Renovados
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Ezequiel 37.1-14
Leituras: João 11.1-45 e Romanos 8.6-11
Autoria: Marivete Kunz
Data Litúrgica: 5º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 29/03/2020
1. Introdução
Ezequiel foi para o exílio na Babilônia junto com a liderança de Judá em 597 a.C. O que aconteceu com ele diz respeito ao seu ministério no começo do exílio, entre 593/592 e 571/570 a.C. (Ez 1.1; 29.17). Lá ele tornou-se um grande líder entre os cativos (Ez 8.1). Em suas pregações, ele fez uso de ações simbólicas. A grande ênfase da sua mensagem envolveu a queda e a restauração da casa de Israel e Judá. A situação era muito complicada e, após longo tempo no exílio, não havia mais esperança de um retorno para terra natal, Jerusalém. Ainda que Judá, como comunidade, continuou a existir na distante terra natal, eles eram vassalos da Babilônia. De 608 até 597 a.C., muitas coisas ruins aconteceram no reino do sul antes da Babilônia levar o povo cativo: Jeoaquim perseguiu os profetas e foi um líder tirano. Além disso, não contribuiu para melhorar a vida espiritual da nação. O filho de Jeoaquim, Joaquim, reinou três meses e então se rendeu a Nabucodonosor (2Rs 24.8-17; Jr 22.24-30; Ez 19.5,9). O último rei de Judá foi Zedequias (597-506), o terceiro filho de Josias (2Rs 24.17 – 25.7; Ez 19.11-14), e também não foi um bom rei. Ele é considerado um rei fraco (Jr 37; 38), pois devido à sua infidelidade a Nabucodonosor, acabou fazendo com que os caldeus atacassem Jerusalém.
Esse é roteiro resumido da destruição da cidade, do templo e da deportação do povo para a Babilônia. Foi nesse contexto que o profeta Ezequiel atuou e tornou-se apoio para os seus. Após o povo ter que aprender a viver em terra distante, a reorganizar sua vida no exílio, o Senhor enviou, por meio do profeta, uma mensagem de restauração ao povo de Judá. A mensagem é de um recomeço, no qual o Senhor guiará seu povo em um novo projeto.
2. Exegese
V. 1 – Este versículo apresenta um destaque para a expressão veio sobre mim a mão do Senhor. A mão do Senhor o acompanhava constantemente. Isso pode ser observado em várias partes do livro (1.3c; 3.14,22). Foi a mão do Senhor que conduziu o profeta a um vale, tanto em 3.22,23 como em 37.1. A palavra ossos, nesse versículo, traz a conotação de mortos em todos os aspectos. Nesse início de texto, também é importante lembrar que o profeta teve uma visão, e visões são muito simbólicas, não devendo ser interpretadas literalmente. O texto fala da restauração nacional do povo.
V. 2 – Este versículo descreve como estavam os ossos que o profeta visualizou, ou seja, sequíssimos. Isso é um indício de que não havia mais vestígio de vida. Também se percebe que os ossos estavam espalhados. Essa foi uma visão de morte, na qual aparentemente não havia possibilidade de vida.
V. 3 – Há uma pergunta aqui que evidencia ser Deus o senhor tanto da vida como da morte. Também há uma evidência da impotência do ser humano diante de cenas como a descrita nesse texto.
V. 4 – Este versículo é muito significativo, porque evidencia que Ezequiel recebeu a ordem para profetizar aos ossos uma promessa de vida.
V. 5 – Este versículo afirma que Deus daria espírito aos ossos secos. A palavra hebraica para espírito é ruah, a qual também aparece nos versos 6, 8, 9 e 10. A palavra também pode receber outras traduções, como hálito ou vento. Mas, nesse contexto, tal expressão é um sinal de vida, ou do princípio da vida, o espírito. O Senhor, com todo o seu poder, assim como foi na criação, iria soprar sobre os ossos e trazer vida.
V. 6 – E saberão que eu sou o Senhor é como Javé seria conhecido. Significa que ele seria conhecido como o Senhor da vida.
V. 9 – A presença da expressão ruah (espírito) neste versículo é fundamental, pois é ele que sopra e traz a vida. Isso é o que acontece com quem é nascido do Espírito, conforme Jo 3.9-10, ou seja, tem vida. Importante também é que essa vida é soprada dos quatro ventos e é um símbolo da concessão de vida pelo Espírito de Deus (v. 14). O processo aqui é similar ao que aconteceu em Gênesis, no ato divino da criação.
V. 10 – Novamente aqui há uma menção ao espírito que teria entrado neles e trazido vida. Na criação, conforme Gênesis 2.7, quando o criador soprou nas narinas o sopro da vida, o ser humano se tornou um ser vivente.
V. 11 – Toda a casa de Israel pode ser uma indicação dos sobreviventes, tanto Israel como Judá. Os ossos aqui representam toda a nação de Israel.
