Entre a Idade Média e a Idade Moderna – A Localização de Lutero e de sua Reforma
Martin N. Dreher
OBSERVAÇÃO PRELIMINAR
Para a posteridade e também nas comemorações de 1983, Lutero é visto como o Reformador, o renovador da Igreja. Se, no entanto, lermos seus livros, suas pregações, suas cartas, as anotações feitas por seus comensais nas Conversas à Mesa, veremos que ele próprio não se compreendeu assim. Parece-me que ele se entende como instrumento usado, praticamente empurrado por Deus para a salvação da cristandade ante o iminente juízo final. Deus está próximo e impulsiona a Lutero. A partir dessa certeza da iminência da vinda de Deus, Lutero vai se entender mais como homem impelido do que homem em ação, é homem em condição de servo arbítrio e não de libero arbítrio como acentuará em seu mais querido escrito, com o qual polemiza com Erasmo de Rotterdão, ¨De Servo Arbítrio¨ (1). Suas palavras diante do Imperador Carlos V, em 1521, parecem apontar nessa direção: ¨Aqui estou, de outra maneira não posso.¨ (2)
I. O GRITO DA REFORMA
O caso Lutero desenvolveu-se em um momento histórico apropriado, de muita política, de muita agitação social e de muita guerra. Falecera um Imperador e um novo Imperador deveria ser eleito. A sociedade passava por profundas transformações, os turcos ameaçavam a cristandade europeia. Tudo estava a exigir reforma e esse conceito, ¨reforma¨ era usado pelo homem medieval quase que da mesma maneira que nossos contemporâneos usam o conceito ¨democracia¨. A palavra estava na boca de todos, mas seu conteúdo era bastante indefinido. Podia expressar ódios, ressentimentos, admoestação, mas também muita esperança, na qual se ansiava por dias melhores. O conceito era usado em relação à sociedade. Podia referir-se à Igreja ou, ainda a uma ordem religiosa (3). Quando se falava em reforma da Igreja, o homem medieval pensava em um retorno aos ideais primitivos, à vida em amor à Igreja primitiva de Jerusalém. Quando aplicada a uma ordem religiosa, a palavra reforma significava a exigência de um retorno à regra monástica primitiva, autêntica, do fundador da ordem. Mas ainda existem outras possibilidades de uso do conceito. Para o indivíduo, ¨reforma¨ é o retorno do ser humano ao estado original; ele sai do estado de pecado para voltar a ter paz com Deus. A mística descreve essa paz como união com Deus. Pela maneira abrangente em que o conceito é usado, vemos que, para o mundo em que Lutero surge, ¨reforma¨ é também algo que atinge o ser humano no mais profundo de seu ser, é expressão da esperança de que a Igreja e a Sociedade caminhem em direção a um futuro melhor. Diante dessa profusão de expectativas, cabe perguntar, o que seria o contrário dessa palavra ¨Reforma¨. Creio que o contrário de reforma não seria restauração, mas deformação, queda, distância de Deus, erro, humanidade a caminho do juízo final.
Se tivermos em conta o que até aqui dissemos a respeito do conceito ¨reforma¨, veremos que a Idade Média está plena de movimentos de reforma. Nos séculos XI, XII e XIII, a Itália e o Sul da França foram sacudidas por movimentos reformatórios que ansiavam pela pobreza apostólica e, concomitantemente, criticavam a Igreja rica, sem vida. (4) Nesses movimentos, o grito por reforma era chamado à penitência, conversão à vida do Cristo pobre. Alguns desses grupos reformistas foram terrivelmente massacrados. Basta que citemos os nomes dos albigenses e dos valdenses (5). Os ideais desses movimentos só puderam ser submetidos ao controle da Igreja oficial, quando os papas aprovaram as ordens mendicantes. Nelas o ideal de pobreza pôde ser exercitado dentro da Igreja, vicariamente, substitutivamente, no lugar dos ricos prelados e ricos leigos (6).
Os anseios por reforma, expressos no ideal de pobreza, sofreram duro revés, quando, em 1323, o Papa João XXII (1316-1334), através da bula Cum inter nonnullos, de 12 de novembro de 1323, condenou a afirmação de que Cristo e seus discípulos tivessem vivido sem propriedade, em pobreza absoluta (7). Com essa bula condenou-se a ala esquerda da ordem franciscana e muito mais: condenou-se toda uma convicção europeia. A reação à condenação papal logo se fez sentir. Para muitos surgiu a desconfiança de que a Igreja se afastara de seu Senhor, o Cristo pobre, para outros essa desconfiança passava a ser certeza. Os mártires davam seu sangue, seus bens, os prelados obtinham riqueza e poder.
