Quase um drone
Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Ezequiel 37.1-14
Leituras: João 11.1-45 e Romanos 8.6-11
Autoria: Leonidio Gaede
Data Litúrgica: 5° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 26/03/2023
1. Introdução
Ezequiel tomou sua dose de espinafre e viajou. Esse profeta é uma loucura! Seria esquizofrênico (Kuhl, 1956, p. 102)? Viajava mentalmente? Praticou um autoexílio? Viajar, para ele, parece ter duplo sentido. Quando comeu o espinafre, aliás, o livro, não se engasgou, mas achou doce como mel (3.3). Mudou sua vida. Pegando emprestada a linguagem do apóstolo Paulo, podemos dizer que mudou sua vida de carnal para espiritual. Essa viagem ou, digamos, mobilidade é um assunto que faz parte da obra do profeta Ezequiel. Podemos perceber isso durante o relato de seu exercício profético e especialmente quando descreve a teofania que vivenciou. Na Babilônia ou em Jerusalém, no templo ou na beira do rio, em Sião ou Quebar, no céu ou na terra, que importa? Na teofania, Javé tem rodas que podem ir em qualquer direção (1.16ss; 10.9ss). Sim, Deus apareceu a Ezequiel num protótipo de drone, ensinando que a mudança sempre é possível.
No Evangelho de João 11.1-45, Jesus viaja para o lugar onde estão as pessoas enlutadas pela morte de seu amigo. Lázaro tinha morrido há quatro dias e já cheirava mal. Jesus foi alertado a respeito dos perigos da viagem e, especialmente quanto a Lázaro, foi-lhe dito que já era tarde demais. Como Ezequiel, Jesus, porém, não era preso, era móvel. Então viajou. Até o pessimista Tomé se rendeu: Vamos lá, gente, vamos morrer com ele (Jo 11.16).
Paulo, em Romanos 8.6-11, também faz sua viagem. Se ficarmos com a imagem do drone, usando, porém, o nome brasileiro, VARP – Veículo Aéreo Remotamente Pilotado, vamos perceber que ele acentua a importância da pilotagem: podemos ter a mente “controlada” pela natureza humana ou pelo Espírito de Deus, diz ele na versão da NTLH. Sendo assim, existe uma pilotagem remota. Há, porém, controvérsia. A versão da ARA fala em “pendor da carne” e “pendor do Espírito”. A versão NAA usa a palavra “inclinação” no lugar de pendor. Achei que o termo grego fronēma afirma que a pilotagem não é remota. O espírito e a carne não são controladores remotos, mas características de uma mentalidade. Assim sendo, esse drone é mais parecido com “zangão” mesmo. Este voa por si só e tem pendor, tendência, inclinação, que pode ser carnal ou espiritual.
2. Viajando do nosso jeito
Depois que Ezequiel comeu o livro, basicamente não pronunciou mais palavras próprias. Seu falar se misturou com o falar de Javé. Sua denúncia, seu anúncio e seu movimento extrapolaram os limites de um profetismo, digamos, convencional. Quero dizer que não se restringiu a denunciar o mal e anunciar a salvação mediante o arrependimento. Para Ezequiel, os bons podem ser piores que os maus (veja o subsídio 1). A derrota está na lógica do comportamento de Israel, que se rebelou (2.2) contra os juízos e os estatutos de Javé, sendo mais perverso do que as nações e os países ao seu redor (5.6). Significa que a sua denúncia não aponta só o mal que ameaça o bem, mas também o bem que se rebela. Em outras palavras, a eleição por Deus não anula possibilidade da perdição. Então não há salvação? Sim, há: um resto escapará da espada (6.8). Ezequiel maldiz e bendiz com a mesma intensidade o bem e o mal, o lado de cá e o lado de lá.
Consequentemente, não há mais possibilidade de fixar Deus no templo ou em qualquer outro lugar. Não é mais possível enquadrar a ação de Deus em um roteiro pré-estabelecido. Que se exploda o templo (cap. 9), pois Deus pode estar na beira do rio com os exilados na Babilônia. Só essa forma de pensar pode nos dar a ideia de que um profeta – filho de sacerdote e, portanto, criado no templo – saiu voluntariamente de Jerusalém para se juntar aos acampados às margens do rio Quebar, com a finalidade de ser triste com os tristes. Assentei-me ali, perplexo, no meio deles (3.15), diz ele. Ou terá sido uma presença virtual?
No contexto da discussão sobre a importância do retorno ou não de missas e cultos aos templos durante a pandemia de 2020, bem poderíamos ter recorrido aos argumentos de Ezequiel, quando fala da presença de Deus junto aos acampados da Babilônia (cap. 10). Vendo o povo secar na beira do rio, como se a única maneira de se hidratar fosse o monte Sião, o profeta vai à loucura e demonstra a possibilidade de ingerir a palavra que faz viver. A vontade de viver e de servir a Deus não pode ser adiada para depois do milagre da salvação (quer dizer: para depois da volta ao monte Sião). Numa transposição dessa ideia para o contexto do Novo Testamento, podemos dizer que é possível celebrar culto em qualquer lugar, mas lembremos sempre que para a comunidade cristã o templo é o local para matar a saudade das coisas boas que Jesus fazia e dizia e de reencontrar com ele depois de sua ascensão. Não menosprezemos a onipresença de Cristo após a sua ascensão nem o distinto local de culto! Lembremos que foi em local especial, onde os discípulos se reuniam aos domingos, com portas trancadas, que o Cristo ressurreto apareceu e deu origem à maravilhosa confissão de Tomé, chamando o mestre Jesus de Senhor meu e Deus meu (Jo 20.24-29).