V. 12 – A imagem do sepulcro faz pensar na morte. Este versículo, lido junto com a parte final, enfatiza o tema da vida, que é aquilo que Deus deseja para o seu povo. Ele deseja que o povo tenha vida e o reconheça como Senhor soberano da história.
V. 14 – Porei em vós o meu Espírito, e vivereis é a forma como a perícope é finalizada. A expressão espírito, ou ruah, é o que comanda a nova vida, pois é o Espírito do Senhor que dá a vida e regenera.
V. 11-14 – Estes são os versículos que fecham a visão. É importante observar que esta é a interpretação da visão tida pelo profeta, bem como que o profeta não está falando da ressurreição física.
No texto, aparece o termo ossos oito vezes, bem como espírito. Esses são dois elementos que contrastam. Enquanto os ossos estão acompanhados pela inércia e pelo silêncio, a palavra do profeta chama o Espírito e então vem o sopro da vida, que é uma palavra que traz ânimo a seus compatriotas.
3. Meditação
A mensagem do profeta Ezequiel foi compreendida como um recado de Deus, pois o profeta enfatizou que tudo o que acontecia vinha de Deus, por meio de seu Espírito (37.1-14). Sabe-se, a partir da história, que o povo estava corrompido pelos pecados. As acusações que Ezequiel fez em várias partes do livro estavam baseadas na história de Israel e nos pecados do povo, que o profeta revelou. Por isso Deus pôs fim a tal situação e o povo foi levado cativo, inclusive o próprio profeta.
Quando Ezequiel transmitiu a mensagem do Senhor, tudo ocorreu por meio da atuação do Espírito do Senhor. Segundo o texto, o profeta foi levado a um vale e ali ele teve a visão dos ossos secos. Ainda que num primeiro momento um vale e ossos possam parecer algo que não tem relação com esperança, nesse caso foi o contrário. Essa foi uma mensagem de esperança e renovação porque o profeta mostrou uma grande restauração que o Senhor faria para a nação que já estava no exílio há pelo menos 50 anos.
Ezequiel 37.1-14 mostra que o povo de Deus seria reintegrado em uma só nação. Tudo o que é novo é desafiador e precisa da presença do Senhor para que haja sucesso e o desânimo não prevaleça. Tudo o que é novo também tem um propósito. No caso do texto, há duas ênfases, descritas abaixo. Elas mostram o que era fundamental e conduziria esse processo que o povo vivia, bem como porque era importante o povo ser renovado.
a) Renovados pela mão e pelo Espírito do Senhor: O texto em destaque mostra que em um processo de renovação algo é fundamental: a ação da mão do Senhor e pelo agir de seu Espírito. Desde o início do livro (1.3c) se enfatiza que a mão do Senhor estava sobre o profeta. No caso de Ezequiel, a mão do Senhor estava com o profeta quando ele cumpria sua missão. É fundamental que a mão do Senhor esteja presente nos momentos de restauração, porque toda mudança pode ser algo assustador e, se não houver convicção da presença do Senhor, talvez corramos. É Deus, com sua mão estendida, que nos faz permanecer firmes diante do que vemos em suas revelações. Possivelmente o que o profeta viu foi assustador, mas não era qualquer mão que estava sobre ele, e sim a mão forte do Senhor. Por isso o profeta foi sustentado.
Além da boa mão do Senhor fazer-se necessária num processo de renovação e mudança de vida, também é necessário considerar a presença vivificadora de seu Espírito. Já no início do texto (v. 2), observamos que isso é verdade, pois embora nessa visão o profeta entenda que a situação era caótica, pois os ossos estavam sequíssimos e sem sinal de vida (conforme vários versículos: 5, 6, 8, 9, 10), havia o agir do Espírito de Javé. É esse Espírito que traz a esperança da renovação, do princípio e do sopro da vida. Esse é o tempo em que o povo entende que Javé irá soprar vida, a exemplo do que fez em sua criação no início da humanidade. Javé está no comando da vida e seu Espírito trará renovação ao povo disperso.