Os juristas da Igreja encontraram uma solução para acalmar os ânimos, mas ela não satisfaria a longo prazo. Diziam os juristas que os seguidores de Francisco de Assis são pobres, pois as propriedades conventuais não são deles, nem da ordem, mas da Igreja como um todo! (8) Para os detentores do poder a questão estava resolvida, mas não foi essa a opinião dos frades menores, os franciscanos radicais, pois Francisco exigira pobreza absoluta.
II. REFORMA NOS CONVENTOS
A discussão em torno da pobreza apostólica propiciou o surgimento dos movimentos de ¨observantes¨ em todas as ordens mendicantes. O objetivo do movimento ¨observante¨ era o de uma reforma que pretendia o retorno às regras originais das diversas ordens (9). O movimento observante também teve entrada na mais jovem das ordens mendicantes, a Ordem dos Agostinianos Eremitas, fundada em 1256 (10). No século XV, uma série de conventos agostinianos criou na Itália e na Alemanha uma ¨congregatio reformata¨. Ao criarem essa congregação reformada, os agostinianos romperam os limites das províncias eclesiásticas e a própria área de jurisdição eclesiástica e passaram a eleger a direção da congregação, que tinha grande autonomia. Criou-se aqui uma estrutura independente de Roma, se bem que sujeita ao papa. Mais tarde essas peculiaridades dos agostinianos eremitas virão em benefício de Lutero (11).
Lutero, como é sabido, foi monge agostiniano-eremita. Ao longo de sua caminhada, Lutero foi determinado por três conventos observantes. Ingressou na ordem em Erfurt, desenvolveu suas atividades em Wittenberg e teve suas ideias difundidas pelo convento de Nürnberg. De um convento observante da ordem dos eremitas agostinianos sairiam os primeiros mártires dentre os seguidores de Lutero. Trata-se do convento de Antuérpia.
III. WYCLIF E HUS
A seriedade do movimento observante na Itália e na Alemanha aparentemente fez com que as discussões em torno da pobreza ficassem menos radicais na Igreja. Em duas regiões europeias, no entanto, isso não vai acontecer. Penso na Inglaterra e na Boêmia. Nessas regiões vão estar em evidência os nomes de John Wyclif (tal. 1384) e Jan Hus (morto em 1415). Ambos foram condenados pelo Concílio de Constança, Hus a morrer na fogueira. Wyclif, morto há 30 anos, foi postumamente excomungado (12). Os posicionamentos de Wyclif parecem ser reações à declaração papal de 1323 e vão ser desenvolvidos por Hus na Boêmia. Hus foi queimado em Constança, a 6 de julho de 1415, como herege. Sua morte foi interpretada como martírio e sua lembrança estava viva nos dias de Lutero.
Pouco antes de ser levado à fogueira, Hus interpretou sua morte (13) e Lutero, que muitas vezes se refere tanto a Hus quanto a Wyclif em seus escritos (14), assim se referiu às palavras de Hus: ¨São João Hus predisse a meu respeito, quando escreveu da prisão para a terra dos boêmios: agora eles vão assar um ganso (pois Hus significa ganso). Mas dentro de cem anos eles vão ouvir um cisne cantar, desse devem gostar, isso há de permanecer, com a graça de Deus.¨ (15) Lutero sabe das diferenças teológicas entre ele e Hus, mas condena a sentença proferida em Constança (16). Em outro contexto, Lutero caracteriza a diferença entre ele e Hus com as palavras: ¨A vida está má entre nós e também entre os papistas, por isso nós não brigamos por causa da vida, mas por causa da doutrina. Wyclif e Hus atacaram a vida do papado; eu, porém, não ataco especialmente a vida, mas a doutrina.¨ (17) Nessas palavras de Lutero encontramos um conceito de Reforma que para a época é invulgar. Esse conceito não encontro nem na Idade Média, nem na Idade Moderna. Trata-se da reforma da doutrina. Lutero sabe que a vida, a vivência está carente de reforma, tanto entre os papistas quanto entre seus próprios adeptos. Nesse ponto ele faz coro com as vozes medievais. Novidade é em Lutero a exigência de reforma da doutrina.
