O exemplo do amor do Pai
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Efésios 4.25-5.2
Leituras: 1 Reis 19 4-8 e João 6.35, 41-51
Autor: Cláudio Kupka
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/08/2015
1. Introdução
Estamos diante de um texto muito atual. O tema da relação interpessoal e solução de conflitos é agenda diária na vida familiar e comunitária. Falando em família, é oportuno dar luz a esse enfoque à medida que é lá que é estruturada a conduta ética das pessoas.
Por isso é aceitável o desafio de ler esse texto à luz da comemoração do Dia dos Pais. À parte do lado comercial dessa comemoração, creio ser sempre uma oportunidade para refletir sobre a vocação paterna, um aspecto relevante tanto a pais cristãos como à sociedade, na medida em que essa é uma vocação muito negligenciada por homens, mulheres ou qualquer familiar do qual seja requerido cumprir esse papel na família e também na sociedade. O centro da mensagem são o exemplo e a postura de Deus e Cristo a ser imitada por pais e todos nós.
O texto de 1Rs 19.4-8 traz a memória do profeta Elias, um profeta com postura paternal para com Israel, como Eliseu reconheceu antes de vê-lo partir (2Rs 2). Na perícope, é ressaltada a vulnerabilidade de Elias diante da ameaça de morte por Acabe e Jezabel e como Deus lhe deu forças e o guiou ao exercício profético com novas forças e consciência da sua missão. O texto oportuniza o enfoque da nossa humanidade e fragilidade no exercício de nossa vocação cristã.
Jo 6.35,41-51 é o segmento do capítulo 6 do Evangelho de João que resume o discurso central sobre o debate entre Jesus e alguns judeus sobre o sentido do milagre da multiplicação dos pães. Jesus reage aos que questionavam o sentido messiânico de seu gesto, alegando inclusive terem conhecido seu pai José, anunciando na metáfora do “pão da vida” a dimensão da plenitude da vida oferecida por Deus. Nem o alimento tampouco o milagre em si tem valor se a fé não nos conduzir à entrega total a Cristo, a viver desse alimento como gesto mais fundamental da nossa existência. Esse texto, na perspectiva que somos desafiados a refletir, ajuda-nos a focar no aspecto central da fé em Cristo. Mais do que dar o pão e mostrar confiabilidade, é tarefa paterna dar conteúdo ao gesto. A tarefa paterna sempre vai apontar para o exemplo de quem dá a vida, quem ama incondicionalmente e que sustenta no sentido amplo o objeto de seu amor e cuidado.
2. Exegese
a) Nossa perícope inaugura o segmento parenético, típico das cartas paulinas. Não são recomendações práticas avulsas, desvinculadas do conteúdo anterior. Pelo contrário, são desdobramentos intencionais da construção teológica da carta como um todo.
Efésios é uma carta escrita a um público gentílico. Seu tema é unir tudo o que existe no céu e na terra sob a autoridade de Cristo (1.9,10). O mundo sem Cristo é um mundo dividido, pessoas dividem-se entre si e vivem alheias a Deus. Em Cristo está a única esperança de união dessas dimensões. No contexto da época, o contexto dessa união era a divisão entre gentios e judeus. Paulo sentia-se pessoalmente chamado a superar essas barreiras. Em Cristo não há judeus nem gentios, dizia ele (Gl 3.28).
b) O capítulo 4 torna-se central na construção dessa teologia da unidade da igreja: Um só corpo, um só Espírito e uma só esperança. (…) Um só Senhor, uma só fé e um só batismo (v. 5,6). Apesar da diversidade desse corpo, algo muito forte sustenta sua unidade: o amor de Deus (Ef 3.17; 4.2; 4.15; 4.16 e 5.2). Por isso é fundamental que cada um de nós se empenhe na prática do amor, tendo em vista a reconciliação e a manutenção da unidade. Seguir a Cristo significa abandonar a “velha natureza” e renovar a mente, vestindo “a nova natureza de Cristo”.
c) Nossa perícope enfoca alguns temas da relação interpessoal fundamentais na construção da unidade de Cristo: a verdade, a ira, o roubo, a fala e o perdão. Estão colocados num contexto de ruptura com a vida anterior, que seguia “alheia à vida de Deus” (v. 18). Os temas são colocados com uma nítida ênfase no aspecto positivo da conduta.