V. 1 – A Bíblia na versão NAA traz sobre o capítulo 37 de Ezequiel o título a visão de um vale de ossos secos. Considero o título incompleto, pois o profeta não tem só uma visão do cenário da destruição em massa.
V. 2 – Deus faz Ezequiel caminhar pelo cenário do vale de ossos. O profeta não é um espectador. Ele é inserido na cena. Ele passa a fazer parte do cenário. É como se fosse uma antecipação da metodologia de “Teatro do Oprimido”, arte criada por Augusto Boal. Vale mais uma vez lembrar que a mobilidade é tema em Ezequiel. É graças à mobilidade que lhe dá o Espírito de Deus que ele não só tem visões, mas pisa o chão quando denuncia e anuncia. Assim como, por ocasião do Natal, as comunidades criam a encenação do presépio vivo, aqui o profeta cria uma encenação viva entre ossos secos. Está presente a cena de caminhar entre ossadas e uma vez e outra, sem querer, chutar um fêmur ou crânio e ouvir o som da batida de osso com osso (subsídio 2), como se fossem baquetas.
V. 3 – Num contexto assim é que Deus pergunta: “Será que esses ossos podem reviver?”. Trata-se, na verdade, de uma afirmação. Ela vem em forma de pergunta porque denuncia a incerteza do povo quanto às possibilidades de agir que Javé tem. A cautela que transparece na resposta do profeta com as palavras tu o sabes é uma confissão de fé que coloca o deixar Deus ser Deus acima da afirmação da certeza de quem crê.
V. 4 – Deus convida o profeta a intervir. Profetize […] e diga-lhes quer dizer “atue no caso”. No v. 11 virá a explicação do sentido dessa intervenção. Há que se ter o cuidado de não interpretar o vale dos ossos secos como uma alucinação com um significado simbólico. O caminhar entre ossos (v. 2) chama para a compreensão de que de fato existia um lugar como um depósito de cadáveres humanos. É uma vala comum sem vala. Por causa dessa realidade “toda a casa de Israel” está morta. O v. 11 amplia a compreensão do processo de destruição do povo. O exílio não é unicamente causa de destruição, é também consequência da rebelião do povo contra Deus. Houve acontecimentos anteriores que levaram a mais essa forma de destruição experimentada no exílio.
V. 5-10 – O conteúdo da profecia traz à lembrança cenas do relato da Criação em Gênesis. Deus cria pela palavra (Gn 1.3). Na criação da humanidade, Deus usa a terra como material. Esse material ganha fôlego pelo assopro de Deus. O profeta Ezequiel está em meio a ossos secos. Esse material ganha vida através de palavras proféticas. Primeiro vem a palavra: profetize para esses ossos e diga–lhes. Depois vem o espírito dos quatro ventos: profetize ao espírito. O poder criador da palavra é algo que merece reflexão num tempo em que há constantes manifestações de descrédito: “falar é fácil, quero ver cumprir”; “a gente fala, fala, mas ninguém ouve”; “os filhos não ouvem seus pais”.
V. 11-14 – No último trecho do texto, a imagem e a realidade do vale dos ossos secos são substituídas pela realidade das sepulturas. No século VI antes de Cristo, a ressurreição dos mortos ainda não fazia parte do credo israelita. O assunto abordado por Ezequiel e a maneira de desenvolvê-lo mostram, porém, que já circulavam ideias a respeito (Brakemeier, 2004). Esse Deus que aparece ao profeta, que anda em qualquer direção (1.16ss; 10.9ss), inclui a dimensão da vida após a morte. Se existia gente desesperançada no caos do exílio, é preciso ser dito: Deus pode ressuscitar esqueletos despedaçados. Não podemos, porém, incorrer no erro de pensar que a ressurreição de Cristo tem paralelos. Não, o Cristo ressurreto é as primícias dos que dormem (1Co 15.20). Isso, no entanto, não impede o profeta, que raciocina com a ajuda da fé em um Deus Criador, de concluir que quem cria pode renovar a partir do nada.
3. Deixando voar
O Grupo de Jovens de Itati – JECI, em seu encontro no Dia da Juventude Evangélica (21/04/2022), leu e comentou o texto de Ezequiel 37.1-14. Expliquei brevemente a tarefa de elaborar este auxílio para a pregação. Após a leitura em grupos, os relatórios trouxeram comentários e considerações como as seguintes: É um texto que trata do assunto da fé e da confiança. Por mais que as circunstâncias apontem o contrário, não podemos desacreditar. Dentro de uma negatividade, é preciso apontar para uma positividade. Quando se tem fé em Deus, nada parece impossível. A vida não se resume a osso, tendão e músculo, que, no caso, estão deteriorados; a casa de Israel (v. 11) está como o vale de ossos, mas nela tem possibilidade de regeneração. Precisamos pensar e agir na convicção de que tudo o que queremos é alcançável.
