Loucura que garante a vida
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Êxodo 20.1-17
Leituras: João 2.13-22 e 1 Coríntios 1.18-25
Autoria: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 3º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 04/03/2018
1. Introdução
“Você é louco” – diz Herodes a João Batista, no calabouço, no filme “O Messias”, de Rosselini. Essa cena nos remete ao culto deste domingo, no qual refletimos sobre a “loucura de Deus”, que é sabedoria e salvação para os que creem, incompreendida, porém, pelo “mundo”. O Decálogo é, a seu modo, expressão dessa aparente loucura.
No caminho para a Páscoa, confrontamo-nos com as sábias palavras do Decálogo, palavras que desde sua origem tentaram garantir uma sociedade estribada, não na lógica e sabedoria dos poderosos (seja dos faraós do Egito, seja dos poderosos e dominadores de outra estirpe, como os “donos” do Templo de Jerusalém), mas na “loucura da cruz”, que brilhou mais forte que o sol, em Cristo. As três leituras deste domingo têm, neste sentido, um ponto de encontro bastante evidente.
A “loucura” do Decálogo (Êx 20.1-17) não aparece a olhos nus, mas pode ser percebida com nitidez com a ajuda das lentes de uma análise contextualizada. A experiência da libertação do Egito e o desafi o de construir uma sociedade alternativa à lógica do poder que escraviza e mata estão por trás das “dez palavras” de Deus. Essas exigências deveriam ser a constante referência ao longo da história do povo de Deus. Certamente, isso nem sempre foi assim, de modo que profetas e o próprio Jesus tiveram de intervir para cobrar respeito e observância desses princípios constitucionais.
Nossa Páscoa será tanto mais cristã quanto melhor assimilarmos, neste “tempo de conversão”, o que é a Quaresma, o espírito e a prática desses mandamentos humano-divinos, pois eles também constituíram a base da espiritualidade de Jesus.
2. Exegese
A experiência do Êxodo é, para o Antigo Testamento, mais ou menos aquilo que é a experiência de Jesus para o Novo Testamento: experiência fundante, a mais importante de todas, da qual derivam de alguma forma todas as demais. Do acontecimento histórico da libertação, interpretado e reinterpretado ao longo da história como intervenção salvífica maior de Deus a favor de seu povo, depende também o texto que hoje tomamos como referência para a pregação, ou seja, o Decálogo (Êx 20.1-17).
A saída do Egito não foi apenas uma libertação de uma situação de morte, mas o início de uma caminhada para uma nova condição de vida. Livre da escravidão, o povo, já no caminho, e também depois, na terra conquistada, precisava organizar-se em novas relações que garantissem e aprofundassem a liberdade conseguida a duras penas. O Decálogo situa-se basicamente nesse contexto. Ele representa as exigências de uma nova organização da sociedade para garantir o direito e a justiça a todos os membros do povo. Essas exigências aparecem como sendo de origem divina. Deus, que libertou o povo, é também aquele que o orienta na busca de um mundo de vida fraterna e justa.
O Decálogo encontra-se no livro do Êxodo, mas também em Deuteronômio (5.6-21), com algumas variantes. Em Êxodo, situa-se no contexto da aliança que Yahweh oferece e celebra com o seu povo. É constituído por exigências ou mandamentos que Deus de certa maneira impõe, mas poder-se-ia também dizer que são as luzes e as sinalizações que ele coloca no caminho do povo, indicando por onde andar para encontrar vida e evitar a morte, em suas mais diversas expressões.
As origens dessas dez palavras certamente se espalham ao longo de um período histórico relativamente longo (Pixley, 1987, p. 143, 158), mas sua moldura teológica e literária atual as apresenta como um bloco único entregue por Deus ao povo, por meio de Moisés.
O Decálogo apresenta-se como uma “lista de mandamentos dirigidos ao homem israelita adulto” (Pixley, 1987, p. 143). Isso é compreensível numa sociedade patriarcal, como a hebraica daquele tempo.
Apresenta-se também como mandamentos categóricos, sem considerar exceções e sem levar em conta circunstâncias especiais. Outras partes da legislação de Israel farão essa necessária flexibilização. O que interessa aqui é “deixar estabelecidos os limites do possível para a nova sociedade que agora se funda” (Pixley, 1987, p. 143).
O Decálogo inicia com a autoapresentação daquele que pronuncia essas palavras: trata-se de Yahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão (20.1). Essa fórmula introdutória é o sustentáculo de todo o quadro, como o gancho que segura o quadro na parede. Apresenta as credenciais de Deus para propor e exigir o que segue; apresenta também o motivo da necessária acolhida das exigências pelos israelitas: a libertação do povo, por Deus.
