Caminhada cristã e escravidão
Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Filemon 1-21
Leituras: Deuteronômio 30.15-20 e Lucas 14.25-33
Autoria: Uwe Wegner e Carla Andrea Grossmann
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/09/2022
1. Introdução
A Carta a Filemom gira em torno do destino a ser dado a um escravo (citado duas vezes como doulos no v. 16 e traduzido incorretamente por Almeida como “servo”), Onésimo, que se encontra junto de Paulo e de cujo senhor, Filemom, se havia afastado. Antes de interpretarmos a carta em sua mensagem teológica, apresentaremos brevemente a situação dos escravos no Império Romano e as principais hipóteses relacionadas com os destinatários, local da redação e motivos para o afastamento de Onésimo do seu senhor.
a) A situação dos escravos em geral
O dicionário Houaiss define “escravo” da seguinte forma: “que ou aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor, a quem pertence como propriedade”. Detalhes sobre essa submissão foram consultados em livros como, p. ex., GIORDANI, M. C. História de Roma. Petrópolis: Vozes, 1987. (Antiguidade clássica II). p. 194-208. (Cf. também os dados apresentados no artigo do Hoefelmann no PL 29, p. 254ss). De fato, juridicamente, os escravos eram considerados uma coisa (res), “instrumento” falante (instrumentum vocale), não possuindo personalidade jurídica (servus nullum caput habet), estando sujeitos ao poder absoluto (dominica potestas) dos seus senhores. Esse poder conferia aos senhores o direito de receber os bens, posses e os frutos do trabalho escravo (incluindo seus filhos e suas filhas), de utilizar-se deles como quisessem, de castigá-los, vendê-los, abandoná-los ou mesmo libertá-los. Ou seja: o poder dos senhores estendia-se tanto sobre as pessoas dos escravos como sobre seus bens, sendo que sobre as pessoas tinham, inclusive, o poder de vida e/ou morte. Filhos de escravos pertenciam, como eles, aos seus senhores. Era-lhes vedada a constituição de famílias legalmente constituídas e também não tinham direito a dias de repouso.
Entre as principais causas da escravidão constam o aprisionamento em guerra, a insolvência diante de dívidas contraídas, declarações fraudulentas ou falsas em recenseamentos, deserção do serviço militar, venda pelos pais etc.
O maior contingente de escravos era empregado em trabalhos agrícolas. Ali, nas minas e entre remadores de embarcações mercantis ou de guerra era onde se encontravam as condições especialmente degradantes desse trabalho. Muitos escravos eram também empregados em oficinas artesanais e nos diferentes trabalhos domésticos. Pelo Estado eram aproveitados em grandes construções de prédios públicos, vias, pontes, templos, aquedutos, cargos secundários da administração estatal etc. Escravos em melhores condições eram os que trabalhavam nas casas, administrando por vezes as propriedades e os negócios de seus senhores, podendo colaborar também na educação dos seus filhos. Esses, às vezes, conseguiam, inclusive, juntar dinheiro ao longo do tempo para comprar com recursos próprios sua alforria.
Havia três modos para um escravo adquirir liberdade de sua condição servil no Império Romano. A manumissão, alforria ou simplesmente a libertação da escravidão poderia advir (a) por vontade dos imperadores ou governantes, (b) por benefício da lei, em que se concedia a liberdade por decreto ou testamento, e (c) por concessão livre dos senhores. A concessão da liberdade, muitas vezes, era colocada em perspectiva para um maior estímulo no trabalho. Deve-se considerar, contudo, que, mesmo na condição de liberto (libertus, pl.: liberti), um escravo nunca mais conseguia recuperar a cidadania plena de um ingenuus (= indígena, nativo, natural, autóctone; em sentido lato: nascido livre, de condição livre [pl.: ingenui]), ou seja, daquele que nascera em liberdade (essa situação se modifica unicamente para os filhos de libertos a partir do século II a.C.). Escravos libertos tinham direito de votar, mas não podiam ser votados para as magistraturas (obtinham o ius suffragii, carecendo, porém, do ius honorum). Em verdade, todo escravo liberto ficava devendo favores e certas obrigações ao seu ex-senhor, ao seu patronus, até o fim de sua vida: esses favores/obrigações eram designados de obsequium (compreendia o respeito e consideração ao antigo senhor, “não podendo intentar contra o mesmo nenhuma ação jurídica”), operae (trabalhos domésticos e “certo número de jornadas de trabalho, de acordo com o ofício, a arte ou profissão exercida pelo liberto”) e bona (compreendia o direito dos ex-senhores sobre a totalidade dos bens, em caso de morte do liberto sem testamento ou herdeiros).