IV. O REINO MILENAR
Volto a Francisco de Assis e seus seguidores. Francisco de Assis estabelecera em seu testamento: ¨Evitem os irmãos aceitar, sob qualquer pretexto, igrejas, modestas habitações e tudo o que for construído para eles se não estiver conforme com a santa pobreza que prometemos pela Regra, demorando nelas sempre como forasteiros e peregrinos.¨ (18). Esse aspecto do testamento de Francisco foi rejeitado pelo Papa João XXII. E foi justamente nessa rejeição que os mais ferrenhos seguidores de Francisco, os Fraticelli ou Spirituales, viram confirmadas suas teorias de que o reino milenar de paz estaria por iniciar, pondo, assim, fim ao papado. A ação de João XXII, combatendo a Francisco e a seus seguidores, é a última tentativa daquele que quer protelar o seu fim por todos os meios: Satanás. A luta pela possibilidade de viver pobre como o Cristo pobre é relacionada com a esperança pela vinda do reino milenar, desenvolvida pelo Abade Joaquim de Fiore (fal. 1202) (19). Para Joaquim de Fiore, o reino milenar vai tornar-se realidade no decorrer da história e não só no final dos tempos. Essa convicção ele tira do capítulo 20 do Apocalipse de João:
¨Então vi descer do céu um anjo; tinha na mão a chave do abismo e uma grande corrente. Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos; lançou-o no abismo, fechou-o, e pôs selo sobre ele, para que não mais enganasse as nações até se completarem os mil anos… Quando, porém, se completarem os mil anos, Satanás será solto da sua prisão, e sairá a seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra…¨ (Ap. 20. 1-3, 7-8).
Segundo Joaquim de Fiore, a história segue um esquema trinitário. Há a época do Pai, a história do Antigo Testamento, a ela segue a época do Filho e da igreja clerical. Por volta do ano 1260 inicia-se a época do Espírito e da ecclesia spiritualis. Esse último período terá a duração de 1000 anos. Ele Porá fim a leigos e a sacerdotes, a matrimônio e a celibato aparente, a hierarquia e ao domínio papal. A Igreja será governada por aqueles que se aprofundam nos mistérios de Deus, os monges (20).
Como sabemos, os franciscanos observantes designavam-se de ¨spirituales¨, apontando, assim, para a herança de Joaquim de Fiore e assumindo sua crítica à Igreja. Abandonados pelo Papa em seu ideal de pobreza, os franciscanos observantes encontraram apoio para seus ideais nas palavras do Abade Joaquim de Fiore. Seguindo sua tradição interpretativa do Apocalipse, o biblista franciscano Pedro João Olivi (f ai. 1298) escreveu uma interpretação do Apocalipse de João (21). Sua interpretação foi condenada por João XXII, em 1326. Olivi parte da suposição de que Francisco de Assis inaugurou a Era do Espírito. Francisco recebeu de Deus o ¨Evangelium aeternum¨, anunciando-o a todos os homens de boa vontade. O Papa, a cúria e os prelados do período já superado da história tentam continuar a existir além do que lhes foi permitido por Deus, mas em sua resistência aos profetas espirituais transformam-se em adversários de Cristo. Os fratres minores, por seu turno, são chamados a continuar a reforma, para preparar os mil anos de paz.
Essas teorias franciscanas também podem ser encontradas entre os seguidores de Wyclif e entre os hussitas. Ali, os ¨monges¨ da interpretação quiliástica de Joaquim de Fiore, que governarão a Igreja, são os ¨irmãos menores¨ nas cidades e nos campos, os servos e as servas, sobre os quais o Senhor derrama seu Espírito, conforme Joel 3. (22) Essa mesma concepção vamos encontrar em Thomas Müntzer (23).
No século XVI, as esperanças quiliásticas, que aguardavam uma mudança significativa, com a vinda do príncipe da paz, estavam bem presentes. Por isso, não é de causar estranheza que elas tenham sido depositadas em Lutero. Muitos viram nele o profeta da nova era, da Era do Espírito, mas Lutero desapontou-os, pois sua Reforma não procurou modificar a sociedade, para provocar o surgimento do reino milenar. Os que queriam a luta pelo Reino afastaram-se dele, desiludidos. O mais famoso entre esses desiludidos é Thomas Müntzer. Müntzer e seus perseguidores pretendiam realizar a Reforma. Eliminando os adversários de Deus realizariam a Reforma (24).
Lutero não se enquadra nas esperanças quiliásticas medievais, nem nas esperanças dos arautos da modernidade, a exemplo de Müntzer. Onde situar Lutero? Onde localizar sua ¨Reforma¨?
