Prédica: Filemom 9b-17 (18-21)
Leituras: Provérbios 9.7-13 e Lucas 14.25-33
Autor: Romeu Ruben Martini
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/09/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Contexto
Filemom era um cristão exemplar e animador de uma pequena comunidade cristã (w. 4-7). Por isso, também era uma pessoa muito cara para Paulo (v. 1).
Onésimo era escravo de Filemom. Porém, neste momento (em 56/57 d.C. ou 61/63 d.C.), Onésimo estava foragido. Tornara-se cristão pela ação de Paulo (v. 10) e estava com o apóstolo, servindo-lhe na prisão (v. 13). É por isso que Paulo toca no problema fundamental da sociedade romana: a estrutura de dominação através do sistema de escravidão. Paulo envia Onésimo de volta, não para perpetuar o sistema de escravidão, nem por temer o senhor de escravos Filemom, mas para testar a verdade e a força do Evangelho. O desafio de Paulo é este: quebrar a lógica da estrutura de dominação pela força da agape (solidariedade), restabelecendo uma convivência humana baseada na koinonia (companheiro — Almeida; associado — Comblin, i.é, no sentido mais profundo da palavra comunhão).
Essa epístola é um magnífico testemunho ao mesmo tempo da prática pastoral e da doutrina de Paulo. (Comblin, p. 86.) Disso se compreende que Paulo expressa na sua carta a Fm seu projeto de convivência humana e sua concepção de Igreja (v. 2: eklesia = Igreja). Ou seja: os cristãos inauguraram um mundo novo, baseado em novas relações sociais, regulamentadas pela agape (solidariedade). E a Comunidade cristã/Igreja apresenta-se como lugar privilegiado para ensaiar a prática evangélica proposta por Paulo nesta carta a Filemom.
2. Texto
Uma leitura mais detalhada mostra que a tradução de Comblin expressa com maior fidelidade o que Paulo propôs a Filemom. Eis sua tradução:
(9b) Aqui estou, eu, Paulo, ancião, e agora prisioneiro de Cristo Jesus, (10) venho assumir a causa do meu filho Onésimo, que gerei na prisão. (11) Outrora ele foi para ti um bem inútil, mas agora ele vai ser um bem útil para ti e para mim. (12) Mando-o de volta para ti: ele é as minhas entranhas. (13) Eu queria segurá-lo comigo para que no teu lugar me servisse nesta prisão que sofro pelo Evangelho. (14) Mas sem o teu consentimento nada quis fazer, a fim de que o bem que fazes não seja feito por necessidade e sim por liberdade. (15) Talvez tenha sido retirado de ti por um pouco de tempo a fim de que o recuperasse para sempre (16) não mais como escravo, mas como algo superior a um escravo, como irmão solidário, o que é muito melhor para mim sobretudo, mas igualmente para ti, segundo a carne e segundo o Senhor. (17) Se me consideras teu associado, recebe-o como se fosse a mim mesmo.
Destaco estes aspectos:
V. 9b — Na auto-representação a Filemom, Paulo reporta-se a sua vida de perseguição, sofrimento e prisão (conf. também Ef 3.1; 4.1; Cl 4.18). Só é possível entender Paulo e sua definição de Evangelho à medida em que se perscruta sua prática apostólica e as consequências daí decorrentes.
V. 10 — Solicito-te (Almeida) = venho assumir a causa de (Comblin). Dois aspectos são fundamentais:
a) já solicito-te (peço, exorto, insisto, sugiro) caracteriza uma linguagem não-agressiva. Paulo não vai fazer algo com a imposição da autoridade que ele como apóstolo teria para com Filemom. Se Filemom atender o pedido de Paulo, que o faça não pela lei, por vontade alheia, mas livremente, pelo impulso da agape.
b) A tradução de Comblin mostra que Paulo não faz algo por mera piedade, mas motivado pelo sentido mais profundo que a palavra solidariedade expressa.
V. 11 — Ver utilidade num escravo é a mesma coisa que enxergar utilidade naquilo que Saulo fazia a serviço do Império Romano. Paulo deseja também aqui apontar para a inversão de valores que ele mesmo havia feito: O que eu considerava lucro, agora eu considero perda/merda (Fp 3.7-8).
V. 12 — Minhas entranhas — esta expressão relaciona-se com o que se afirma acima na análise do v. 10b. Quando Filemom enxergar Onésimo, será como se estivesse enxergando o próprio Paulo. O que Filemom fizer com Onésimo estará fazendo com o próprio Paulo.
V. 13 — Eu queria, mas não quero, não vou fazê-lo! A necessidade de Paulo é grande. Ele está na prisão. Mas nem assim ele se arroga o direito de reter Onésimo pela força, pela autoridade pura e simples.