As três “palavras” seguintes podem ser reunidas num pequeno bloco, pois tratam diretamente de ordens referentes a atitudes e comportamentos diante de Deus: não ter outros deuses, não fazer imagem desses deuses nem se prostrar diante deles, e não pronunciar em vão o nome de Yahweh. Exige-se que Israel se mantenha exclusivamente fiel a Yahweh. Diante do contexto politeísta da época, o israelita deve manter-se crítico diante de propostas religiosas que, direta ou indiretamente, “abençoavam” regimes e práticas de injustiça social ou de violência contra a vida, especialmente contra a vida dos mais fracos, mesmo que essas divindades parecessem mais concretas (imagens) e simpáticas. A exclusividade de Yahweh como Deus do israelita impede-o também de promover ou sancionar sutilmente injustiças ou violências em nome desse Deus. O nome de Yahweh só pode ser pronunciado a serviço da vida. O desrespeito a essa ordem implicará graves consequências.
A quarta “palavra” diz respeito ao sábado, instituição importante em Israel. Esse mandamento tem um sentido profundamente social: “O descanso de todos os trabalhadores será obrigatório em Israel” (Pixley, 1987, p. 152). A fundamentação teológica é buscada no relato da criação, no descanso de Deus no sétimo dia (Gn 1). Mas o Deuteronômio (5.12-15) prefere a alusão à servidão do Egito, onde o povo não tinha direito a descanso. Além desse sentido social, o sábado também era vivido como um dom precioso, um presente de Deus a Israel, um memorial da centralidade de Deus na história desse povo e um anúncio profético de um sábado definitivo (Ravasi, 1985, p. 113-120). Sua sacralidade chegou a torná-lo uma lei implacável, questionada por Jesus, que o entendia como um serviço à vida.
O quinto mandamento postula o respeito e os cuidados com o pai e a mãe, não apenas os pais biológicos, mas também os anciãos da comunidade, que já não são produtivos. Diversos desdobramentos dessa importante exigência podem ser encontrados ao longo da Bíblia.
“Não matarás” é a sexta palavra, talvez a mais central do Decálogo (Balancin; Storniolo, 1991, p. 56). Fica totalmente excluído o homicídio. É a defesa radical do direito à vida. Porém, é preciso reconhecer: “É evidente que a lei contra o homicídio dentro do decálogo não busca ser precisa, mas contundente. Outras leis formularão as circunstâncias atenuantes” (Pixley, 1987, p. 155).
“Não cometerás adultério” (sétima palavra) postula o respeito para com a família, no caso, especialmente a família do próximo. “O homem peca contra o seu próximo quando comete adultério com sua esposa”, mas não era considerado adultério se tivesse relações sexuais com prostituta ou mulher não casada. “A mulher casada, porém, pecava contra o marido e cometia adultério quando tinha relações sexuais com outro homem qualquer, casado ou não” (Pixley, 1987, p. 156). O homem tinha o compromisso de não prejudicar o matrimônio do próximo; já a mulher casada tinha de zelar também pelo seu casamento.
A oitava e a décima palavra têm um conteúdo semelhante: não roubar nem cobiçar a casa do próximo. Sóbria e categórica, a proibição de não roubar não entra em circunstâncias e não estabelece pena em caso de ser desobedecida. Pixley (1987, p. 156) afirma que “o delito de roubar não é tão grave como os outros que se enumeram no decálogo, mas dificilmente poderia subsistir uma sociedade sem aplicar-lhe penalidades”. A proibição de não cobiçar a casa do próximo enfatiza o impulso e a inclinação, não propriamente a violação na prática dos direitos alheios. Mas é do coração que nascem as práticas, as más ações, lembra o evangelho, e é preciso evitar que se desenvolvam. A “casa do próximo” inclui também a mulher dele, o que aproxima esse mandamento da sétima palavra.
A nona palavra protege o próximo nas disputas legais, quando deviam ser ouvidas as duas partes. “Testemunho falso era grave ofensa à vítima falsamente acusada, bem como à corte de vizinhos respeitados no lugar e à própria sociedade em seu conjunto” (Pixley, 1987, p. 157).
Portanto “o decálogo não foi feito para ser compreendido de forma espiritualizada e individualista”, o que lhe tiraria sua “significação concreta de estimular leis e práticas que vão encarnando historicamente profundas transformações sociais exigidas por esse ideal” (Balancin; Storniolo, 1991, p. 56). Ele pretende
garantir, isto sim, uma sociedade alternativa àquela do Egito da época, bem como dos outros povos vizinhos, cujas religiões e organizações políticas e sociais eram pautadas por princípios e interesses dos poderosos. Israel devia ser diferente!
3. Meditação
O Decálogo, ou “as dez palavras” de Deus aos israelitas, representa uma espécie de loucura que governava ou devia governar a vida do povo de Deus. Por que loucura? Porque ele propõe exigências contundentes que diferem da “sabedoria” dos poderosos. Muitas vezes e de muitos modos – parafraseando o início da Carta aos Hebreus – ele expressa o direito dos pobres, em contraposição ao direito dos ricos e poderosos. Ele previne também contra a influência do direito dos ricos na mentalidade e nas práticas no meio dos pobres. Fica expressamente proibido “ter outros deuses”, mesmo que eles existam… Exclui-se a fixação de uma imagem de Deus porque ele é quem caminha com seu povo (Ele é Yahweh, que significa justamente isso). Proíbe-se terminantemente usar Deus ou a religião para favorecer os poderosos e intimidar os fracos.
