Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Êxodo 32.7-14
Leituras: Lucas 15.1-10 e 1 Timóteo 1.12-17
Autor: Astor Albrecht
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 15/09/2013
1. Introdução
O texto-base para a prédica trata da narrativa do bezerro de ouro. O povo pede a Arão que faça um deus que o leve à terra prometida. Com isso o povo quebra a aliança com o Senhor. Essa desobediência traz duras consequências: Deus não mais quer ir com o povo. Deus só não destrói o povo (v. 10) porque Moisés ora em seu favor (v. 11-13) e faz com que Deus mude de ideia. Há graça e misericórdia para o povo, que tem um coração duro. As duas parábolas de Lucas 15 – a ovelha perdida e a dracma perdida – também revelam compaixão quando se encontra o perdido. Na leitura da epístola, Paulo apresenta seu testemunho da graça e misericórdia de Deus, que o encontrou. Apesar de todo mal que fizera, inclusive ter perseguido a igreja de Cristo, a graça foi maior (transbordou). Essa graça e misericórdia são oferecidas, em Jesus Cristo, a todas as pessoas.
2. Exegese
O capítulo 32 retoma a narração interrompida em Êxodo 24.18. Ali, por ordem do Senhor, Moisés sobe o monte, onde recebe as tábuas de pedra com as leis e os mandamentos que devem ser ensinados ao povo. Moisés subiu e permaneceu no monte pelo período de 40 dias. Assim a narrativa é interrompida e, nos capítulos 25.1-31.17, temos as prescrições para a construção do tabernáculo. O capítulo 32 inicia um novo bloco, que trata da ruptura e da renovação da aliança do Senhor com Israel. Para a compreensão do texto da prédica e a preparação da mensagem, inicio com algumas considerações sobre o contexto anterior ao texto da prédica. Ali é narrado o fato de Moisés tardar em descer do monte. O povo já não sabe o que lhe aconteceu e não mais espera pelo “homem que nos tirou do Egito” (v. 1). O povo pede a Arão que lhe faça deuses que possam ir à sua frente. Arão derrete o ouro que o povo lhe traz e derrama dentro de um molde, fazendo um bezerro de ouro. Devido à sua força e vitalidade, o touro era, no Antigo Oriente, o símbolo por excelência da fecundidade masculina, e vários deuses tinham-no como símbolo. Um exemplo típico é Baal, o deus cananeu das tormentas, que costumava ser representado como estando de pé sobre um touro jovem, simbolizando seu poder de fecundidade. É interessante observar que a fala de Arão no v. 4 – “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito” – é praticamente a mesma de Jeroboão I, quando esse apresenta ao povo os bezerros de ouro que havia mandado colocar nos santuários de Betel e Dã (1Rs 12.28). Arão constrói um altar diante do bezerro e conclama o povo para uma festa em honra ao Senhor (v. 5). Essa expressão pode indicar que os israelitas queriam continuar prestando culto ao Senhor e não a um deus diferente daquele que os havia libertado da escravidão no Egito. Ao menos para Arão, parece que o bezerro de ouro não era um deus pagão, mas uma representação do Deus de Israel. Mas o fato de associar o Deus de Israel à imagem do bezerro, símbolo característico das religiões pagãs, era incompatível com o culto que o Senhor esperava de seu povo. O v. 6 descreve a festa. Em Gênesis 26.8 e 39.17, o verbo hebraico aqui traduzido por “divertir-se” refere-se a práticas de caráter sexual. Esse versículo é citado em 1 Coríntios 10.7 como um caso representativo da infidelidade e idolatria dos israelitas no deserto.
Levando em conta esse contexto, chegamos ao texto indicado como base para a prédica. No v. 7, o Senhor diz a Moisés para descer do monte. As palavras parecem soar duras: já não é mais o meu povo, mas sim “o teu povo”. Não o povo que o Senhor fez sair da escravidão, mas que Moisés fez “sair do Egito”. São palavras que revelam afastamento, distanciamento. A comunhão está quebrada. A desobediência afastou o povo de seu Deus (Dt 28.20). É como o profeta Isaías anuncia: “As vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (59.2).
No v. 9, parece que é feito uma espécie de exame para descobrir a razão do povo para abandonar tão rapidamente a Deus: “é povo de dura cerviz”. Na tradução de Lutero lemos: ein halsstarriges Volk ist. Quer dizer, é povo teimoso, obstinado, inflexível, cabeçudo. Parece que essa é a “marca”, se é que podemos assim dizer, do povo na caminhada da libertação para a terra prometida. Ela está muito presente nos textos bíblicos. Exemplos: Êx 33.3,5; Dt 9.6; Is 48.4; Jr 11.8; Ez 2.4. No Novo Testamento, essa expressão é usada por Estêvão em sua defesa e aplicada aos líderes judeus que resistiam ao Espírito Santo ao não aceitar a boa-nova de Cristo (At 7.51).
