Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Efésios 3.14-21
Leituras: 2 Reis 4.42-44; João 6.1-21
Autor: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: 8º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/07/2009
1. Introdução
Os textos de 2 Reis 4.42-44 e João 6.1-21 são claramente semelhantes. A passagem do Antigo Testamento conta que o profeta Eliseu recebeu vinte pães e com esses alimentou um grupo de cem profetas. Todos comeram, e ainda sobrou. A narrativa do evangelho diz que com cinco pães e dois peixes Jesus deu de comer a quase cinco mil homens. Todos saciaram a fome e ainda encheram doze cestos com os pedaços que sobraram.
Contudo, o texto de Efésios parece não ter nada a ver com isso. Traz a informação de que seu autor ora em favor da igreja, suplicando que Deus, por meio do Espírito Santo, conceda-lhe poder para ser espiritualmente forte e alicerçado no amor, a fim de que compreenda o amor de Cristo em sua plenitude.
O que os dois primeiros textos têm a ver com o último? Qual a relação entre eles? A resposta que encontramos é a seguinte: assim como os cem profetas do tempo de Eliseu e os quase cinco mil homens do tempo de Jesus precisavam de pão para o sustento físico, assim também a igreja precisa do poder do Espírito Santo para seu sustento espiritual; assim como não faltou pão para os profetas nem para a multidão que seguia Jesus, da mesma maneira não haverá falta de poder para a igreja ser espiritualmente forte por meio do Espírito Santo.
Diante do texto de Efésios devemos perguntar, em primeiro lugar, o que as igrejas têm buscado nos dias de hoje. E, em segundo lugar, devemos questionar: será que aquilo que têm buscado é realmente o que importa? Com tais perguntas devemos examinar a oração em favor do povo de Deus.
2. Viagem dentro do texto
2.1 – Uma carta ecumênica
Apesar de nossas Bíblias trazerem a informação de que o texto foi escrito por Paulo à igreja de Éfeso, há razões seguras para considerar que ela não foi escrita a nenhuma igreja em particular, mas a cristãos de uma forma geral. Alguns manuscritos mais antigos não trazem o nome da cidade. Além disso, a carta toda não apresenta referências pessoais, apesar de ser esse um costume do apóstolo Paulo. Levando em consideração que ele permaneceu durante três anos em Éfeso (At 20.31) e manteve um relacionamento profundo com seus presbíteros, conforme se constata no encontro com eles em Mileto (At 20.17-38), seria totalmente incompreensível a redação de uma carta em que há manifestações de que seu autor não conhece seus destinatários (Ef 1.15; 3.2; 4.21). Sua origem seria, pois, uma carta circular a diversas comunidades locais. Sua mensagem dirige-se, portanto, à igreja de uma forma geral.
2.2 – Eu dobro os joelhos diante do Pai (Ef 3.14)
A expressão indica que seu autor vai expor sua oração, anunciada no início do capítulo (Ef 3.1). Sua oração é dirigida a Deus, o Pai. A paternidade de Deus estende-se sobre todos os seres (toda a família no céu e na terra – Ef 3.15), pois ele é o criador de todas as coisas e mantém um relacionamento de amor com a sua criação.
2.3 – Para pedir que vós sejais fortalecidos em poder pelo seu Espírito no homem interior (Ef 3.16)
O homem interior refere-se ao ser humano nascido de novo pelo poder do Espírito Santo, o qual se volta a Deus. Com ele continua a conviver o “homem exterior”, isto é, o “homem velho”, que se volta para o pecado (Rm 7.22; 2Co 4.16; Cl 3.9-10). Entre ambos trava-se uma luta, na qual a nova criatura triunfa pelo poder do Espírito Santo.
2.4 – Para pedir que Cristo habite em vossos corações (Ef 3.17)
Não se trata, simplesmente, de uma súplica para que ocorra uma experiência emocional. É muito mais do que isso. A expressão refere-se ao estabelecimento de uma união mística com Cristo, pela qual Cristo passa a viver em cada cristão. Isso se traduz em vida de amor no relacionamento com os outros seres humanos.