O tema da mentira e da verdade (v. 25) é situado no contexto da unidade do corpo de Cristo. Não há sentido para alimentar a mentira – é um ato de falsidade que não faz sentido na convivência no corpo de Cristo.
A ira (v. 26-27) igualmente pode comprometer a unidade. Citando o Salmo 4.4, Paulo lembra que ira pode surgir e pode até ser justa, mas não nos deve levar a pecar e, se persistir em nossa mente, dominar nosso interior, permitindo que o mal tome conta de nós. “O cristão deve estar certo de que sua ira provém de justa indignação e que não exprime apenas provocação pessoal ou orgulho ferido. Não deve possuir motivos pecaminosos nem permitir que o leve de qualquer forma ao pecado” (Foulkes, p. 110). Há uma clara advertência ao risco do ressentimento. Quando mal resolvida e quando persiste em nossos corações, a ira destrói relações e a comunhão.
O furto (v. 28) é uma traição à confiança. É também a ruptura de uma busca digna de prover sustento à vida. Ao invés do furto, é o trabalho que deve ser o caminho adequado a quem deseja conduzir sua vida segundo o “novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (v. 24). Há ainda uma menção nessa virtude à ajuda aos necessitados. Esse novo caminho do trabalho digno não visa a uma perspectiva egoísta, mas solidária.
O v. 29 traz a reflexão sobre o falar, com o que esse deve estar comprometido. Cada palavra deve ter em vista a edificação e a sintonia com o agir gracioso de Deus. O adjetivo sapros significa podre ou sem valor e está em oposição à palavra agathos pros eikodomēn, que significa útil, edificante. A versão de Almeida Revista e Atualizada “conforme a necessidade” poderia ser traduzida como: “em relação ao assunto em questão” (Foulkes, p.112).
A expressão do v. 30 “entristecer o Espírito de Deus” provém de Isaías 63.10. Ela é oportuna porque há menção clara ao papel unificador do Espírito Santo (4.4) e ao selo de propriedade que significa sua doação a nós (1.13). Ao ofender um irmão ou uma irmã, ofendemos e entristecemos também o próprio Deus através do seu Espírito, que habita em nós e entre nós.
Segue no v. 31 resumidamente uma lista de atitudes que comprometem a saúde relacional no corpo de Cristo: a amargura, a irrupção incontrolável de raiva, a manifestação raivosa e ofensiva, o tom descontrolado e agressivo do falar, a acusação falsa e a calúnia ao próximo. A lista inversa aparece no v. 32: bondade, compaixão (literalmente “com intestinos saudáveis”) e perdão mútuo, seguindo o exemplo de Deus em relação a nós.
Os versículos finais (5.1,2) desembocam na ideia de que, como filhos e filhas, devemos ser imitadores de Deus em nossas relações. Assim como filhos têm em seus pais exemplos e os imitam, assim nós temos em Deus nossa referência maior.
O que é mais importante imitar? O valor central dessa imitação é o amor que dá a vida, assim como Cristo nos demonstrou, uma que serve incondicional- mente ao próximo. Assim o texto retoma o tema do v. 15.
3. Meditação
a) Nossa natureza humana leva-nos à divisão. Nossas individualidades regadas pelo egocentrismo dificultam ver em nosso semelhante alguém digno de confiança. Soma-se à nossa precariedade humana o sentimento de desamparo, caracterizado contraditoriamente pela desconfiança em relação à autoridade ordenadora e pela frustração do insucesso de iniciativas individuais. Não alcançamos sucesso sozinhos e não confiamos na autoridade que nos pretende organizar para o alcançar juntos. Temos, enfim, dificuldade de ver o potencial da vida em comunhão e o valor da solidariedade como instrumento de superação de injustiças.