V. UM REFORMADOR DIFERENTE
Lutero é, sem dúvida, um reformador estranho. Ele não é nem medieval, nem moderno. Não faz suas as colocações e tendências dos espirituais medievais nem a dos iluminados modernos. Quer-me parecer que, nesse sentido, talvez caiba aplicar a Lutero o termo antiideológico. Acompanho aqui as colocações de Heiko A. Oberman (25). Oberman observou, com razão, que Lutero se volta contra todo e qualquer esforço de erigir o Reino de Deus na terra. Para ele é tão-somente Deus quem haverá de erigir o seu Reino em Sião. Ao longo da história cia Igreja, porém, sempre surgem ¨sionistas¨, tanto sionistas judeus como sionistas cristãos, que pretendem erguer o Reino de Deus na terra. Para Lutero, em seus dias, os ¨sionistas¨ são os bispos e papas que confiam no poder eclesiástico e no Estado Eclesiástico. Para ele, a Cúria Romana pretende ser Sião, o fundamento inabalável do Reino de Deus na terra. Mas, por outro lado, essa mesma Cúria volta-se contra reformas, procurando protelá-las até o dia final (26). Por outro lado, Lutero também se volta contra os representantes dos tempos modernos que pretendem ajudar a Deus com a espada para que, finalmente, haja paz na terra. Nesse sentido, Lutero volta-se contra os Cavaleiros da Reino Alemão, liderados por Franz, von Sickingen, contra os camponeses, contra Thomas Müntzer e contra Zwínglio (27). E, ao voltar-se contra essas pessoas, Lutero volta-se contra os representantes do progresso, como foram muitas vezes classificados. Lutero volta-se contra os cavaleiros que enfrentam os nobres, contra os camponeses, heróis da revolução burguesa primitiva, contra Müntzer que se volta contra o domínio dos aristocratas, contra o reformador de Zurique que exige democracia para a Igreja e para o Estado, pegando em armas contra o domínio de Habsburgo. Não fora Lutero, todo o movimento que encontramos no período que normalmente designamos de Reforma seria o início da Idade Moderna. No entanto, Lutero não faz parte das forças ¨progressistas¨. Por quê?
Para Lutero, a Reforma, a mudança só pode ser feita por Deus, sem o concurso humano. Para esse conceito de Reforma, Lutero não encontra apoio nem em Hus, nem em Wyclif, nem em Pedra Olivi, nem em Joaquim de Fiore. Lutero não se encontra na tradição desses homens, quando perguntamos pelo que seja Reforma em sua concepção. Lutem encontra-se na tradição de Agostinho e de Bernardo de Clairvaux.
Quando Agostinho escreveu sua obra De Civitate Dei (28), a situação era desesperadora para a Igreja e para o Estado. Para os homens da época, a cultura do Ocidente estava no fim. No ano de 410, Alarico conquistara Roma, a Roma eterna, e atingira os ideais do Império. Toda uma estrutura estava abalada, pois caíra a Roma eterna, o símbolo da civilização. Qual a causa do desastre? Como será o futuro sem Roma? Muitos cristãos se perguntavam: Coma pôde Deus deixar cair o Império Romano? Agostinho respondeu a essas perguntas, destruindo ideologias e sonhos cristãos: segundo ele, a Roma dos pagãos nada mais fora que uma tropa de ladrões, a Roma dos cristãos não fora prenúncio do Reino de Deus. Por que isso? Porque o Reino de Deus não segue os caminhos imperialistas. Nos mil anos entre o nascimento e a segunda vinda de Cristo muitos reinos desaparecerão, também Roma. Só a Cidade de Deus permanece, mas ela não é fator de poder, mas uma comunhão sem armas dos verdadeiros cristãos. Passados mil anos, a profecia de João se concretizará: ¨Satanás será solto por pouco tempo¨ (Ap 20. 3). Então virá um tempo de horrores sem precedentes para muitos cristãos. Satanás parecerá estar vencendo Deus; o evangelho, o consolo dos cristãos, só poderá ser pregado às ocultas. A Cidade de Deus estará em perigo.