2.5 – Assim tereis condições de compreender (Ef 3.18)
Aqui, a compreensão não é um processo meramente intelectual. Diz respeito a uma experiência de conhecimento íntimo e profundo, resultado de uma intensa comunhão pessoal.
2.6 – E conhecer o amor de Cristo (Ef 3.19)
A expressão aponta para a cruz, pois foi nela que o amor de Cristo se revelou em sua integralidade.
2.7 – Para que sejais plenificados com toda a plenitude de Deus (Ef 3.19)
Assim como em Cristo habita a plenitude de Deus (Cl 1.19), da mesma forma deve suceder com o cristão. Pela atuação do Espírito, a plenitude da vida divina ocorre na existência do membro da igreja, que é o corpo de Cristo.
3. Imagens para a prédica
Vivemos tempos difíceis para a igreja em nosso país. Ocorre uma acirrada competição religiosa. As igrejas disputam fiéis entre si. Cada uma quer ser a maior, a mais rica, a mais poderosa e a mais influente. Os líderes religiosos não conseguem se livrar desse clima que envolve todos. São engolidos por ele. Acabam fazendo tudo para que suas igrejas cresçam e conquistem notoriedade.
Em nosso tempo, está cada vez mais forte a compreensão da igreja como uma empresa e do líder religioso como empresário. Tanto a empresa como o empresário são estimulados a ser bem-sucedidos.
Será, porém, que é isso mesmo? É com essa finalidade que proclamamos a mensagem das Escrituras? É com esse objetivo que trabalhamos?
A oração do texto de Efésios não se insere nessa competição. Não é uma súplica por uma deter minada igreja. Ao contrário, é uma oração ecumênica. É uma oração em favor de todo o povo de Deus. Trata-se de uma oração que precisamos aprender a fazer, intercedendo pela igreja de Cristo de uma forma geral. Essa é uma atitude importante para que comecemos a suplantar o espírito de competição entre nossas igrejas. Ao orarmos por todo o povo de Deus, devemos também nos dispor para o aprofundamento do relacionamento com todo o corpo de Cristo, procurando desenvolver trabalhos em conjunto.
E o que é suplicado a Deus na oração por toda a igreja? Crescimento numérico de fiéis? Riqueza e poder?
Na verdade, coisas desse tipo nem de longe são mencionadas. A súplica é para que os cristãos sejam novas criaturas pela atuação do Espírito Santo. Em outras palavras, a súplica é para que os cristãos desenvolvam uma união mística com Cristo, trilhando o caminho da cruz, vivendo em amor e comunhão uns com os outros.
É interessante observar que, em nosso país, tem crescido vertiginosamente o número de evangélicos. Com isso muitas igrejas estão exultantes. No entanto, outro aspecto deveria chamar nossa atenção. O crescimento dos evangélicos no Brasil não tem produzido uma transformação significativa em nossa sociedade. Ao que tudo indica, isso se deve ao fato de que o caminho da cruz não tem sido trilhado e a vida em amor e comunhão não tem sido uma realidade na vida do povo de Deus.
Será que essa situação pode ser revertida? A oração que se encontra na Epístola aos Efésios termina com as seguintes palavras: “Àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre! Amém”. Diante de tais palavras, a conclusão é que Deus tem poder para transformar nossa realidade. Devemos orar, suplicando em favor da igreja, tendo fé em Deus. Ele pode nos transformar para que sua plenitude nos plenifique.
4. Uma imagem para a prédica
Há uma história, contada por Leonardo Boff, que serve para ilustrar o que é a união mística com Cristo. É a história do boneco de sal.