No v. 10, Deus pretende recomeçar a história toda de novo, dessa vez com Moisés. Foi assim após o dilúvio, com Noé e sua família. Deus pretende destruir o povo e fazer de Moisés uma nova e grande nação. Temos então um momento importante e decisivo: Moisés intercede pelo povo.
No v. 11, ele ora com grande súplica ao Senhor. Lembra que esse povo que pecou e que tem um coração obstinado é, na verdade, o “teu povo”. Um povo que não estava ali porque Moisés o tinha tirado do Egito, mas sim porque o Senhor o libertara “com grande fortaleza e poderosa mão”.
No v. 12, Moisés declara que a destruição do povo serviria como um mau testemunho da própria obra de Deus, ou seja, esse tiraria o povo da escravidão não para conduzir à liberdade e vida nova na terra prometida, mas sim para destruí-lo no caminho. As palavras de Moisés na oração soam fortes e intensas. Entendo essas palavras de sua oração como feitas por quem tem proximidade com Deus, comunhão, intimidade, que vê e crê em Deus não como um juiz severo, mas como um Pai que por amor também repreende e castiga.
No v. 13, Moisés lembra que tudo o que Deus fez até ali por esse povo foi em fidelidade às suas promessas a Abraão, Isaque e Israel/Jacó (Gn 17.8; Êx 2.24). Não é que esse povo seja melhor do que outros povos; ao contrário, já foi constatado que é povo de “dura cerviz”, mas é porque Deus é misericordioso e fiel em sua palavra e promessa que ele o resgatou e manteve até ali. Moisés intercede e pede a Deus que ele assim continue e, naquela ocasião específica, conceda o perdão e a oportunidade ao povo para recomeçar. O v. 14 finda com a afirmação de que Deus ouviu a oração de Moisés pelo povo.
3. Meditação
Compartilho a meditação considerando quatro temas que o texto bíblico nos apresenta. Eles podem ser trabalhados em sequencia, podendo receber maior ou menor destaque de acordo com a realidade e a necessidade da comunidade.
O primeiro tema é como percebo a presença de Deus na caminhada de minha vida pessoal, familiar e comunitária. O v. 8 diz que o povo “depressa se desviou do caminho”. Na parábola de Lucas 15, poderíamos perguntar: por que a ovelha se perdeu? Como a moeda foi perdida? Se nós confessamos que é junto a Deus que nos é oferecido um caminho de vida e salvação, então por que afastar-se dele? Se ele conduz a pastos verdejantes, por que vou procurar outro lugar, talvez distante dele? Se a comunidade é lugar para ser fortalecido na fé, lugar de comunhão entre irmãos e irmãs, por que alguns se afastam? Nesse primeiro tema para reflexão, destaco a importância de não esquecer aquele que me sustentou até aqui e que esse é o mesmo que vai à minha frente. Isso em si não tem nada a ver como está a minha/nossa situação, mas sim como estão o coração e a fé que descansa e espera no Senhor. Não foi uma situação adversa que afastou o povo de Deus, mas sim seu coração duro.
Em sequencia, podemos refletir sobre o símbolo do poder. O povo que tinha uma longa jornada pela frente precisava algo de concreto em que acreditar de que tudo daria certo e chegaria ao destino. Para isso fizeram o bezerro de ouro. O que dá confiança para as pessoas de que no caminho que têm pela frente podem ter segurança? O que buscam para se sentir felizes, satisfeitas em sua vida? Muitas ofertas são feitas diariamente. Há muitas vozes anunciando o que as pessoas precisam para estar de bem com a vida. Dinheiro, status, fama, bens e poder sempre foram e são os mais anunciados e buscados. No coração do ser humano, há lugar para o “bezerrinho de ouro”. E, para mantê-lo, muitos se afastam de Deus, da comunhão na igreja, da própria família e de si mesmos.
Em terceiro lugar, o texto deixa clara a dura realidade do que significa afastar-se de Deus. Aprendemos que o maior de todos os mandamentos (amar a Deus) não deve ser esquecido. Todo pecado separa e afasta de Deus, afasta as pessoas umas das outras. E quando não é confessado, traz consequências (Sl 32.3-4). O coração duro e teimoso do povo deu origem a muitas situações difíceis e de sofrimento para todo o povo. Não é diferente hoje. Há sofrimento na família quando alguém da casa é insensível e ríspido com os demais; a comunidade sofre prejuízo quando pessoas só criticam ou determinam que seu jeito de viver a fé em comunidade é o certo. Mas é aqui que também o texto bíblico abre uma grande oportunidade: é justamente em nossa pequenez, nosso erro e fragilidade que o Senhor revela sua misericórdia e seu amor. Nenhuma situação de dificuldade e sofrimento pode decretar a ausência de Deus ou que não se possa mais esperar nele. Pelo contrário! Esse povo que caiu pode recomeçar. Isso passou por disciplina da parte de Deus. Mas, no final, Deus continuou com seu povo (Êx 34).