A maneira como Lutero falava do Anticristo nos é estranha. Ela está determinada por Agostinho, mas também por Bernardo de Clairvaux (fal. 1143). Procuro evidenciar esse fato. No verão europeu de 1514, Lutero manifestou-se pela primeira vez contra as indulgências na sala de prelações. Essa data, aliás, nos evidencia que as 95 teses de 31 de outubro de 1517 não são palavras intempestivas e irrefletidas. Nessa manifestação de 1514, Lutero também se referiu a Bernardo, fazendo uso da periodização que Bernardo faz da história do mundo e da Igreja nos mil anos que vão do nascimento de Cristo até o fim: nos primórdios, a Igreja foi violentamente perseguida, mártires morreram. Seguiu-se o período da heresia, de heresias muito sutis. Agora, porém, a cristandade se vê confrontada com o mais radical dos perigos e este vem da própria Igreja. Agora está ocorrendo a sedução dos crentes simples através do terrível inimigo. Dele diz Bernardo: ¨Esse é o Anticristo, o mentiroso diabo … a quem tão-somente o Senhor Jesus há de matar com o espírito chamejante de sua boca e destruirá quando de sua gloriosa volta.¨ (29)
Bernardo dissera que a Igreja estava incuravelmente doente. Em 1514, Lutero não faz suas essas palavras de Bernardo, mas usa a periodização de Bernardo para alarmar e para mostrar que os tempos de paz da Igreja passaram. A Igreja fez da terra a sua pátria e busca a sua riqueza. A Igreja vende segurança na terra, prometendo, através de indulgências, proteger os cristãos do castigo divino. Lutero adverte seus estudantes do perigo de uma perversão anticrística da Igreja. Naquele verão, Lutero lê para os estudantes a passagem de Mateus 24.1-14 e a interpreta:, ¨Segundo a minha interpretação, o Evangelho de Mateus conta um tal engano como o comércio de indulgências entre os sinais do tempo final.¨ (30).
Entre os anos de 1514 e 1519, Lutero terá a certeza dessa interpretação. A tradição que vem de Agostinho e de Bernardo evidencia o conceito que Lutero tem de Reforma. Esse conceito desdobra-se em duas direções:
1) Lutero tem a esperança e o temor de que o Dia do Senhor irromperá a qualquer hora. Satanás está solto (Ap. 20. 3). Desde que a Igreja com toda a sua autoridade, com o direito eclesiástico e o poder papal, defende a indulgência, não há mais dúvidas: O Anticristo vem vindo (31). Agora não adianta mais reformar, o único auxílio vem da Reforma de Deus. Essa Reforma Ele próprio fará no Dia Final. O fato de, desde 1518, o Evangelho estar sendo novamente pregado em sua totalidade, sem adendos humanos, não significa reforma da Igreja, mas é apenas cumprimento das palavras de Jesus: ¨E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho das nações. Então virá o fim.¨ (Mateus 24. 14).
Vejam, essas últimas observações são importantes no seguinte aspecto (32): segundo a nossa visão histórica, primeiro vem a Reforma e depois a Contra-Reforma. Pelo menos é isso que nos ensinam os compêndios de História e de História da Igreja. Na visão que vem de Bernardo e é assumida por Lutero, primeiro vem a Contra-Reforma e depois a Reforma. Lutero vê, no fato de a mensagem da cruz estar sendo novamente pregada, um ato de amor de Deus em relação a sua Igreja perseguida. Mas isso ainda não é Reforma. É apenas um prelúdio à Contra-Reforma. Não há reino milenar de paz para Lutero. Nem espada, nem poder podem criá-lo. Aos cristãos resta apenas a exigência de estrito pacifismo: aguentar, permanecer firmes, esperar, pregar publicamente o Evangelho, implorar abertamente pela intervenção de Deus: ¨A única coisa que te consola nessa última fase é o Dia Final e a tua Fé, de que o Senhor governa eternamente — afinal todos os sem-deus perecerão.¨ (33).
2) A outra visão reformatória de Lutero refere-se à ordenação e ao melhoramento do mundo. Volto à preleção do verão de 1514. Ali Lutero afirma que o fato de a Cúria vender garantias (indulgências!) para proteger os cristãos ante o salutar castigo de Deus é a terrível consequência de uma política eclesiástica, cujo alvo é o de garantir o domínio de Roma sobre o povo de Deus em todos os sentidos. A propaganda afirma que se fazem guerras santas e se ampliam os Territórios Papais para a glória de Deus e para o crescimento •da Igreja. A esse respeito Lutero comenta: ¨Nunca a Igreja esteve tão mal¨ (34).
Nos anos posteriores a essas declarações, Lutero acentuará as consequências político-sociais dessa política expansionista da Cúria: jamais o mundo esteve tão mal. Satanás não se contenta apenas em invadir a Igreja; ele também quer governar o mundo, para destruir a criação de Deus, para reintroduzir o caos que havia antes da criação. Agora, o tempo não é apenas tempo de permanecer firme na fé, mas também tempo de sobreviver no mundo. Lutero não entrega a Igreja e o Mundo ao caos. Os cristãos estão em perigo, mas contam com defesa; são atacados, mas não estão sem defesa. Onde o Evangelho é pregado, há a possibilidade de se sobreviver aos ataques de Satanás (35). Onde a doutrina cristã arranca a autoridade civil das mãos do Anticristo, o mundo pode ser melhorado. Essa emancipação do mundo, de seu direito profano e de suas ordens estatais ou civis, Lutero considera possível. Para essa possibilidade humana ele, no entanto, não usa o conceito Reforma, mas ¨melhoramento¨ (Besserung). Em 1520 ele escreve um livro: ¨A nobreza cristã de nação alemã, a respeito do melhoramento do estamento cristão¨ (36).