Cheguei à ideia de solicitar essa leitura aos jovens depois da experiência, na semana anterior, com mais uma Vigília Pascal. A vigília consistiu em passar a noite entre o Sábado de Aleluia e o Domingo de Páscoa acordados, mantendo uma fogueira e momentos de oração nas horas pares (20:00, 22:00, 24:00, 02:00, 04:00 e 06:00). Às 02:00 h recorremos à oração nº 25 “Medo e Tristeza”, que consta nos Auxílios do adendo da Bíblia da IECLB. Após a oração, refletimos sobre os medos e as tristezas de jovens no tempo presente. Ansiedade, insegurança, incertezas, desamparo, depressão foram algumas respostas dos 22 jovens reunidos. Senti algo como uma espécie de grito de “terra arrasada” na manifestação dos jovens. Por isso resolvi recorrer ao texto de Ezequiel como um espelho. E então fui surpreendido com essa confissão de fé a partir da imagem do vale dos ossos secos.
Acho que o profeta Ezequiel é mestre na quebra de lógica de pensamento. O que é isso? É o que o bom contador de anedotas faz. Ele inicia a contagem da história e seus ouvintes vão construindo uma lógica no jeito de pensar. Surpreendentemente o contador muda a lógica no desenvolvimento de sua narrativa e os ouvintes caem na risada. Digamos que os filhos de Israel no exílio tinham seu pensamento baseado em política de resultados. No contexto da expectativa de um retorno do exílio da Babilônia para Jerusalém, notamos que o profeta quebra essa lógica. Um simples retorno não resolverá magicamente a desgraça que o povo vive e que se apresenta de forma horrível no exílio. Percebemos isso bem quando o profeta aborda o assunto do falso provérbio (cap. 12). Então aparece Ezequiel dizendo que a glória de Deus abandona o templo e vai para a beira do rio (cap. 10) ou que os ossos secos ganham vida a partir de uma profecia (37.10). É assim que a negatividade traz positividade, como disse um dos jovens citados.
4. Imagem
O Site Senado Notícia trouxe essa imagem no dia 22/06/2020, quando o número de pessoas mortas por Covid-19 chegava a 50 mil no Brasil. Em seguida, esse número representaria apenas 10% das mortes ocorridas. Hoje, estamos nos aproximando de 700 mil mortes. Isso, em termos de horror, compete com a imagem bíblica do vale dos ossos secos em Ezequiel 37.
Quer me parecer que, segundo a mensagem do profeta, essa imagem forte não tem a última palavra. A mensagem do profeta é profetize para esses ossos secos e profetize ao Espírito […] : venha dos quatro ventos, ó Espírito.
Aqui o chamamento não é para pregar o aspecto horroroso do cenário atual, mas a mobilidade de Deus. Tudo se move, inclusive os conceitos. O pendor, a inclinação, pode migrar da carne ao espírito. A estagnação é inadmissível. A imobilidade, espera passiva por um grande milagre final (retorno para Jerusalém ou salvação depois da morte), não representa perspectiva na mensagem dos três textos de Ezequiel 37, João 11 e Romanos 8. A sede de Sião se sacia no rio Quebar. O Espírito dos quatro ventos traz vida aos ossos secos, que ganham carne e tendões com a profecia.
5. Subsídios litúrgicos
1) Deus me proteja
Canção de Chico César e Dominguinhos
Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde ilumine e zele assim
Caminho se conhece andando
Então vez em quando é bom se perder
Perdido fica perguntando
Vai só procurando
E acha sem saber
Perigo é se encontrar perdido
Deixar sem ter sido
Não olhar, não ver
Bom mesmo é ter sexto sentido
Sair distraído espalhar bem querer
2) Acesse a canção de Tales Roberto e Fabiano “O Vale dos Ossos Secos” em .
Um dia o Senhor me mostrou um lugar, que eu jamais esqueci.
Milhares de ossos espalhados no chão, então sua voz eu ouvi.
Pediu que eu profetizasse ali e que orasse com fé.
Enquanto eu orava um barulho escutei, eram os ossos ficando de pé.
Ossos com ossos eu vi criando pele e tendões.
Deus lhes deu a respiração. Vinham muitos de todas as direções
Há muitos que hoje se sentem assim, vazios sem força e sem fé
Precisam de amor, de carinho e de paz, não importa quem era ou quem é
Somente tu, ó Senhor, conhece o povo que é teu,
Jamais esquece porque existe somente um Senhor e Deus
Bibliografia
KUHL, Curt. Israels Propheten. Bern; München: Francke, 1956.
BRAKEMEIER, Gottfried. Auxílio homilético para Ezequiel 37.1-3,11-14. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2004. v. 30, p. 89-93.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).