Para escravos desobedientes ou insubmissos que, como talvez Onésimo, fugiam ou abandonavam ou se ausentavam indevidamente da casa de seus senhores e que fossem identificados por meio de cartazes, caçadores de escravos ou por outros meios quaisquer, havia uma série de penalidades possíveis previstas. As mais recorrentes e que podiam ser praticadas impunemente contra eles eram todo tipo de privações (de comida, descanso, agasalho etc.), o temido envio para o trabalho em pedreiras e minas, ou então mutilações, acoitamentos, espancamentos e, em certas épocas, até mesmo a morte.
b) Destinatários e local da redação
A Carta a Filemom muito provavelmente foi endereçada à cidade de Colossos. Essa tese baseia-se na coincidência de oito nomes mencionados em Filemom (1-2,23-24) e Colossenses (1.1; 4.7ss), mesmo que o nome de Filemom não esteja explicitamente mencionado em Colossenses (ao contrário de “Onésimo”: cf. Cl 4.9). A carta é enviada a Filemom, Áfia (por muitos, aventada como esposa de Filemon), Arquipo e à igreja que se reúne na casa de Filemom (Fm 1-3). Mas Paulo escreve de onde? São três as respostas possíveis: de Roma (At 28.16-31), Cesareia (At 23.23 – 26.32) ou Éfeso (com base nos textos de 1Co 15.32; 2Co 1.8s; 11.23), locais em que Paulo esteve preso por mais tempo. A melhor hipótese nos parece ser a de Éfeso, distante uns 170 km de Colossos.
c) A situação do escravo Onésimo
Não fica clara a situação de Onésimo na carta. Parece ter conhecido Paulo na prisão (v. 10). Ele tinha cometido algum delito para ser preso no mesmo lugar da prisão de Paulo? Ou foi visitar Paulo deliberadamente em sua prisão para que esse viesse a interceder por ele junto a Filemom? Difícil de responder. De qualquer forma, o encontro dos dois na prisão deu ocasião a Paulo para convertê-lo ao cristianismo (v. 10). Uma vez convertido, Paulo demonstra interesse em que Onésimo participe e ajude na obra missionária realizada pelo apóstolo (v. 13). Mas para que coisa assim fosse possível, Filemom, o senhor do escravo, teria que lhe conceder primeiramente a alforria. Paulo não pode nem pretende passar simplesmente por cima das leis de escravidão vigentes (v. 14). Por isso ele intercede a Filemom pela alforria/libertação de seu escravo Onésimo na carta (v. 12-14).
Nos v. 18-19, um detalhe tem chamado a atenção dos intérpretes. Paulo fala que se Onésimo causou dano ou deve alguma coisa a Filemom, ele mesmo fará questão de pagar. Daí costuma-se inferir que Onésimo provavelmente teria furtado bens ou dinheiro do seu senhor e fugido. Mas isso não passa de conjetura. A frase é condicional: “se…”, “caso…”. É só uma conjetura! Pode ser, claro, que Onésimo tenha de fato roubado dinheiro ou bens de Filemom, se evadido para a cidade onde Paulo se encontrava preso, e que Paulo, depois de tê-lo convertido, estivesse procurando alcançar o beneplácito do seu patrão, mandando-o de volta. Do contrário, as possibilidades que se ofereciam para um escravo fugitivo eram, em resumo: (a) juntar-se a bandidos e ladrões; (b) submergir nas subculturas das grandes cidades, com chance de voltar a ser empregado; (c) evadir-se para um outro país, ou (d) procurar asilo temporário num templo. Mas também é possível que Onésimo simplesmente se tenha ausentado de Colossos a serviço e/ou mando de Filemom (ou devido a outro motivo não mais identificável) por um tempo mais prolongado do que o previsto, causando assim eventuais danos ou prejuízos ao seu patrão por ausência de atividade em seu local usual de trabalho.
