Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Ezequiel 34.11-16, 20-24
Leituras: Mateus 25.31-46 e Efésios 1.15-23
Autor: Cláudio Kupka
Data Litúrgica: 24º Domingo após Pentecostes (Cristo Rei)
Data da Pregação: 23/11/2014
1. Introdução
O Domingo Cristo Rei aponta para a realeza de Cristo sobre todo o universo. Nesse sentido, todos os textos são, em boa medida, harmônicos. O texto de Ezequiel 34.11-16,20-24 ressalta a postura “pastoral” de Deus e seu compromisso com o resgate e o cuidado de suas “ovelhas”. Ele também é o juiz que conhece as ovelhas que fazem parte de seu rebanho.
Mateus 25.31-46, o conhecido texto sobre o Grande Julgamento, revela Jesus como pastor e juiz. O texto enfatiza não somente os critérios do julgamento de Cristo, como expressa a mesma intimidade e o cuidado com seu fiel rebanho. As ovelhas da direita compartilharão de sua companhia em seu Reino eterno quando, ao praticar misericórdia para com os sofridos, sem saber o faziam ao próprio Cristo. Mateus aprofunda justamente o conteúdo de Ezequiel 34.20-24.
Efésios 1.15-23, além de definir belissimamente o papel do Espírito Santo, afirma que o poder de Deus manifestou-se em Cristo não só vencendo a morte, mas fazendo-o sentar à direita do Pai em seu Reino, dando-lhe todo o poder sobre a igreja e toda a criação restaurada.
O Tempo Comum termina no Último Domingo após Pentecostes, o qual é chamado de Cristo Rei. A festa de Cristo Rei pode ser ocasião para aprofundar a verdade essencial da fé e revalorizar o conteúdo da realeza de Cristo. Cristo é rei para criar um povo real, livre de qualquer escravidão humana. A realeza de Cristo é universal e tem um poder real sobre tudo e todos. Jesus Cristo é rei, porque é o único mediador da salvação de toda a criação (Weimer).
2. Exegese
Não me pretendo deter no contexto histórico de Israel nem na apresentação de Ezequiel como profeta e sua obra literária. Meus antecessores na abordagem de Ezequiel fizeram-no de forma exemplar (PL 24, p. 328-333; PL 35, p. 363-369). Farei referência a esses contextos à medida que forem relevantes para a análise da perícope.
O capítulo 34 de Ezequiel é inteiramente construído sobre a metáfora da relação entre o pastor e suas ovelhas. Ela é amplamente usada no Antigo Testamento (Sl 23; 2Cr 18.16), inclusive no contexto profético (Jr 23.1-6; 50.6-7; Zc 10.2). A metáfora é usada para enfatizar a relação de Deus com seu povo e a dos líderes com o povo de Israel. Liderar o povo é pastorear. Há, portanto, uma clara referência ao cuidado na arte de liderar, que provém da relação de cuidado e amor do próprio Deus com seu povo. Os versículos em questão são antecedidos por uma perícope que enfatiza que Deus destituirá os maus pastores de seus cargos, um claro anúncio de juízo.
Os v. 11-16 voltam-se para o futuro na forma de um anúncio de salvação, cheio de poesia e esperança. Esses versículos subdividem-se em três partes. A primeira parte (v. 11-13a) descreve a ação libertadora de Deus. Ele próprio assume a tarefa do pastor que resgata suas ovelhas perdidas, dispersas e escravizadas. Há uma clara referência ao quadro resultante do exílio, nesse caso babilônico. Judá e sua capital Jerusalém são destruídas fisicamente, e toda a sua organização político-social é igualmente anulada. A liderança do povo é cruelmente levada à Babilônia num penoso e forçado exílio. Essas pessoas são obrigadas a mudar de trabalho, e muitas sofrem horrivelmente nesse processo. O pastor supremo sabe de sua dor, ouve seu clamor e anuncia através de Ezequiel o seu resgate. A ideia de intimidade e compromisso de vida desse pastor transparece no ato de procura por cada ovelha extraviada. Nenhuma é esquecida.
A segunda parte (v. 13b-15) descreve as ações curadoras e restauradoras resultantes da ação inicial. O pastor restaura a condição de dignidade e saúde de suas ovelhas. Ele traz suas ovelhas para seu lugar de origem. Voltar para casa talvez seja a ação que melhor resuma a esperança salvífica de Israel. Os montes, as águas e os pastos traduzem não somente o significado do aconchego e da proteção da terra natal, como o suprimento das necessidades físicas dessas ovelhas. Tanto as necessidades simbólicas como físicas são alvo desse cuidado pastoral. O v. 15 reforça o envolvimento pessoal de Deus. Não há intermediários – o próprio Deus cuidará de cada ovelha. Nessa relação restaurada de pastor cuidador e ovelha cuidada há alimento e descanso.