A visão dos ossos apontou para um milagre de renovação e restauração, com o povo retornando para a terra natal. Ezequiel revelou que Deus restauraria o povo e no futuro os levaria de volta à terra. Quando isso acontecesse, o interior das pessoas teria sido transformado: elas teriam um novo espírito e um novo coração, voltados somente ao Senhor. Pois não há renovação, não há esperança, não há vida ou mudança sem a presença do Espírito que concede a própria vida. Por isso é preciso entender que quando a forte mão do Senhor está sobre nós, seu Espírito nos fortalece. Por isso vamos em frente. Foi isso que o profeta vivenciou. Em todo processo que passamos há algo impressionante que devemos lembrar: a boa mão do Senhor e o seu Espírito estarão conosco e é isso que trará a renovação para nossas vidas.
b) Renovados para reconhecer que Javé é o Senhor: Quando o povo é renovado pela boa mão e pelo Espírito do Senhor, isso está a serviço de alguma finalidade. Nesse caso era importante que o povo voltasse para Jerusalém, a fim de que todos soubessem que ele é o Senhor. O que acontecia devia levá-los a entender e testemunhar o que está dito nos versículos 13 e 14: […] Então sabereis que eu sou o Senhor. Depois de tantos anos no cativeiro, talvez o povo já não mais acreditasse que o Senhor reinava e era soberano entre as nações. Agora chegou um momento especial, pois o Senhor esperava que, renovado, o povo reconhecesse que ele era o Senhor.
Talvez tudo o que o povo experimentou no cativeiro o tenha levado a acreditar que Javé era um Deus menos poderoso que os deuses da Babilônia. Especialmente no aspecto religioso o povo deve ter enfrentado uma grande crise, tendo em vista a destruição do templo, considerado como a morada de Javé. A ação de Javé, para muitos, se restringia à sua terra. Pensava-se que ele não poderia ser adorado na Babilônia. Nesse sentido, Ezequiel foi o porta-voz de uma mudança de concepção. No cativeiro, o povo compreendeu que o seu Deus não estava limitado às paredes do templo, mas era soberano e habitava onde eles estavam.
A frase E tu reconhecerás que eu sou Javé, que aparece várias vezes no livro, mostrou que esse era o propósito de Deus em seu agir. Tudo aquilo que Deus fazia era em função do reconhecimento de que ele era Deus (20.9,14,22). Desta maneira, pode-se crer que o Senhor atuou para mostrar, primeiramente, que ele era Deus, e não simplesmente por causa do povo. Em todos os momentos, Ezequiel mostrou que a ação de Deus aconteceu para que o seu nome fosse santificado entre os outros povos, da mesma maneira que deveria ser entre o seu povo escolhido. Com a frase Então sabereis que eu sou o Senhor (6.13; 7.4,9; 11.10,12; 12.20; 13.9,14,23; 14.18,23; 15.7 e outros), a santidade de Deus estava sendo ressaltada e entrava em contraste com a pecaminosidade do povo. Vários autores, como Schreiner, Kaiser e von Rad, destacam que, na compreensão do profeta, tudo foi feito pelo Senhor, para que seu nome fosse conhecido e não desonrado entre as nações (20.9,14,22), para que ele fosse reconhecido e adorado por aqueles que até o presente não o conheciam ainda ou o conheciam mal.
Com Ezequiel surgem uma nova percepção e uma nova visão. Percebe-se que a presença do Senhor entre o grupo de deportados é real e essa percepção mostrou que o Senhor não estaria limitado a um templo e suas paredes, mas poderia ser adorado em terras estrangeiras e, ainda, ser conhecido por esses estrangeiros. A palavra de restauração dada aos desterrados foi importante, porque foi portadora de vida a eles. Nessa renovação eles entenderam que não foram esquecidos e ainda faziam parte do povo do Senhor, mesmo que tivessem enfrentado um período de exílio.
Em resumo, Israel estava no cativeiro, disperso, sem esperança, sem perspectiva de vida, semelhante a uma multidão de ossos secos. Deus se manifestou por meio do profeta e mostrou que pode renovar e fazer do seu povo um novo povo ou fazer do ser humano um novo ser humano. Deus faz grandes coisas pelos seus, por meio de sua boa mão e de seu Espírito, mas é necessário não se esquecer que ele também espera que sejamos testemunhas e anunciemos sua grandeza e soberania entre as nações.
4. Imagens para a prédica
O relato que segue nos faz refletir sobre aquilo que Deus nos proporciona. Após uma ação de livramento e renovação, é necessário haver um reconhecimento de que ele é o Senhor. “Furiosas ondas batiam contra o pequeno barco, no qual alguns refugiados tentavam alcançar as águas suecas. A tempestade desceu rápida e inesperadamente sobre eles. E, para aliviar o peso do barco, jogaram ao mar tudo o que puderam. A qualquer minuto, a embarcação poderia virar e todos seriam atirados nas profundas e agitadas águas do oceano. ‘Irmã Eva, ore por nós’, gritaram os refugiados. Sabiam que ela era cristã e queriam que orasse. Enquanto ela orava, renovaram-se as energias e esperanças dos refugiados. A tempestade foi passando. O barco, rumo a uma terra de liberdade e paz, movia–se, finalmente, atrás das ilhas e esconderijos. Todos estavam convencidos de que Deus havia lhes segurado com força as mãos, ajudando-os e abençoando-os” (E. During – Suécia).
Bibliografia
KAISER, Walter C. Teologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1984.
RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1986.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).