Deus alcança-nos em nossa precariedade e desunião. A chave que nos falta para a unidade está em Deus. Em primeiro lugar, porque a esperança não está na natureza humana, aliás, sempre suspeita e comprometedora. Em segundo, só Deus em Cristo possui a prerrogativa de unificar o que está dividido. Para nós, nenhum sistema unificador da humanidade é alcançável. São, no máximo, tentativas. Para Deus ele existe, pois foi ele que nos criou e nos resgatou para uma esperança unificadora.
Contrariamente ao espírito humano, a autoridade de Deus não se impõe pela força nem por artimanhas astutas. A ordem que Deus cria e que nos serve como nova referência não é imposta – é oferecida graciosamente. Esse gesto desarma o espírito humano. Pela fé o ser humano pode confiar no caminho que Deus lhe oferece. Essa é uma possibilidade nova. Deus conquista-nos pelo amor e para a causa do amor.
b) O nosso texto encaixa-se na reflexão prática sobre como é pautada a vida daqueles que pretendem viver a unidade de Cristo. É um ato de fé, movido pela esperança do evangelho. É um ato de renúncia às armas humanas que pretendem alcançar a paz com a força e a violência. É um ato de amor, inspirado no exemplo do Pai, manifesto em Jesus. É a reconciliação com o Pai, que conquista seus filhos e filhas com amor e dá uma referência clara e segura para conduzir nossas vidas.
É possível, então, repassar vários desses temas relacionais à luz das possibilidades do amor e da graça de Deus.
A mentira em si é um tema complexo. Nesse caso, penso ser relevante tratar o tema da verdade como uma busca coletiva e solidária e a mentira como uma tentação a uma saída imediatista, egocêntrica e simplificadora da realidade. Se não nos é possível compreender a verdade de determinada situação a partir de nosso ponto de vista individual (pois ele será sempre parcial), só nos é possível fazê-lo coletivamente. Na ansiedade de resolver de maneira imediata, a mentira torna-se uma saída fácil. A verdade está ligada ao julgamento das ações alheias. Novamente não só o imediatismo nos atrapalha como nossa tendência à autojustificação. A mentira nesse caso protege-nos moralmente. A solidariedade como marca das relações comunitárias movidas pelo amor de Cristo coloca-nos numa relação de clara cumplicidade, tanto na dificuldade de formular a verdade como no receio de manchar a confiança coletiva com a mentira.
A ira também pode oportunizar uma maneira imediatista de resolver o julgamento moral. De posse de nossa perspectiva pessoal, arrogamo-nos o direito de ver o quadro todo da situação e fazer justiça. Quando nos deixamos envolver emocionalmente, podemos precipitar reações intensas (cólera) ou duradouras (mágoa). A ira, quando nos move na direção da denúncia e da verdade, só alcança a perspectiva da justiça quando é compartilhada coletivamente. No diálogo entre as partes, há possibilidade de esclarecimento, de confissão e de perdão.
O tema do trabalho digno (em oposição ao furto) traz novamente a perspectiva solidária como horizonte.
O tema do falar traz a perspectiva da comunicação como instrumento de unidade. A comunicação, que também é instrumento de construção da unidade, deve pautar-se pelos valores da unidade. Ela não é neutra. Ela é complexa e permeada de elementos emocionais. O amor como valor orientador da comunicação verbal irá conduzir-nos criativamente nesse processo tão desafiador.
A compaixão, a bondade e o perdão devem pautar nossas relações. Sem elas, as exigências, os tropeços e as contradições sufocam o sucesso de nossos relacionamentos. São ações que distensionam relações em crise e reconciliam as partes. São ações que afirmam a graça, que anulam nossos julgamentos baseados em mérito, que vencem a culpa.
c) Há um paralelo entre o exemplo de Deus a ser seguido por seus filhos e filhas com o desafio da vocação paterna. Exercer essa função no contexto da família requer dessa pessoa que seja um exemplo presente e dedicado na educação dos filhos. Essa presença deve afirmar valores, colocar limites e disciplinar. Essa autoridade deve ser permeada pelo amor dedicado e não pela frieza, omissão ou violência. Pais só são respeitados pelos filhos se permitirem que sua conduta e vocação seja inspirada e orientada por Deus. É no amor de Deus que encontrarão uma referência segura para sua conduta.
