Prédica: Efésios 2.13-22
Leituras: Jeremias 23.1-6 e Marcos 6.30-34
Autor: Romeu R. Martini
Data Litúrgica: 9º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/07/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
1. Uma Aproximação a partir do Nosso Contexto
Os textos bíblicos em apreço estão indicados para o 9o Domingo após Pentecostes. O que pode significar o fato de se estar dois meses depois dessa festa tão central para a Igreja? Poderia significar que as comunidades estão naquela fase do ano em que a vida comunitária está calma, morna, murcha, sem que se saiba o que fazer e onde atuar. Afinal, passaram-se o Natal, a Páscoa, Pentecostes, os eventos de destaque, que por si só impulsionam e, no mínimo, criam algum movimento na comunidade. Agora, porém, chegou a calmaria. Talvez pior, chegou o período em que parece não haver rumo. E o perigo é que seja necessário ficar nessa rnarcha circular, ensimesmada, lenta, até que recomece o novo Ano Eclesiástico. Mas, até lá, enquanto isso, há tanto a realizar… Tomara que não seja esse o caso da sua comunidade.
De qualquer forma, a perícope prevista para a pregação, mais as duas leituras complementares, parecem indicar, por um lado, que algo dessa calmaria sem rumo rodeou o povo de Deus desde o princípio. A primeira expressão — Mas agora (Ef 2.13) — parece sinalizar que o autor da epístola quer dizer: Oi, pessoal, flagremo-nos! Estamos noutra. O tempo de estar ‘sem Deus no mundo’ [2.12], para nós, passou. Quer dizer, uma leitura preliminar é indicativa de que o autor do texto quer evitar que seus destinatários fiquem sem rumo, andando em círculo; que o autor alerta para o perigo de se deixar que o motor sufoque na própria lentidão. E os dois textos de leitura ajudam a corroborar isso. O profeta fala de um tempo em que o povo está destruído, disperso. Marcos relata o caso de Jesus, no seu contexto, confrontando-se com um quadro desolador. Mas tudo isso é um lado da moeda. Há, pois, outro.
Por outro lado, assim como Jeremias não deixou de anunciar a esperança (e que esperança!), como Jesus não deixou de encarar a situação (Mc 6.34: passou a ensinar), o autor de Efésios procura substituir tábuas corroídas pelo tempo e pelo contexto por componentes típicos usados especificamente na edificação (2.20) do edifício (v. 21) da família de Deus (v. 19). Para começar, alude ao sacrifício de Jesus (v. 13). Portanto, esse tempo já distante da festa de Pentecostes, ainda tão aquém do Natal, não é tempo de deixar que a peteca caia. Ao contrário, é tempo de movimento conjunto, renovação, reavivamento, despertamento, ação.
2. Aspectos da Epístola e do Seu Contexto
Não é tarefa simples falar do autor, da época, dos destinatários da Epístola aos Efésios. lia várias hipóteses. Dentre elas, algumas já alcançaram o status de tese. Nos estudos das perícopes desta epístola que já se fizeram nos 21 números de Proclamar Libertação, nenhum considerou a obra de José Comblin (Epístola nos Efésios, Petrópolis, Vozes; São Leopoldo, Sinodal, 1987). Se todo ponto de vista é a vista de um ponto, aqui a vista parte dos pontos sinalizados por Comblin.
Embora Efésios inicie por Paulo (…) aos santos (…) (1.1), há mais indicadores de que seu autor não seja Paulo. Sendo este o caso, o texto é posterior ao apóstolo. Temos diante de nós uma síntese da mensagem paulina, mas uma síntese feita depois da morte do Apóstolo. Aceitando a hipótese de que ela tenha sido escrita por volta do ano de 90, a mensagem da epístola se explica muito melhor a partir da situação da Igreja nessa época (Comblin, p. 7). Quais os argumentos em favor de tal afirmação?
a) O texto reflete o período posterior à ruptura entre judaísmo e cristianismo. Não há mais aquelas polémicas típicas do tempo de Paulo. Foi-se a época da hostilidade entre judeus e pagãos. Nasceu uma entidade nova feita de judeus e de pagãos em que já não se nota mais a distinção”. E isso ocorreu no final do séc. 1.
b) Enquanto Paulo ensinava que a Igreja tinha por fundamento o próprio Cristo, aqui os apóstolos são tratados como base da Igreja (2.20). Os cristãos, agora, vivem dos ensinamentos dos apóstolos e profetas.
c) O Espírito ainda tem atuação marcante na Igreja (1.17-19). É mais o Espírito, e menos os líderes e bispos, como posteriormente, que determina o que cabe à Igreja fazer.
d) Ganha espaço sempre mais destacado a vida litúrgica. Como exemplo, encontra-se logo no início um bendito (1.3-14), uma fórmula típica da berakah (ação de graças) judaica, aqui, evidentemente, reinterpretada à luz da experiência em Cristo.