Destaco como terceira parte o v. 16, porque encerra em si um resumo da ação divina na forma de poesia. Nela são incluídos novos elementos na compreensão da realidade de sofrimento das ovelhas, que nos prepara inclusive para compreender melhor o conteúdo da perícope final (v. 20-24). Além de destacar a busca das ovelhas perdidas, incluem-se as desgarradas, as quebradas e as enfermas. Há uma indicação das diferentes experiências de sofrimento resultantes desse grande e complexo cenário que o exílio representou. Sofrimentos impostos às ovelhas e sofrimentos resultantes de suas escolhas erradas. O elemento novo nesse versículo é a referência à destruição das ovelhas gordas e fortes e ao ato de “apascentar/alimentar com justiça”, ou seja, há necessidade de restabelecer a justiça de Deus na relação entre elas. Esse aspecto aponta para uma dimensão diferente da explorada nos v. 11-15: fala-se agora mais do que de um pastor “disciplinador” de ovelhas em conflito; fala-se agora de um juiz.
Os v. 20-22 revelam por que as ovelhas gordas e fortes são preteridas. Elas oprimem as mais fracas. Há uma clara referência aos líderes do povo de Israel. Em vez de ser solidários com os sofridos, usurpam privilégios à custa dos mais fracos.
Os v. 23-24 revelam a culminância da ação de justiça de Deus, ou seja, o restabelecimento de um pastor, à semelhança de Davi, o único rei de Israel ao qual se aplicou o título de pastor. O v. 24 encerra a perícope afirmando essa relação de soberania e confiança sobre seu servo: Davi, o príncipe. Há um claro sonho de restauração da relação de Deus com seu povo. Há uma clara referência à necessidade histórica de líderes que nele confiassem e que cumprissem seu papel de cuidadores do povo. Ao falharem esses líderes, entregaram o povo ao sofrimento e à destruição. Nessa profecia, no contexto de total fracasso desses líderes e precariedade, Deus próprio interfere e age para salvar suas ovelhas e restaurar a sorte de Israel, sem perder a ideia de contar com mediadores de seu projeto pastoral, que agem segundo seu coração.
3. Meditação
a – Por um bom tempo, creio ser relevante a discussão se este domingo deve privilegiar o tema da perda dos entes queridos, dada a recente prática de celebrar neste dia o Domingo da Eternidade. Mesmo que celebrações de Finados tenham atraído esse tema para si, ainda permanece a tradição anterior em algumas comunidades. A crescente ênfase na celebração do Domingo Cristo Rei não exclui necessariamente a vinculação desse com o tema anterior. Digo isso porque os textos da série A do Domingo Cristo Rei prestigiam claramente o tema do conforto, da restauração e da esperança.
b – A primeira ênfase do texto reside justamente no tema da salvação, que Deus mesmo opera em relação a seu povo. O tema da salvação não é abordado num clima de ameaça ou condenação. Pelo contrário, Deus identifica-se de tal maneira com a causa da libertação de seu povo, que se envolve pessoalmente nessa obra. Aqui é extremamente útil a metáfora do pastor. Sua intimidade e senso de cuidado com cada ovelha reflete um profundo e comprometido amor de Deus por sua criação. Nada impede Deus de ir às últimas consequências em seu projeto de amor (Rm 8.31-39; Jo 10.10-15). A resposta a esse amor só pode ser de profunda entrega e confiança. Vê-se aqui com o que a soberania de Deus na história está comprometida. Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2.4). Essa mensagem deve estar clara hoje na maneira como a igreja fala de Deus ao mundo. Deus vem resgatar, acolher e sarar as pessoas.
c – Fica implícito nesse texto que o sofrimento das pessoas possui diferentes enredos, diferentes desdobramentos. Essas histórias são objeto do ouvir atento de Deus. Ele se importa com nossas dores. Mas não no sentido de nos fazer simplesmente esquecer o sofrimento. Ele tem interesse em reescrever nossa biografia através da obra restauradora de seu amor. Ao revisitar cada episódio de nossa história, revelando que Ele nunca nos abandonou, é possível entender por que reagimos da maneira como fizemos. Há espaço para perdão e reconciliação. Há espaço para uma nova leitura de nossa biografia. A dor dos enlutados não é ignorada nem as circunstâncias que determinaram a morte de seus entes queridos. A comunhão cristã deve oportunizar a expressão dessa dor e desses relatos. Deve oportunizar esse cuidado pastoral para que haja cura de vidas.