4. Imagem para a prédica
Dois irmãos, que moravam em fazendas vizinhas, separadas apenas por um riacho, entraram em conflito. Foi a primeira grande desavença em toda uma vida de trabalho lado a lado. Mas agora tudo havia mudado. O que começou com um pequeno mal-entendido, finalmente explodiu numa troca de palavras ríspidas, seguidas por semanas de total silêncio. Numa manhã, o irmão mais velho ouviu bater à sua porta.
– Estou procurando trabalho, disse ele. Talvez você tenha algum serviço para mim.
– Sim, disse o fazendeiro. Claro! Vê aquela fazenda ali, além do riacho? É do meu vizinho. Na realidade, do meu irmão mais novo. Nós brigamos e não posso mais suportá-lo. Vê aquela pilha de madeira ali no celeiro? Pois use-a para construir uma cerca bem alta.
– Acho que entendo a situação, disse o carpinteiro. Mostre-me onde estão a pá e os pregos. O irmão mais velho entregou o material e foi para a cidade. O homem ficou ali cortando, medindo, trabalhando o dia inteiro. Quando o fazendeiro chegou, não acreditou no que viu: em vez de cerca, uma ponte foi construída ali, ligando as duas margens do riacho. Era um belo trabalho, mas o fazendeiro ficou enfurecido e falou:
– Você foi atrevido construindo esta ponte depois de tudo o que lhe contei.
Mas as surpresas não pararam aí. Ao olhar novamente para a ponte, viu seu irmão aproximando-se de braços abertos. Por um instante permaneceu imóvel do seu lado do rio. O irmão mais novo então falou:
– Você realmente foi muito amigo construindo esta ponte mesmo depois do que eu lhe disse. De repente, num só impulso, o irmão mais velho correu na direção do outro e abraçaram-se, chorando no meio da ponte. O carpinteiro que fez o trabalho partiu com sua caixa de ferramentas.
5. Subsídios litúrgicos
Litania de acolhida:
L. Se a vida nos dá a impressão de que estamos sós e abandonados,
C. o chamado do nosso Criador lembra-nos de que somos especiais para ele.
L. Se a culpa nos faz crer que não há como remediar nosso futuro,
C. a cruz de Cristo aponta para o perdão que renova nossa vida.
L. Se a frieza das nossas relações faz-nos sentir sozinhos,
C. o Espírito de Deus reúne-nos e acolhe-nos em sua comunhão.
L. Se chegamos aqui desorientados e sem horizontes,
C. a presença de Deus entre nós conforta-nos e anima na caminhada.
Oração de confissão de culpa:
Querido Deus, queremos te confessar nossa incapacidade de viver o amor em nossa comunidade. Somos uma família unida em ti, mas nem sempre nos reconhecemos e nos tratamos como irmãos e irmãs. Perdoa nosso egoísmo, nosso orgulho, nossa raiva e nossa falta de solidariedade. Perdoa nossa falta de empenho para melhorar nossas relações. Que não deixemos a mágoa, a mentira e o egoísmo destruírem a preciosa comunhão que entre nós constróis. Ensina-nos a viver o teu amor cada dia em nossas relações. Em Cristo, oramos. Amém.
Oração do dia:
Estamos reunidos aqui como povo de Cristo, resgatados de nossa fragmentação pelo amor reconciliador de Deus, manifestado no sacrifício de Cristo na cruz. Queremos, Senhor, crescer na unidade. Que a tua Palavra restauradora nos alcance e renove. Que teu Espírito nos una a todos sob tua autoridade e poder unificador. Em Cristo, oramos. Amém.
Cantos:
Hinos do Povo de Deus I: 109, 117, 166, 176.
Hinos do Povo de Deus II: 334, 415, 432.
Bibliografia
FOULKES, Francis. Efésios. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1981
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).