Diz assim:
Era uma vez um boneco de sal. Ele vivia peregrinando por terras candentes e áridas. Ouvia sempre muitas estórias a respeito do mar. Mas o boneco de sal nunca tinha visto o mar. Podia-se dizer que ele conhecia o mar por ouvir falar. Ele imaginava como seriam as águas e as ondas do mar. Até que um dia o boneco de sal chegou à conclusão de que conhecer o mar por ouvir falar não era suficiente. Ele precisava ver o mar, tocar as ondas do mar, conhecer o mar por si mesmo. E o boneco de sal se pôs a caminhar para ver se chegava até o mar. Andou muitos dias e noites. Finalmente, depois de muitas andanças, num belo dia, o boneco de sal contemplou o mar. Ele não tinha ainda certeza se aquilo era realmente o mar. Por isso o boneco de sal chegou bem perto do mar e perguntou: “É você que é o mar?”. Imediatamente escutou a resposta: “Claro! Eu sou o mar! Será que você não me conhece?”. O boneco de sal disse: “Não! Eu não o conheço ainda. Só ouvi falar muito a respeito de você! Eu gostaria muito de conhecer-te melhor!”. O mar respondeu: “Para você me conhecer mesmo não basta me ver! É preciso que você me toque!”. Então o boneco de sal, timidamente, tocou o mar com as pontas dos seus dedos do pé. Aconteceu algo fantástico! Ao tocar as águas, o boneco de sal percebeu que começava realmente a conhecer o mar. Mas logo se deu conta de uma coisa estranha que estava acontecendo no seu corpo. E o boneco de sal deu um salto para trás e disse para o mar: “Veja só! As pontas dos dedos do meu pé desapareceram quando eu te toquei! Ó mar, o que foi que você me fez?”. O mar respondeu: “É que para me conhecer e me compreender não era suficiente que você me visse! Para me conhecer e me compreender, você tinha que me dar alguma coisa de você mesmo!”. Ao ouvir essas palavras, o boneco de sal tomou uma decisão radical! Começou a entrar resolutamente no mar, solene e devagar, como quem vai fazer o ato mais importante de toda a sua vida. À medida que ia entrando no mar, o boneco de sal ia se diluindo. Estranhamente, porém, o boneco de sal sentia que, quanto mais se desmanchava, mais conhecia o mar. Até que, finalmente, uma onda o tragou completamente. E o boneco de sal, antes de ser diluído pelo mar, ainda teve tempo de gritar: “Agora eu sei o que é o mar! Agora eu conheço o mar!”.
O boneco de sal conhecia o mar só por ouvir falar. Isso não foi suficiente para ele. Para conhecê-lo de fato, o boneco de sal teve de ir até o mar, teve de conversar com ele e teve de tocá-lo. E o boneco de sal só descobriu que conhecia o mar quando foi por ele diluído.
5. Subsídios litúrgicos
Afirmação de fé
“Não estamos sós. Vivemos no mundo de Deus. Cremos em Deus, que criou e continua criando, que veio em Jesus Cristo para reconciliar e renovar. Confiamos em Deus, que nos chama para ser igreja; para amar e servir os outros; para procurar a justiça e resistir ao mal; para proclamar Jesus, crucificado e ressuscitado, nosso juiz e nossa esperança. Na vida, na morte e na vida depois da morte, Deus está conosco. Não estamos sós. Graças sejam dadas a Deus” (Igreja Unida do Canadá).
Oração
“Senhor Deus Todo-Poderoso, perdoa tua igreja: sua riqueza entre os pobres, seu medo entre os injustos, sua covardia entre os oprimidos. Perdoa-nos, teus filhos e filhas: nossa falta de confiança em ti; nossa falta de esperança em teu reinado; nossa falta de fé em tua presença; nossa falta de confiança em tua misericórdia. Restaura-nos à tua aliança com teu povo; conduze-nos ao arrependimento verdadeiro; ensina-nos a aceitar o sacrifício de Cristo; fortalece-nos com o encorajamento do Espírito Santo. Quebranta-nos quando formos orgulhosos; fortalece-nos quando estivermos fracos; humilha-nos quando confiarmos em nós mesmos; chama-nos pelo nome quando estivermos perdidos para nós mesmos. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.” (Risk, CMI, Genebra, v. 11, 1975).
Bibliografia
MACKAY, John. A Ordem de Deus e a Desordem do Homem – A Epístola aos Efésios e a época atual. São Paulo e Rio de Janeiro: UCEB e CEB, 1959.
STAAB, K.; BROX, N. Cartas a los Tesalonicenses, Cartas de la Cautividad,Cartas Pastorales. Barcelona: Herder, 1974.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).