d – O olhar amoroso de Deus não é um olhar permissivo que ignora o sofrimento que impomos uns aos outros por conta de nossa ganância, egoísmo ou arrogância. Deus sabe quem compartilha com ele o mesmo amor e cuidado com os mais fracos. Ele saberá distinguir quem de fato olhou para o próximo e vai ao encontro de sua dor, como se o fizesse sem olhar a quem. O amor que Deus nos dedica deve ser expresso concretamente por nós na relação com os nossos próximos. Quem diz que ama a Deus, mas não ama seu próximo, mente e demonstra não conhecer Deus (1Jo 4.8). O juízo de Deus, portanto, é um juízo sobre nossa responsabilidade de cuidar de nosso próximo, de partilhar seu amor e sua misericórdia com o mundo.
4. Imagens para a prédica
Trago um relato sobre a história de uma música popular. A história conta que, certa noite, em uma forte nevasca, na sede de uma instituição, um padre plantonista ouviu alguém bater na porta. Ao abri-la, ele se deparou com um menino coberto de neve, com poucas roupas, trazendo em suas costas um outro menino mais novo. A fome estampada no rosto, o frio e a miséria dos dois comoveram o padre. O sacerdote mandou-os entrar e exclamou: “Ele deve ser muito pesado”. Ao que o que carregava disse: “Ele não pesa, ele é meu irmão”.
Não eram irmãos de sangue realmente. Eram irmãos “da rua”. O autor da música soube do caso e inspirou-se para compô-la, e da frase fez o refrão. Esses dois meninos foram adotados pela instituição. É sobre a entidade “Missão dos Órfãos”, em Washington, DC. Foi lá que ficou eternizada a música “He ain’t heavy, he is my brother” dos “The Hollies”.
A estrada é comprida com muitas curvas difíceis,
Que nos leva a quem sabe aonde, quem sabe aonde.
Mas eu sou forte, forte o bastante para carregá-lo.
Ele não é um peso para mim – ele é meu irmão.
E assim continuamos. O bem-estar dele é problema meu.
Ele não é nenhuma carga para mim.
Nós chegaremos lá, pois eu sei – ele não seria um estorvo para mim, oh não.
Ele não é um peso para mim – ele é meu irmão.
Agora, se estou realmente sobrecarregado,
Então estou sobrecarregado de tristeza.
(De saber) que o coração de todo mundo não está cheio de gratidão
Ou de amor um pelo outro.
É uma estrada muito comprida da qual não há retorno.
E enquanto estamos indo para lá, por que não partilhar?
E a carga (dele) não vai me pesar de jeito algum.
Ele não é um peso para mim – ele é meu irmão.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de culpa:
Querido Deus, perdoa-nos por chegar diante de ti somente pensando em trazer nossos pedidos e nossas dores. Ignoramos que és um Deus justo e sensível. Tu sabes a origem de nossos sofrimentos, tu sabes por que pedimos tanto. Tu nos olhas como rebanho e conheces como nos relacionamos coletivamente. Conheces a maneira injusta e indelicada como tratamos nosso semelhante. Sabes quanto o espírito de competição e nosso orgulho nos levam a ferir e machucar as pessoas a quem devíamos amar e cuidar. Ouve nossa oração e estende o teu perdão a nós por tua misericórdia. Em Cristo, oramos. Amém.
Oração do dia:
Encontramo-nos diante de ti como teu rebanho, Senhor. Fomos resgatados da perdição por tua obra de amor, realizada em Cristo na cruz. Em tua presença temos paz, alimento e vida plena. Buscamos a ti como nosso pastor supremo neste dia, para que novamente nos alimentes com tua presença amorosa, com tua palavra renovadora e tua liderança infalível. Atue teu Espírito entre nós, conduzindo-nos por caminhos de confiança e amor solidário. Em Cristo oramos. Amém.
Cantos:
Hinos do Povo de Deus: 94, 102, 117, 124, 264, 336, 384, 385, 389, 393,410, 411, 453, 456, 462, 467, 471, 474.
Bibliografia
ODELL, Margaret. Ezekiel. Macon: Smyth & Helwys Publishing, 2005.
WEIMER, Tânia Cristina. O último domingo do Ano Litúrgico. São Leopoldo:Escola Superior de Teologia, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).