Christus ibi Ecclesia”. Onde está Cristo ali está a Igreja. Igreja está para ser morada onde habita o Espirito de Cristo e onde todos os que amam a Cristo podem encontrar-se em seu Espírito. (BARCLAY, 1973, p. 126).
Proponho uma dinâmica para trabalhar a figura de linguagem da construção do edifício chamado igreja. Valer-se de um quebra-cabeça, na quantidade de peças que represente a quantidade de pessoas que integram sua comunidade. Entregar uma peça para cada participante neste culto. Valorizar a importância de cada parte. Montar o que for possível na celebração. A peça que ainda não tem seu encaixe aguarda a sua vez. Deixar o desafio para que ao longo de determinado tempo o quebra-cabeça possa ser construído. Cada pessoa encaixará apenas a sua peça. Expor num lugar visível, compondo-o, seja nos cultos, seja nos grupos existentes. Cada peça terá seu espaço no quebra-cabeça, tal qual cada membro será motivado a ocupar seu espaço em sua comunidade. Quanto tempo será necessário para finalizar esse quebra-cabeça (edifício)? Essa dinâmica quer mostrar de forma plástica a importância de cada pessoa na construção do todo.
Bibliografia
ALLMEN, J. J. von. Vocabulário Bíblico. São Paulo: Aste, [s.d.].
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento, Gálatas y Efesios. Buenos Aires: Editorial La Aurora, 1973. v. 10.
FOULKES, Francis. Efésios, introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1963.
WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008.
WONDRACEK, Karin H. K. et al. (Orgs.). Perdão. Onde saúde e espiritualidade se encontram. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).