e) Os destinatários dessa epístola não são mais os pobres típicos dos evangelhos, mas grupos [famílias] consolidados e estáveis, integrados na socie¬dade romana (p. 9) (Ef 5.22-6.9).
f) A epístola não responde a problemas específicos. Por isso mesmo, também não parece estar endereçada a uma comunidade particular. Ela “responde antes a problemas globais das comunidades que pertenciam ao mundo paulino, uma geração depois da morte do fundador.
g) A epístola parte de uma nova visão eclesiológica. Igreja não se restringe mais à comunidade local, mas abrange o conjunto das comunidades, nos diversos lugares. Os cristãos não pertencem mais ao antigo Israel nem ao mundo decadente. Por isso, o destino da mensagem é a Igreja como realidade global” (p. 9). Essa Igreja santa e grande é encarada pelo autor de Efésios como força que compensa as fraquezas das comunidades particulares. É apresentada como positiva a possibilidade de integrar um corpo, a Igreja, cuja cabeça é Cristo. Esta será a maneira de resistir e amparar-se mutuamente dentro do Império (p. 10 e 23).
h) A Igreja encontra-se em fase de preservação da tradição, da ‘herança’ do paulinismo (p. 10). Daí que o autor traça regras de comportamento que permitam distinguir claramente os cristãos do mundo pagão que os rodeia. O mundo cristão rompe com o paganismo. Mesmo assim, a Igreja admite as estruturas estabelecidas. Porém crê que pode santificá-las com sua forma de agir. Prova disso é que a carta aceita o patriarcalismo romano estabelecido, mas no seu contexto busca encarnar a solidariedade cristã (p. 11).
Neste ponto é imprescindível uma observação complementar. Caso alguém tenha dúvidas quanto à tarefa da Igreja no mundo, eis na Epístola aos Efésios mais um testemunho de que os cristãos não deixam o mundo à deriva. Para quem, em contrapartida, poderia ter a impressão de que a epístola é conservadora, torna-se necessário partir do contexto da realidade de 1.900 anos atrás e não do mundo contemporâneo. Neste caso, o exemplo da posição dos cristãos ante o patriarcalismo é extremamente revolucionário. Afinal, teria sido frutífero os cristãos em princípio insistirem na abolição do status do homem? Em lugar disso, o texto propõe uma maneira de corroer aquele sistema aos poucos, por outra via: Maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou (…) (5.25).
3. A Perícope
O agora (2.13) é contraposição ao outrora (vv. 2,3,11, bem como toda a primeira parte deste capítulo). Aliás, essa antítese perpassa a perícope e o capítulo todo (agora x antes; um x ambos; paz x lei; concidadãos x estrangeiros e peregrinos). O que determinou a vida dos ouvintes outrora e naquele tempo (v. 12) pode ser resumido na expressão estando nós mortos em nossos delitos (v. 5). E a isso contrapõe-se o agora, já (v. 19), estais sendo (v. 22).
O impulso, o ponto de partida, a base para a argumentação está no v. 13. A reviravolta entre o antes e o agora é o acontecimento da cruz: o sangue de Cristo. E a perícope enfatiza os frutos da obra redentora de Cristo. Paredes de inimizade (entre ambos, judeus e gentios) caíram (v. 14). O determinante não é ;i ação por causa da lei. Na comunidade cristã existe uma nova pessoa (v. 15), movida pela liberdade, fruto da assimilação da graça de Deus. E eis aí um primeiro resumo: o sangue de Cristo derreteu divisões (isso se reporta a Is 2.4!). O que antes separava (inimizade) diluiu-se no sangue de Cristo (por meio da cruz), num novo corpo (v. 16).
Retoma-se a origem da própria comunidade. Ela é fruto da pregação; do anúncio da paz, que almeja a unidade (vv. 17-18). Portanto, foi-se o tempo de ser como desenraizado, sem saber de onde se vem, sem ter para onde ir. O texto chama a atenção para tomar consciência de que agora existe o espírito de pertença. Somos família (v. 19). A Igreja é edifício. Porém (interessante!) um edifício não acabado, pois ele tem vida. Ele cresce (v. 21). Isso só é possível porque sua base não é de cimento. Sua base é o ensinamento dos apóstolos, profetas, na verdade, o próprio Cristo. E essa Igreja, em processo de construção (semper reformanda!), é local de morada do próprio Deus (v. 22).
Há uma ênfase visível de chamamento para a unidade dos que integram a Igreja. Há um apelo insistente para que a Igreja se torne consciente daquilo que une os que antes estavam esparramados e separados. Todavia, não é unidade em torno da tradição, da etnia, da proximidade geográfica. É unidade no sacrifício de Cristo.
