Prédica: Êxodo 32.7-14
Autor: Romeu Ruben Martini
Data Litúrgica: Domingo Rogate
Data da Pregação:20/05/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
l — Introdução — dificuldade
Entendo que, a partir da década de 80, especialmente com o tema Terra de Deus — terra para todos (1982), está se redescobrindo na IECLB a relação entre fé cristã e questões básicas para a sobrevivência humana, como terra, saúde, salário, educação. Esta ao menos é minha experiência pessoal e distrital ligada ao trabalho pastoral em São Miguel do Oeste/SC. Eu disse: re-descobrindo a relação fé X necessidades concretas da vida. Significa, pois, dizer que durante décadas a IECLB (exceto os focos de resistência!) perdeu esta faceta de toda a sua tarefa como Igreja de Jesus Cristo no Brasil. Desejo acentuar com alegria esta re-descoberta e a gratidão por aprender muito com ela.
Junto com esta redescoberta vieram à tona dificuldades e conflitos nas comunidades constituídas. Hoje já existem espaços para abordar temas ligados à questão social, política, económica, estrutural; há membros engajados em movimentos populares; animados também pela redescoberta da Igreja; enfim, o assunto está na pauta das discussões desde a direção da IECLB até os grupos das OASE. Mesmo assim vejo como algo problemático ter como texto da pregação do domingo Rogate ÊX 32.7-14:
a) Em Homiletische Auslegung der Predigtexte, Reihe VI, 83, pp. 234-239, Gottfried Voigt propõe como escopo para a pregação a questão da oração/intercessão. Desta forma, todo o conflito da perícope é generalizado para a questão da intercessão. Daí acontece o que a Declaração de Caracas sobre liturgia, in: Celebremos, CEM, 1989, questiona nos §§ 37-38: O contexto conflitivo de nossos países latino-americanos exige (…) coerência entre men¬sagem e sociedade. (…) Não é suficiente fazer petições gerais (interpretação minha).
b) ÊX 32.7-14, em si, não carece de maiores justificativas como texto de pregação para o domingo Rogate. Se, porém, considerarmos a comunidade tradicional como primeira ouvinte da pregação, esbarramos em dificuldades. Eis que, na média, a comunidade tradicional não deseja ouvir no culto algo a respeito da não-vida reinante lá no antigo Israel/Egito e muito menos da não-vida implantada e amparada em lei no Brasil. Ou isso na tua comunidade já é diferente?
Por tudo isso, Êx 32.7-14 nos confronta com uma dialética tendenciosa (se assim pode ser dito!) existente na lECLB/na Igreja cristã: há espaço para discussão e trabalho em torno da questão fé e vida diária: há, porém, dificuldades na hora de abordar questões deste tipo no culto tradicional da comunidade. Dito de forma diferente: há barreiras que impedem a celebração da vida toda em culto. Já há espaços, mas ainda há barreiras que predominam na hora da opção concreta (por isso a expressão tendenciosa).
Bem por isso, esta indicação de PL certamente é um desafio!
II — A perícope à luz da história das fontes
Conforme a teoria das fontes, Êx 32.7-14 faz parte do Escrito Sacerdotal (P). P teria surgido no séc. VI a.C., mais diretamente por volta do ano 550 a.C., no meio dos exilados/as de Judá, dentro do exílio, portanto. Uma característica de P é a concepção de Deus lá no céu e os homens cá na terra (Milton Schwantes, no curso do CEBI em 14-18.05.84, São Leopoldo/RS). Entendo que este aspecto está presente em ÊX 32, pois Moisés está no monte (v. 1) falando com Deus. Mais decisivo é, no meu ponto de vista, compreender o lugar real de origem da perícope: não ê tanto o possível fato histórico que determina o conteúdo da perícope, mas sim a vida sofrida no exílio depois da destruição provocada pelos babilónicos, em 587 a.C. É preciso sentar-se no cepo dos exilados para compreender e sentir o específico da perícope. Os exilados estão na pior, aniquilados em terra estrangeira. O texto motiva à pergunta: Por que estamos aqui no exílio? Qual a posição de Deus em relação à nossa situação? Há esperança de voltar à terra natal?