Os poderosos, em geral, gostam da religião, mas fazem dela um apoio para seus interesses. Em Israel, Deus e a religião deviam ser divorciados desse tipo de aliança. Ao contrário, o único Deus que podia ser venerado, adorado e ouvido era Yahweh, aquele Deus que tirou Israel da “casa da servidão”. Tudo o que pudesse favorecer uma religião opressora devia ser cuidadosamente evitado.
Essa postura pode parecer intolerante e pouco respeitosa para com as outras religiões. Hoje, costumamos dizer que “Deus é o mesmo”, e que é um só. Mas estamos longe de ver que esse único e mesmo Deus tenha para todos as marcas de um Deus comprometido com a vida, com a libertação das opressões e escravidões, com a transformação da sociedade, da política e das relações interpessoais, de modo a garantir o direito à vida plena de todos.
O Decálogo, conhecido entre nós como os dez mandamentos, também parece ser algo moralizante e ultrapassado aos olhos de muitos. Como falar aos jovens, por exemplo, sobre “mandamentos”? Como superar a aparente intolerância desses mandamentos? Como mostrar que não se trata de uma mentalidade antiquada e moralista?
Certamente, será de proveito evitar a palavra “mandamentos” e aproveitar a expressão “dez palavras”, bem como contextualizar essas palavras na história e nos sonhos do povo de Israel e mostrar como elas representam uma defesa da vida, dos direitos fundamentais de todos, bem como um desafio para a construção de uma sociedade de justiça e de paz. Talvez falar da “loucura” dessas exigências e do sonho que as sustenta auxilie na captação da benevolência.
Olhando bem, Deus somente ordena coisas que benefi ciam a vida humana. E a base para que a vida possa ser humana para todos é um conjunto de atitudes de respeito ao próximo. Esse respeito vai desde o direito ao descanso, lazer, férias etc., passando pela atenção aos idosos e às crianças (que nem aparecem nos mandamentos), pela consideração a instituições, como a família, pela verdade no julgamento das dissenções e pela não perturbação da posse dos bens do próximo. No alto dessa pequena lista de respeito, está o da vida: “não matarás!” Essa palavra proíbe o homicídio, mas esse não se limita ao assassinato, pois se pode matar de muitas maneiras – o que é expresso nas diversas “palavras” que tratam das relações entre as pessoas.
O povo de Israel se orgulhava da sabedoria que lhe vinha das palavras de seu Deus. Sabia muito bem que nem todos pensavam do mesmo modo. Mas ousava elogiar a “loucura” de sua sabedoria diferente. Os Salmos reiteram esse sentimento. Quem sabe, isso também nos provoque a valorizarmos os grandes sonhos contidos nos evangelhos e a nos orgulharmos deles.
4. Imagens para a prédica
Bem entendida, a palavra “loucura” pode ser usada na prédica caracterizando o senso crítico que o Decálogo expressa em relação ao direito vigente nas sociedades vizinhas de Israel, bem como na sociedade na qual nós vivemos. A cruz de Jesus – muito lembrada na Quaresma e na Páscoa – faz parte dessa sabedoria de Deus, que é “loucura” para muitos.
Outra palavra que pode ser aproveitada é “sonho”. O Decálogo traduz um grande sonho, nunca plenamente realizado, de pessoas éticas, de comunidades comprometidas com o direito e a justiça, especialmente dos fracos e pobres, e de uma sociedade livre de violências e injustiças que matam.
Imagem que também pode ser aproveitada é aquela do gancho ou suporte na parede que sustenta um quadro. A autoapresentação de Deus como aquele que tirou Israel da casa da servidão representa esse sustentáculo de todo o Decálogo.
Ainda se pode lembrar a importância de se ter, numa sociedade ou comunidade, um conjunto abreviado de princípios que inspirem toda a legislação de um povo. O Decálogo é isso. Mas nele se inspiram e a ele se referem muitas leis e normas que detalham as práticas, pois a vida é complexa e traz sempre novas perguntas, que precisam ser respondidas à luz das referências maiores, as “dez palavras”. Nem tudo está explicitado nessas poucas palavras, mas elas traçam o rumo a seguir.
5. Subsídios litúrgicos
Para o culto, pode ser importante escolher hinos que se refiram à importância e grandeza da sabedoria de Deus e do seu povo, expressa nos mandamentos. Pode auxiliar também rezar algum Salmo que exalte a grandeza da lei de Deus.
A cruz pode receber um destaque visual, representando a sabedoria de Deus, que é loucura para muitos. Ela é, certamente, a maior das palavras que Deus pronunciou na história do povo de Israel e da humanidade, e essa palavra precisa ser meditada e proclamada também hoje. Estamos no tempo favorável para isso: a Quaresma.
Bibliografia
BALANCIN, Euclides; STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro do Êxodo: o caminho para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1991.
PIXLEY, George V. Êxodo. São Paulo: Paulinas, 1987.
RAVASI, Gianfranco. Êxodo. São Paulo: Paulinas, 1985.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).