VI. PENITÊNCIA E INDULGÊNCIA
A crítica de Lutero às indulgências não é novidade em seu mundo. Outros já tinham levantado a crítica, dizendo que ¨penitência é melhor que indulgência¨ (37). Lutero, no entanto, vai além dessa crítica medieval de seu colega de ordem. Quando se lê as 95 teses de 31 de outubro de 1517 pode-se ver que não é esse o lema de Lutero, mas: boas obras são melhores do que indulgência! Esse aspecto central é muitas vezes esquecido. Lembro apenas algumas das teses:
¨Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidades e a despeito disso gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgências do papa, mas provoca a ira de Deus.¨ (tese 45).
¨Deve-se ensinar aos cristãos proceder melhor quem dá aos pobres ou empresta aos necessitados do que os que compram indulgências.¨ (tese 43).
Já essas duas teses estão a evidenciar que a melhor penitência para o cristão é melhoramento, e melhoramento refere-se à vida nesse mundo e opõe-se à fuga pretensamente santa do mundo.
¨Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem fartura, fiquem com o necessário para a casa e de maneira nenhuma o esbanjem com indulgências.¨ (tese 46) (38).
Lutero luta por boas obras, não como méritos diante de Deus, mas como serviço necessário ao mundo e a suas instituições. O professor de Wittenberg é um profeta da penitência, sem dúvida, mas não de penitência monástica. Sua pregação não é ascética, distanciada do mundo. Não pretende transformar o mundo em um convento, como Savonarola. Sua pregação destina-se ao mundo para que o mundo permaneça mundo e seja o que é: a boa criação de Deus (39).
Em outubro de 1520, Lutero publicou seu manifesto ¨Da liberdade crist㨠(40). Nele, Lutero defende e fala da liberdade para a salvação e da liberdade para a ação. ¨Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas é não está sujeito a ninguém.¨ Livre das opressões da lei, o crente é herdeiro da santidade, da justiça e da piedade de Cristo. ¨Não é acaso um negócio feliz, que Jesus Cristo, o noivo rico, nobre e justo, se case com uma insignificante rameira, pobre e desprezada e má, tirando-a desta forma de todo o mal e adornando-a com toda espécie de bens?¨ (41). O negócio feliz é a libertação da escravidão da busca por salvação e do medo da salvação. A ¨rameira¨ pode, agora, ela mesma distribuir a liberdade, que recebeu gratuitamente.
Liberdade cristã recebe-se gratuitamente e transmite-se ao próximo gratuitamente. Por isso, ¨um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos¨ (42). A dimensão coletiva desse serviço foi mostrada por Lutero no escrito ¨A nobreza cristã de nação alemã, a respeito do melhoramento do estamento cristão¨ Deve-se deixar de lado o luxo e a ostentação; deve-se controlar o comércio; deve-se combater a usura, os monopólios, fechar as casas de prostituição. Essas sugestões de Lutero não são propostas de Reforma, mas de ¨melhoramento¨, pois Lutero não se compreendeu como reformador. A Reforma será obra de Deus.
A partir daí podemos compreender que a ética de Lutero não é ética válida para todos os tempos, mas ética de sobrevivência em tempo difícil. É ética no contexto do caos e do perigo, não é lei, mas adaptação à necessidade da época. O cristão vive entre a raiva do diabo e a ira de Deus, entre o poder do caos e o juízo que vem, por isso o tempo que lhe resta deve ser usado para proteger a criação, o campo em que vivemos, com todas as forças. Até a hora derradeira, o ser humano tem a incumbência de cuidar do mundo de Deus. Nisso — e só nisso — ele é cooperador de Deus. Aos que fugirem desse compromisso, Deus castigará, mesmo que tenham mandado rezar muitas missas, participado de peregrinações e lutado contra hereges. Correr atrás da salvação e abandonar família, casa e lar não é boa obra. Aí quem se alegra é o diabo, pois nós o ajudamos a promover o caos. O diabo faz festa quando o cristão pára.