III – Contexto
ÊX 32.7-14 está no contexto maior de ÊX 19.1-Nm 10.10: a revelação de Javé no Sinai. Após o decálogo (ÊX 20.1-17) e o código da aliança (20.22-23.19) é ressaltado o destino maior dos peregrinos fugitivos do Egito: até que possuas a terra por herança (23.30b). Faz bem ler desde 23.20! Êx 24 reafirma a aliança/o pacto entre Deus e o povo (v. 3), que é selado pela celebração da Ceia = compromisso do povo (minha interpretação do v. 8). Seguem instruções litúrgicas (Êx 25-31) e, então, vem o cap. 32 que destaca a idolatria, a dura cerviz, a recaída do povo em pecado. Em 32.34 é retomado o alvo maior deste povo de dura cerviz: conduza o meu povo para onde te disse, a terra!
IV — A perícope no contexto redacional
Dentro do contexto maior de ÊX 19.1-Nm 10.10, entendo a perícope como expressão de um dos muitos momentos baixos que o grupo de ex-escravos teve durante a caminhada à terra prometida. Nos vv. 7-10, o cerne do assunto 6 u questão do bezerro de ouro. Não me preocupa tanto a veracidade em si da fundição do bezerro de ouro ou não, mas o que a Bíblia expressa com este símbolo. Vejo representado nele toda a fraqueza, os recessos, o desânimo, as indecisões, os erros, todo o afastamento do pacto com Javé na caminhada rumo à terra do leite e mel (ÊX 3.8). Pois toda a luta pela terra de leite e mel não foi um processo fácil, tranquilo, pacífico. Não! Foi uma caminhada difícil. Basta recordar a parte do confronto/negociação entre escravos e Faraó (as pragas). Acho fantástico ler o Pentateuco e a Obra Histórica Deuteronomística (Dt 2 Rs) sob o prisma da caminhada na luta pela terra! Por isso, neste contexto, o bezerro de ouro simboliza todos os atrapalhes e tropeços colocados pelo próprio povo e, principalmente, pelas forças contrárias ao objetivo maior: a liberdade na terra prometida. O bezerro de ouro é a expressão de que, em certa altura do processo rumo à liberdade, o pacto, Javé, o decálogo, os passos já dados na saída do Egito, tudo de positivo que já havia acontecido — tudo isso foi derrotado pela idolatria. O jeito de Deus dirigir a caminhada em busca da terra de repente não agradou mais. Estava demorado demais! Aliás, Êx 32.23 mostra claramente que o povo tem pressa em chegar à terra. A perícope não fala dos métodos dos teus deuses (v. 8), só ressalta o abandono do verdadeiro Deus, que havia conduzido e acompanhado o povo até aqui.
A reação de Deus é rápida: destruição deste povo teimoso, de dura cerviz (v. 9). Mas assim como Moisés já havia interferido em nome de Deus em favor do povo (negociação com Faraó!), Moisés interfere agora, em seu nome, em favor do povo. Considero decisivo, nestes vv. 11-14, o que diz o v. 13. Minha interpretação: Deus! O alvo maior a ser alcançado é a terra dada por herança eterna. Este alvo não pode ser barrado, nem mesmo pela idolatria do povo. Consumir o povo agora (v. 10) só fortalecerá os que apostam no fracasso da caminhada iniciada sob tua ‘mão forte’ (ÊX 3.19). Tua intenção, motivada pelo furor, ê o que os nossos inimigos querem. Tua ação será contra ti mais do que contra o povo. E como o alvo maior de Deus não é o mal do povo sofrido, e sim o bem, ele torna a revelar sua eterna e renovada misericórdia (v. 14), ou seja, o seu coração sente com e pelo miserável.
Quando o alvo maior for a vida livre, a vida plena, a vida que Deus dá, aí Deus perdoa tudo que durante a caminhada surge e que impede que seja alcançado o alvo maior, embora o ofendido tenha sido o próprio Deus. O povo no exílio estava sem força política e económica. A lembrança do pacto com Javé passava a ser a coluna vertebral na resistência. O pacto reanimou, reorientou o povo no exílio. O pacto estabelecido por Javé deu uma nova esperança aos exilados do séc. VI a.C. (Gerstenberger, p. 240-241).
V — A perícope no contexto histórico
Na situação do exílio a perícope ataca a culpa do povo e a culpa da estrutura que culminou com a invasão dos babilónicos e a posterior vida no exílio.