Verdade é que com isso Paulo vai quebrando pelo próprio exemplo as relações de dominação. A agape quebra estas relações. Só que ela não pode ser imposta. E se Paulo não se sente no direito de exigir… que direito terá Filemom? Por isso…
V. 14 — … Paulo nada fará sem o teu consentimento. Paulo deseja desafiar Filemom para que receba Onésimo como irmão e associado, mas se nega a impor tal objetivo. Aqui faz bem lembrar Gl 5.1! Se Filemom fizer algo em direção ao que Paulo está propondo, que o faça livremente, sem constrangimentos. A relação senhor-escravo é o terreno privilegiado em que se manifesta a força do Espírito e a soberania de Cristo. (Comblin, p. 93.)
V. 15 — Faz bem analisar uma forma de convivência ou relacionamento humano à distância. É fácil criticar o mau desempenho e os defeitos da moça que limpa nossa casa, cuida dos filhos e f az a comida. Só quando ela não veio na segunda-feira é que se percebe o quanto ela faz e vale e o quanto, de fato, ela poderia ser considerada gente ao invés de doméstica.
V. 16 — Eis o teste: será Filemom capaz de mostrar que a agape cristã é capaz de superar todas as oposições sociais e de desfazer a dominação social da escravatura. (Comblin, p. 87.) Paulo chega ao ápice de seu desafio: que Filemom não mais enxergue em Onésimo um escravo (mesmo que irmão no Senhor), mas um irmão solidário (irmão na carne). Se Onésimo voltar e continuar como escravo… os dois até poderão ser irmãos no Senhor. Isso, porém, ainda não é o suficiente! É preciso chegar ao ponto de ser irmão também na carne. Conseqüentemente o último também não existe, i. é: ser irmão no Senhor implica ser irmão na carne. Do contrário, não se é irmão ou irmã no Senhor.
V. 17 — Koinonon — recebe-o como companheiro (Almeida. É também a expressão usada entre os participantes dos movimentos populares!); associado (Comblin) — esta palavra reforça a expressão irmão na carne (v. 16) e aponta para o fato que doravante as relações de dominação entre Filemom e Onésimo foram destruídas na sua realidade concreta e material.
3. Meditação
Antes tarde do que nunca. Aplica-se bem este dito popular à decisão de incluir a carta a Fm na série de perícopes para a pregação em 1992.
O tempo passou. As estruturas de dominação mudaram e foram aperfeiçoadas. Mas a problemática que a carta a Fm levanta continua viva, muito viva em nossa sociedade. Abordo-a em dois níveis:
a) nas relações entre capital e trabalho a escravidão continua nos seus métodos aperfeiçoados. Creio que maiores detalhes são dispensáveis;
b) nas Comunidades cristãs/Igreja também continua a dicotomia criada e alimentada entre irmão/irmã da fé e irmão/irmã na carne. Vamos direto ao que Paulo propõem. A força motriz é a agape. Comblin a traduz por solidariedade. Eu concordo. Significa dizer que agape expressa um tipo de relações sociais suscetível de gerar uma sociedade nova (p. 92). Através da ágape o Evangelho mostra que irmão/irmã a gente não é só na intenção, na mente, mas de fato, no concreto, na carne. É isso que deveria expressar a palavra amor comumente usada na tradução de ágape.
A partir daí poderemos montar este esquema:
1. agape -> 2.koinonía -> 3.ekklesia.
A solidariedade (1) cria novacomunhão/novo relacionamento/fraternidade (ao pé da letra) (2) e a Comunidade cristã (3) é o grupo privilegiado com a possibilidade de viver esta comunhão. Comunidade como grupo de contestação à sociedade (Rm 12.2)! Quando, portanto, vejo (fato concreto) uma família de agricultores receber um andarilho surdo-mudo com mais de 65 anos como se fosse um de seus filhos ou seus próprios pais; quando vejo seu esforço em providenciar a aposentadoria para este andarilho; quando vejo que não mais atentam para aquelas vozes que dizem: Bah! é perigoso pegar uma pessoa assim! E se ele morrer na tua propriedade? E se… e se…! Quando constato que esta atitude é séria, sem lucro algum, aí concluo que a agape está fermentando a massa.
Quando vejo que treze famílias de agricultores/agricultoras, membros de uma Comunidade, que ouviram a vida inteira discursos bonitos sobre amor, perdão, paz, entendimento, vida nova, enquanto que a vida na Comunidade e na localidade ia piorando cada vez mais em todos os níveis, agora se unem e formam uma associação e aí partilham suas dificuldades e tentam em conjunto montar um mosaico que aponte possíveis caminhos em busca de VIDA melhor, digna… concluo que a agape está fermentando a massa.