Ouso dizer que antes de Lutero o alvo da ética cristã era o céu. Lutero transferiu-o para a terra. Boas obras produzem ¨salvação¨, a salvação da sobrevivência em um mundo em perigo.
O anúncio de Lutero de que a Reforma vem e seu clamor por melhoramento só pode ser compreendido sob o pano de fundo da Idade Média. Por outro lado, é também a negativa a toda a tentativa medieval de transformar o mundo. Nesta sua postura, Lutero diz não a Joaquim de Fiore e aos camponeses liderados por Thomas Müntzer. Lutero é adepto radical de Bernardo de Clairvaux. O tempo presente não é mais tempo de se fazer cruzadas para libertar a Terra Santa com o uso de armas. O tempo presente é tempo de cruzada com o poder da pregação da morte na cruz do Cristo impotente.
Não se pode, pois, dizer que Lutero iniciou a Reforma. Ele toma medidas para o melhoramento do mundo para que ele possa sobreviver até àquele dia em que Deus porá fim ao caos definitivamente. Lutero é o teólogo da vida cristã entre os tempos. Medieval para os adversários, arauto da modernidade para os adeptos … Lutero escapa a ambos: ele nos atualiza a mensagem cristã da vinda iminente de Deus e … planta uma macieira.
Notas:
(1) WA 18. 600-787.
(2) Cf. JUNGHANS, Helmar, ed. Die Reformation in Augenzeugenberichten. München, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1973, p. 112.
(3) Cf. MAURER, Wilhelm. Reformation. In: GALLING, Kurt, ed. Pie Religion in Geschichte und Gegenwart. 3. ed. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1965. v. 5, p. 858-861.
(4) Cf. GRUNDMANN, Herbert. Ketzergeschichte des Mittelalters. In: SCHMIDT, Kurt Dietrich & WOLF, Ernst, ed. Die Kirche in ihrer Geschichte. Ein Handbuch. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1967. v. 2, fascículo G (1.a parte), p. 12-47.
(5) Cf. GRUNDMANN, Herbert. op. cit., p. 28ss
(6) Cf. MÖLLER, Bernd. Spätmittelalter. In: SCHMIDT, Kurt Dietrich & WOLF, Ernst, ed. Die Kirche in ihrer Geschichte. Ein Handbuch. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. v. 2, fascículo H (1.a parte). p. 9s.
(7) BENZ, Ernst. Ecclesia Spiritualis. Kirchenidee und Geschichtstheologie der franziskanischen Reformation. Stuttgart, Kohlhammer, 1964, p. 243. Quanto a João XXII, cf. SEPPELT, Franz Xaver & SCHWAIGER, GEORG. Geschichte der Päpste von den Anfängen bis zur Gegenwart. München, Misel, 1964, p. 219-226.
(8) Cf. BENZ, Ernst, op. cit., p. 240ss.
(9) Cf. HOFMEISTER, Ph. Observanten. In: GALLING, KURT. ed. Die Religion in Geschichte und Gegenwart. 3. ed. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1960. v. 4, p. 1553-1554.
(10) Quanto aos agostinianos eremitas, cf. HOFMEISTER, Ph. Augustiner, In: GALLING, Kurt, ed. Pie Religion in Geschichte und Gegenwart. 3, ed. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1957. v. 1. p. 748-751.
(11) Cf. OBERMAN, Heiko A. Luther. Mensch zwischen Gott und Teufel. Berlin, Severin und Siedler, 1982, p. 60s.
(12) Quanto a Hus e Wyclif, cf. WORKMAN, Herbert B. The dawn of the reformation. V. 1: The age of Wyclif. London, Charles H. Kelly, 1901; VISCHER, Melchior. Jan Hus. Aufruhr wider Papst um! Reich. Frankfurt/Main, Societätsverlag, 1955; SPINKA, Matthew. John Hus at the council of Consance. New York e London, Columbia, 1965.
(13) Em uma carta de fins de 1414, Hus escrevia a seus amigos: ¨Et haec eadem ventas pro uno Ansere infirmo et debili multos falcones et aquilas, quae acie oculorum alias aves superant, Pragam misit, hac alte gratia Dei volitant et Christo Iesu alias aves rapiunt, qui illas corroborabit et omnes fideles suos confirmabit.¨ Documenta Magistri Iohannis Hus, ed. F. Palacky, Praga 1869, Epistolae Nr. 17, p. 40, apud WA 30 III, 387, nota 2.
(14) Cf. p. ex. o escrito Do cativeiro babilônico da Igreja. Um prelúdio. São Leopoldo, Sinodal, 1982.