Se no tempo da vida no Egito o Faraó (= governo/poder político e económico) era o grande inimigo do povo escravo, no tempo do reinado o rei encarnava todo o mal que afastava o povo de Deus. Vejo isso em l Sm 8.10-18, nos direitos do rei. Os interesses da estrutura (reinado) eram sobrepostos aos interesses da coletividade. O rei reinará sobre vós (l Sm 8.11). Ele tomará (v. llss.) tudo de vós. Ne 5, mesmo tendo surgido mais tarde, destaca a desigualdade entre o povo. Ne 5.1 fala do clamor do povo e de suas mulheres, contra os judeus, seus irmãos. É preciso considerar que o modo de produção desta época era o tributário (MPT). Este modo de produção já havia sido alvo das críticas de profetas como Amos. E foi este MPT que também causou a quebra da comunhão entre o povo que, conforme o pacto do Sinai, viveria numa sociedade, na qual não haveria mais a polarização escravos X Faraó. E neste contexto a perícope:
a) é autocrítica: O povo que fizeste sair se corrompeu (v. 7). A exploração começou entre nós. Nossa unidade (MPC) se foi. Nos dividimos! Enfraquecemos! Nos tornamos frágeis diante da ambição dos inimigos (= babilônicos).
b) denuncia o reinado (= bezerro de ouro). Insistimos em ter um rei (l Sm 8.19). Tá aí o resultado! Ele deu o exemplo. Tomou de muitos para ter/dar só para poucos. Acumulou. Muitos de nós copiamos o modelo dele (ídolo). Abandonamos o pacto (= dura cerviz). O castigo veio: a invasão e o exílio.
c) aponta para esperança: Nossa história não acabará aqui no exílio. O coração de Deus bate mais forte que o momento de furor. A bondade de Deus quer que a vida seja maior que o mal do reinado que idolatramos. Fomos desobedientes a Deus. Exigimos um rei. Foi nossa escolha! Mas Deus não olha só para nós. Ele se recorda da história (Abraão, Isaque, Jacó, v. 13); ele se recorda do juramento e da promessa feita (v. 13). Haveremos de dar a volta por cima deste momento tão ruim. E é o próprio Deus que deseja uma nova chance para nós (v. 14: ‘se arrependeu’).
VI — Mensagem
Eu enxergo na caminhada dos movimentos populares (mulheres da roça, sem-terra, atingidos/possíveis atingidos por barragens) e nas organizações da classe trabalhadora isso que se passou com o povo hebreu. No meio da escravidão (= vida que não ê vida: vida onde falta boa parte do pão — tema IECLB nos anos 89/90) reconhece-se que Deus não se compraz com o sofrimento (Êx 3.8). Reconhece-se que Deus ouviu o gemido da mulher agricultora que com 40 anos aparenta ter 55; que, por isso, ela já recebeu de Deus o direito de aposentadoria aos 55 anos com salário integral. Reconhece-se que a terra é para todos os que nela trabalham, e não para os que nela investem para lucrar. Reconhece-se que o direito da coletividade grita mais alto que a ambição capitalista que santificou a barragem com seu poder destruidor. Reconhece-se, enfim, que em toda e qualquer circunstância a VIDA já venceu a morte. E ê este reconhecimento que motiva todas as lutas do povo organizado.
Há falhas? Retrocessos? Claro! E muitos. Mas estes fazem parte da caminhada. O que, no entanto, deve prevalecer para quem se dispõe a ouvir e atender a voz do Senhor é a busca do alvo maior: a libertação, a vida que Deus quer, a vida que Brakemeier definiu no Informação IECLB n9 92/88, pág. 3, quando falou do tema dos anos 89/90.