Sermos irmãos/irmãs quer na carne, quer no Senhor — significa que a agape verdadeira quebra a palhaçada muito celebrada entre nós, nas Comunidades: queremos ser irmãos/irmãs na hora da Santa Ceia, mas no dia-a-dia cada um briga pelo que é seu. A agape visa quebrar a dicotomia criada e pouco questionada entre irmão/irmã na fé irmãos/irmãs no sentimento e irmão/irmã de fato. Na verdade Paulo desafia Filemom a viver a utopia que hoje cantamos e que em muitos lugares vemos acontecendo: Vai ser tão bonito se ouvir a canção cantada de novo. No olhar da gente a certeza do irmão/irmã, reinado do povo.
É fundamental em tudo isso registrar ainda:
1°) Fé autêntica expressa-se em agape. Filemom tinha fé (v. 5). Faltava-lhe dar a esta fé a devida expressão. Em Onésimo apresentava-se a possibilidade concreta para que isso viesse a acontecer. Embora eu acredite que possa existir agape sem fé (esqueçamos esta questão aqui), certo é que fé sem agape é palhaçada.
2°) Conseqüentemente agape não pode ser imposta. Lembremos aqui além de Gl 5.1 o texto para leitura, conforme Pv 9.7-13. Repreender meramente um patrão ignorante em assuntos de fé que para com seu empregado segue as regras normais fixadas para a relação capital X trabalho; repreender simplesmente o nosso membro que pela ignorância vê no negro um ser inferior, resulta em rolo (Pv 9.10). Paulo via urna chance com Filemom porque este era temente a Deus. Era sábio. Agape só nasce da liberdade pela força do Espírito. Esbarramos aqui numa dificuldade enorme: Como estudar o tema de ano da Igreja da gente, como interpretar e contextualizar o Pai-Nosso na perspectiva do povo oprimido quando ouvintes do culto, participantes do grupo, presbíteros tiveram a última e melhor formação cristã de sua vida na época do ensino confirmatório, aos 12/13 anos?
3°) Lc 14.25-33 destaca a radicalidade do discipulado. V. 26: aborrecer (Almeida); amar mais (Bíb. Ling. Hoje); desapego completo (Bíblia de Jerusalém). Este é o desafio lançado a Filemom: amar mais o escravo (de tal forma que não seja mais escravo, mas irmão/companheiro/associado) do que o lucro que este lhe pode dar; aborrecer os interesses dos colegas ‘donos de escravos’ em favor da vida de um ser humano.
4. Sugestão para a pregação
4.1. Fazer duas breves encenações com as mesmas pessoas:
1a) Ao redor de uma mesinha colocada defronte ao altar encontram-se, por exemplo: um(a) que é pastor(a), uma agricultora, um operário(a), um funcionário de abastecedora de combustível (com seu macacão!), alguém de terno e gravata, uma moça com roupa bem simples, uma senhora bem vestida, enfim: represente-se a terra dos homens pensada em pirâmide. O pastor ou a pastora simula a celebração da Santa Ceia.
2°) O mesmo grupo é redistribuído em subgrupos, cujas cenas destacarão, por exemplo: — a patroa dando ordens à doméstica de vassoura na mão; — o operário sentado cabisbaixo diante das exigências (gesticuladas) do patrão no escritório; — o agricultor, sua esposa e filhos com a mochila na mão, olhando para trás, vendo o latifundiário sorridente e satisfeito.
A segunda cena pode dar rolo. Chocar-se-ia com a orientação de Pv 9.7-13? Neste caso, proponho a 3a opção em lugar da 2a: encenar os sinais visíveis da agape descritos acima em 3. Meditação.
Acho que tudo depende da situação da Comunidade. O contexto da mesma ajudará a dizer o que é melhor: encenar Ia e 2a ou a 3a.
4.2. Abordar de forma resumida o desafio que Paulo lança a Filemom. Palavras-chave continuam sendo agape, koinonia, ekklesia.
4.3. Desenvolver esta pregação da Palavra como sinal de esperança. Numa sociedade marcada pela ação de forças que ferem a dignidade humana, cujos reflexos se fazem sentir na vida da Igreja, Paulo desafia e diz que é possível ensaiar agape.
5. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Ler parte de um Sl que motiva para o louvor.
2. Confissão de pecados: Deus criador! Diante de teu altar é fácil dizer que somos irmãos e irmãs em Cristo. Suportamos ouvir falar em amor, perdão, companheirismo. A complicação começa e continua lá fora, na vida, nas relações de trabalho, na vizinhança. Lá normalmente seguimos orientações que mantêm nossa teoria presa dentro da igreja. Isso são sinais da nossa vida marcada pelo pecado. Por isso, tem piedade de nós, Senhor.
3. Oração final: Uma oração e culto bem preparados (melhor ainda se previamente compartilhado com um grupo!) suscitarão motivos suficientes para a oração. Ótimo é abrir espaço para a participação da Comunidade. Por exemplo: após cada agradecimento todos/todas: Obrigado, Senhor. Após cada prece: Escuta, Senhor, a nossa oração.
6. Bibliografia
COMBLIN, J. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filemon. Comentário Bíblico, Vozes, Imprensa Metodista, Editora Sinodal, 1986.