4. Meditando à Sombra do Texto
Por um lado, se olharmos nossas comunidades, nossa Igreja, sem moralizar o texto, é preciso confessar: Senhor, quanta encrenca vã!; quanto preconceito entre pessoas marcadas pelo mesmo Batismo!; quanto bloqueio para a diaconia (At 6.1-7) por causa de fórmulas cheias de mofo! Senhor, ainda estamos naquele tempo de outrora. Até parece que a vinda (Natal), vida, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus (Páscoa) nos são desconhecidos. Senhor, se atentarmos para o espírito que permeia nossa vida comunitária, o que celebramos em Pentecostes?
Por outro lado, quanta coisa bonita há que pode ser realizada na e pela comunidade! Se na comunidade e/ou paróquia as coisas não andam, ergamos os olhos por cima do muro. Olhemos para o que acontece pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) afora e em outras igrejas co-irmãs. Há tantos sinais de gente nova semeando concretamente sementes de esperança e de solidariedade, quebrando barreiras, diminuindo distâncias, dando vida nova literalmente a doentes, idosos, enlutados, viciados, desalentados, essa multidão toda de ovelhas sem pastor (Mc 6.34!).
5. Dicas para a Interpretação
Poderia (não deveria!) realizar-se em forma de encenação:
a) um grupo (representando a diretoria, ou os responsáveis pela missão) representa a situação da comunidade sem rumo; conversas sem nexo; planos que não culminam em execuções concretas;
b) o/a pastor/a destaca aspectos do texto da prédica. E o acento poderia ser um convite na seguinte direção: Abaixo a letargia, a neutralidade, a indiferença. A comunidade cristã tem motivos suficientes para existir e agir. Nossa razão de ser tem por base o sacrifício de Jesus, que derrubou paredes, que aboliu o ‘tem que’. Somos amados. Por isso, amemo-nos mutuamente!;
c) noutro momento, um grupo traça diretrizes, à luz de uma mensagem baseada na leitura de alguns versículos da perícope, para a ação efetiva no trabalho com pessoas portadoras de deficiência, Alcoólicos Anônimos, crianças, retiro do ensino confirmatório, grupo de idosos, trabalho preventivo de saúde, organização de grupos de trabalhadores/as, enfim, para as atividades que existem na comunidade ou que se sabe existirem na IECLB (bem como fora dela). Importante é não idealizar. Devem-se mostrar também as dificuldades que con¬tinuam, pois a ação do cristão sempre será provisória diante da plenitude do Reino.
6. Subsídios Litúrgicos
O culto (de preferência com Eucaristia) poderia explorar (no bom sentido!) determinados componentes litúrgicos. A começar pelo Kyrie e o Glória. O Kyrie é apropriado para expressar o lamento da comunidade diante de Deus. Por isso, Kyrie eleison, ou seja, Senhor, tem misericórdia de nós! Socorre-nos, pois sozinhos não conseguimos mais. É momento de carregar diante de Deus aquilo que nos machuca, que nos deixa perplexos, que nos dá a sensação de derrota. Em contrapartida, no Glória cantamos em alto e bom som que apesar das paredes aparentemente intransponíveis seguiremos em frente. É momento de expressar os feitos de Deus, também aqueles que são fruto da ação da comunidade, louvando-O por causa disso.
Sem dúvida, este é um culto adequado para dar espaço para o ensaio de gestos de aproximação mútua, sinalizar o desafio de quebrar barreiras (preconceitos, inimizade), abrir portas para a reconciliação (respeitando, evidentemente, os limites culturais locais). Sempre partindo do pressuposto de que a fundamentação disso está dada no texto bíblico. Neste sentido, o texto do Evangelho é apropriadíssimo para fazer-se uma leitura com encenação. E para isso há várias possibilidades. Uma delas poderia ser a seguinte: um grupo de pessoas, cada uma portando no peito uma placa de identificação, representa os integrantes da multidão sem pastor que é conhecida pela comunidade.
Na oração do Pai-Nosso seria muito importante fazer um comentário, breve e objetivo, destacando que oramos Pai nosso. Não é Pai meu! Damo-nos conta das implicações desta formulação? Em sequência, orá-lo de mãos dadas.
Finalmente, para evitar que a Palavra caia em pedras, por que não retomar o texto, ou a interpretação realizada no culto, num próximo encontro? Que tal retomar o assunto na próxima reunião do presbitério? Se cremos no poder da Palavra, se cremos que a fé remove montanhas, nada mais justo do que, além de plantar (pregar a Palavra no culto), também regar essa mesma Palavra. Aí parece abrir-se o caminho para o que diz o final de uma ordem litúrgica inglesa: Depois da bênção no final da matutina, fiquemos em pé. Desta posição vamos partir, sinalizando, assim, que ligamos nosso culto ao trabalho diário.