No conjunto do relato, o Senhor revela-se como Deus que faz prevalecer a misericórdia e o perdão sobre o juízo e o castigo. Isso nós também vemos no testemunho de Paulo no texto de leitura, onde ele confessa que foi “blasfemo, perseguidor e insolente”, mas a graça do Senhor foi maior e ele foi feito testemunha para todas as pessoas da salvação de Deus. Ele achega-se humildemente a Deus. Sem arrogância, sem vanglória, sem afirmar “consegui sozinho”. Também não fazemos pose de campeão e não reivindicamos vitórias. Antes colocamos corações maculados na palma das mãos e oferecemo-los a Deus como uma flor pisada e sem perfume: “você pode dar vida a isso?”. E ele dá. Ele dá! Não nós. Ele realiza o milagre da salvação. Mergulha-nos em sua misericórdia. Costura a nossa alma esfarrapada. Deposita seu Espírito e implanta dons divinos. O nosso grande Deus abençoa a nossa pequena fé e redime para dar vida nova.
Por fim, temos o tema da intercessão. Moisés intercedeu pelo povo para que Deus perdoasse o pecado. Sua oração muda o desígnio de Deus, e a graça alcança o povo. Quantas situações e pessoas foram transformadas porque havia alguém que intercedia. Um grande exemplo é a mãe de Agostinho. Aqui vale lembrar a comunidade sobre o poder da intercessão (Tg 5.16). Devemos ser constantes nisto: orar uns pelos outros, lembrar-nos de quem enfrenta conflitos e não está sabendo como sair, interceder por quem está afastado. Como Deus se agradou da oração de Moisés, agrada-se também de nossa oração. As parábolas em Lucas 15 têm em comum as palavras “perder, achar e alegrar-se”. Elas devem animar a nossa intercessão, sabendo que por meio dela Deus opera, pois é fiel.
4. Imagens para a prédica
Para ilustrar que a pessoa pode esquecer Deus como aquele que a sustenta e guia:
Quando tinha três anos, o sobrinho pediu ao tio para jogar basquete. A bola era maior do que a caixa torácica do garoto. A cesta tinha o triplo de sua altura. Seus melhores arremessos não chegavam nem perto do objetivo. Então o tio resolveu ajudar: baixou a cesta de três metros para dois metros e levou-o para mais perto do alvo. Mostrou-lhe como flexionar os joelhos para dar impulso à bola. Nada ajudava. A bola nem passava perto da rede. Então o tio levantou o sobrinho. Com uma mão em suas costas e a outra debaixo do bumbum, ergueu-o até que os olhos dele ficassem na mesma altura do arco. O tio gritou: Vamos, faça uma cesta, garoto! E ele fez. Rolou a bola sobre a argola de ferro, e ela caiu. Como a criança respondeu? Ainda amparada pelas mãos do tio, ela ergueu os punhos para o alto e declarou: Consegui sozinho! Consegui sozinho!
Um pouco de exagero desse garotinho, não acham? Afinal, quem o segurou? Quem o manteve firme? Quem lhe mostrou o caminho? Será que ele não está esquecendo alguém? Para ilustrar o coração duro do ser humano diante da palavra de Deus, compartilho um texto do P. Lindolfo Weingärtner:
“Pedra deitada no leito do rio, banhada de água há muitos anos, em realidade só está molhada no lado de fora. A água não penetra nela. Uma esponja seca, mergulhada no rio, logo se enche de água.
“Uma coisa que pode nos inquietar é ver como certas pessoas conseguem viver a vida inteira no âmbito e sob a influência do evangelho de Jesus e, no entanto, permanecer secas por dentro, sem deixar penetrar uma gota sequer no seu coração. A qualidade seca do coração não é problema para Deus. Ele dispõe de água abundante e ilimitada. A dureza do coração é coisa diferente. Aí a vontade íntima do nosso ser impede a entrada da água da vida, mesmo que Deus nos mergulhe no rio anos seguidos.
“Semblante duro e coração obstinado – assim o profeta Jeremias descreve os filhos de Israel de seu tempo. Ele teria palavras muito diferentes para descrever a cristandade de nossos dias? Temos nós sede de Deus, do Deus vivo e fonte de toda a vida?”
5. Subsídios litúrgicos
Hinos: Até aqui me trouxe Deus (HPD 1 – 233); Como tu queres, Senhor, sou teu (HPD 1 – 194); Ao orarmos, Senhor (HPD 2 – 423); Um só rebanho, um só pastor (HPD 2 – 328).
Glória:
Como convite para adorar e glorificar a Deus que está presente, pode-se ler 1 Timóteo 1.17: “Assim, ao Rei eterno, imortal, invisível, Deus único, honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém”. Pode-se cantar com a comunidade um ou mais hinos de louvor a Deus por sua misericórdia, que se renova a cada dia.
Oração de intercessão: Dar um momento para as pessoas intercederem pela vida de outras que enfrentam dificuldades ou que estão afastadas da comunhão na igreja.
Bibliografia
BIBLIA DE ESTUDO ALMEIDA. Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
WEINGÄRTNER, Lindolfo. Parábolas da vida – meditações. Curitiba/São Leopoldo: Encontrão Editora/Editora Sinodal, 1998. p. 106-107.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).