Daria para entender a intercessão de Moisés (v. 11) como sinal de que é necessário tempo para que um povo entenda e assuma uma luta com clareza e consciência. Ë evidente que precisamos reconhecer a dura cerviz também hoje. Ela existe lá onde escravos não percebem que um sistema económico, social, político (= bezerro de ouro) está exigindo deles sangue e suor. Ela existe lá onde se prefere a escravidão à organização rumo à libertação; onde se preferem os teus deuses (v. 8). Mas a dura cerviz também existe, hoje, naquelas comunidades da IECLB, p. ex., em que obreiros, presbíteros e fiéis em geral (fiéis?), sem a devida visão dos fatos ou na intenção consciente de defender seu status, não querem enxergar os escravos em nosso meio (não só ao nosso redor!). A dura cerviz existe ainda quando se admite a existência de escravos, mas não se admite que é só na luta, na organização, na pressão que a liberdade será alcançada (ela não é concedida!). Por fim, dura cerviz pode até ser desconhecimento do projeto e dos métodos do Deus da história.
Bezerro de ouro é hoje, por ex., o governo federal e os governos estaduais, como o do RS, quando prometem, assinam que farão assentamentos de famílias sem-terra, mas vão protelando a decisão em cima de novas promessas (estou escrevendo enquanto os quatro agricultores e dois religiosos estão em greve de fome em Porto Alegre/RS, em solidariedade às 1.200 famílias acampadas, vítimas das promessas e do descaso das autoridades federais e estaduais). Só duvida disso quem não admite a verdade, sinceramente. E a gente faz deste bezerro de ouro um ídolo quando ainda acredita que eles (leia-se governantes!) visam o bem comum, apesar dos planos e pacotes, apesar dos acampados da Fazenda Annoni, Sarandi/RS, estarem esperando desde outubro/85; apesar de todo o mal e destruição que já provocaram, amparados na lei e até animados pela sua fé.
Apesar disto, esta perícope dá esperança. Ela é ânimo e convite para a resistência organizada. A dura cerviz, o bezerro de ouro deixaram o Brasil do jeito que ele está aí. O povo pobre vive exilado em seu próprio país. Está pior que os exilados da perícope. Mas não tem por que cair no desânimo e na apatia. Há motivos para a organização e a resistência. Também em termos de IECLB não há motivos para simplesmente desacreditar da comunidade e em suas tradições. Afinal: as comunidades são compostas por gente, por pessoas. O Espírito de Deus sopra onde quer. Necessário ê que especialmente a direção da Igreja, os/as obreiros/as ouçam o clamor que Deus ouviu no Egito (Êx 3.7ss.) e aceitem que Deus, ainda hoje, ê o mesmo e almeja a VIDA plena. Ë necessário ouvir o clamor e dar espaço e direito à voz dos que clamam por VIDA (pela posse da herança prometida, v. 13). Já há gente e organizações caminhando no caminho que conduz à VIDA. A IECLB já está lá junto. Ainda meio tímida. Há lugar maior para ela e sua contribuição. É só questão de opção.
VIl — Sugestão para pregação
1. A comunidade necessita compreender que a perícope fala do acontecido numa etapa de uma longa peregrinação do povo fugido do Egito. Conte-se, pois, o contexto aos ouvintes!
2. Fica a critério do/a pregador/a enveredar pelo que expus sob II ou sob IV.
3. Na comunidade tradicional existem muitos questionamentos em relação à luta dos movimentos populares ou mesmo em relação a qualquer movimento reivindicatório em defesa de interesses coletivos. Por ex.: um agricultor ir sozinho na prefeitura para solicitar um bueiro… pode. Ir em grupo. .. não pode! Isso já é política. É pressão!
A perícope ajuda, em muito, a explicar e compreender a caminhada do povo (entenda-se trabalhador e explorado!) hoje em busca de VIDA. Ela ajuda ainda a entender retrocessos, erros (‘Vagabundos do meio da massa que reivindica!). E o mais importante: a perícope mostra que Deus está no meio deste rolo todo.
4. O alvo maior de toda a peregrinação do povo hebreu deve ficar claro: VIDA, a terra prometida, a sociedade regida pelos mandamentos/constituição do Sinai! O Espírito poderá, através da pregação, atingir corações confusos, resistentes; poderá animar gente que já toma parte das peregrinações hoje.
VIII –Bibliografia
– GERSTENBERGER, E. S. Meditação sobre Êx 34.4b-10. In: Proclamar Libertação, vol III. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1978.
– SOUZA, M. de B. A Bíblia e a luta pela terra. Coleção: base para a base/11. Vozes, 1983.
– VOIGT, G. Homiletische Auslegung der Predigttexte, série VI. Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, 1983, pp. 234-239.