(15) WA 30 III. 387, 6-10.
(16) Cf. WA 50. 34, 16ss: ¨Se ele for um herege, então de fato ainda não houve cristão verdadeiro sobre a terra.¨
(17) Cf. WA Tr 1. N.° 624; 294. 19-23.
(18) São Francisco de Assis. Escritos e biografias de São Francisco de Assis, crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis, Vozes, 1981, p. 169.
(19) Quanto a Joaquim de Fiore cf. BENZ, Ernst. op. cit., p. 4-48.
(20) Cf. BENZ, Ernst. Ibidem, p. 9ss e OBERMAN, Heiko A. op. cit., p. 256ss.
(21) Sobre a interpretação do Apocalipse por Olivi, veja-se igualmente BENZ. Ernst, op. cit., p. 265ss.
(22) Cf OBERMAN, Heiko A. op. cit., p 68.
(23) Cf. DREHER, Martin N. O profeta Thomas Müntzer. Thomas Müntzer, um profeta?. In: Estudos Teológicos, São Leopoldo, 22 (3): 195—214. 206s, 1982.
(24) Cf DREHER, Martin N. op. cit., p. 208s.
(25) Op. cit., p. 70-73.
(26) Veja-se os protestos de Lutero nos escritos ¨A nobreza cristã de nação alemã, a respeito do melhoramento do estamento cristão¨, WA 6. 404-469, e ¨Do cativeiro babilônico da Igreja. Um prelúdio”, São Leopoldo, Sinodal, 1982.
(27) Cf. p. ex. BORNKAMM, Heinrich. Martin Luther in der Mitte seines Lebens. Das Jahrzehnt zwischen dem Wormser und dem Augsburger Reichstag. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1979, passim. (28) Baseio-me na edição de C. J. Feri, Salzburg, Otto Müller Verlag, 1,966.
(29) CLAIRVAUX, Bernardo de. Sermones super Cantica Canticorum 1— 35. Sermão 33. S. Bernardi Opera, Roma 1957, v. 1, p. 245. Não tive acesso a essa obra. Cito-a segundo OBERMAN, Heiko A. op. cit., p., 77.
(30) WA 3. 425, 7s.
(31) Archiv zur Weimarer Ausgabe (AWA) 2. 606, 2-4; 1519-1521. Não tive acesso a esse volume. Cito-o conforme OBERMAN, Heiko A., Ibidem p. 79.
(32) Devo essas conclusões a OBERMAN e elas parecem ser altamente convincentes. Cf. Ibidem, p. 79.
(33) AWA 2. 615, 1-3; SI 10. 16, citado apud OBERMAN, p. 79.
(34) WA 3. 422, 5.
(35) Vejam-se as palavras de seu hino ¨Deus é castelo forte e bom…¨, em: Hinos do povo de Deus. Hinário da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, São Leopoldo 1981, Hino n.° 97:
1.Deus é castelo forte e bom, defesa e armamento; assiste-nos com sua mão, na dor e no tormento. O rei infernal das trevas do mal, com todo o poder e astúcia quer vencer: igual não há na terra. 3. Se inúmeros demônios vêm, querendo exterminar-nos: Sem medo estamos, pois não têm poder de superar-nos. Pois o rei do mal, de força infernal, não dominará; já condenado está por uma só palavra.
2. A minha força nada faz, sozinho estou perdido. Um homem a vitória traz, por Deus foi escolhido. Quem trouxe esta luz? Foi Cristo Jesus, o eterno Senhor, outro não tem vigor; triunfará na luta. 4. O Verbo eterno vencerá as hostes da maldade. As armas, o Senhor nos Espírito, Verdade. Se a morte eu sofrer, se os bens eu perder: que tudo se vá! Jesus conosco está. Seu Reino é nossa herança!
(36) WA 6. 404-469.
(37) Gottschalk Hollen, em 1452, segundo OBERMAN, Heiko A. op. cit., p. 81.
(38) Cito as teses segundo a tradução de R. Hasse, Porto Alegre, Concórdia, 1979.
(39) Cito apenas como exemplo a explicação que Lutero dá ao 1° artigo do Credo Apostólico nos dois catecismos. Cf. COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA. ed. Livro de Concórdia. As confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução e notas de Arnaldo Schüler. São Leopoldo, Sinodal, Porto Alegre, Concórdia, 1980, p. 370. 448-450.
(40) LUTERO, Martim. Da liberdade cristã. 3. ed. São Leopoldo, Sinodal, 1979.
(41) idem, p. 20.
(42) ibidem, p. 9.
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