2. Interpretação
V. 1-3 – Saudações iniciais de Timóteo e Paulo a Filemom, o irmão amado e cooperador, e à comunidade que se reúne na casa de Filemom.
A carta é enviada por Paulo e Timóteo não só a Filemom, a quem chama de irmão amado e cooperador, mas igualmente a Arquipo, companheiro de lutas, a Áfia e a toda a comunidade que se reúne na casa de Filemom. Que consequências tem esse envio da carta a toda a comunidade da casa de Filemom? A consequência é que, dessa forma, Paulo e Timóteo induzem ele a responder pela sua fé publicamente e também a vivê-la publicamente, pelo menos diante de toda a comunidade. Isso é muito edificante, pois impede que a gente tenha duas caras: uma dentro e diante da igreja, e outra na esfera privada. Há muitos cristãos que são assim: na igreja e na celebração da Santa Ceia repartem o pão, fora das igrejas não conseguem doar um quilo de alimentos para os mais necessitados; nos bancos das igrejas dão-se o abraço da paz, mas dentro e fora de casa as brigas e os desentendimentos ficam cada vez piores.
V. 4-7 – Paulo elogia Filemom pela fé que o senhor de escravos tem por Jesus e pelo amor que dedica a “todos os santos”, ou seja, aos membros da sua comunidade caseira, pelo que agradece a Deus.
O elogio dedicado por Paulo a Filemom tem base em sua fé em Jesus e em seu amor aos membros de sua comunidade. A finalidade do agradecimento a Deus vem descrita no v. 6: Para que a comunhão/koinonía da tua fé se torne eficiente no conhecimento de todo o bem que há em vós, para Cristo. A interpretação desse versículo é altamente controvertida. “Comunhão” é o ato ou efeito de “comungar”, ou seja, de coparticipar, tomar/ter parte com outros de ou em alguma coisa como, p. ex., sentimentos, convicções, modos de pensar e agir, crenças, fé, ações etc. Por isso mesmo, como escreve Lohmeyer (1956, p. 17), o termo religioso da “comunhão” não representa simplesmente os fortes laços que unem irmãos e irmãs crentes entre si, mas
a participação que o indivíduo recebe num valor objetivo ou que ele oferece a um “irmão” em determinado ato. No primeiro sentido passivo, ela está direcionada para e fundamentada sobre o objeto da fé, seja este o Senhor, o Espírito, o corpo e sangue de Cristo, o evangelho […]; no segundo sentido ativo ela está direcionada para o irmão crente. No primeiro caso, passivo, ela se manifesta através de recebimento e aceitação de coisas que provêm de Deus; no segundo, ativo, através de ajuda e serviços, através de “esmolas” ao próximo.
Parece-nos que no v. 6, bem provavelmente, “comunhão” esteja empregada em seu primeiro sentido, passivo: “comunhão da fé” expressaria então toda a participação que Filemom e a comunidade em sua casa receberam e recebem em forma de fundamento de fé: eles têm em comum a Cristo como Senhor e Salvador, o Espírito como iluminador e animador dos dons e o evangelho como orientação para pensar e agir.
Só que, de acordo com o v. 6, essa fé comum no amor de Cristo, na animação do Espírito e na orientação ética do evangelho deve agora mostrar sua eficácia no “conhecimento de todo o bem” existente na comunidade. Ou seja, o amor de Cristo por nós deve nos tornar eficazes para a prática de nosso amor em favor dos irmãos e irmãs. O apóstolo se refere aqui ao conhecimento de todo o bem existente em vós! Paulo é um fervoroso incentivador da prática do bem (Rm 12.17,21; Gl 6.9-10; 1Tm 6.18; cf. também Tg 4.17 e 3Jo 11: aquele que pratica o bem, procede de Deus). Para o apóstolo, o “bem” (agathos) é tudo aquilo que genuinamente provém do amor (agape), mas não de qualquer “amor”, e sim do amor vivido e pregado por Cristo. É por isso que, para Paulo, o amor redentor de Cristo requer “conhecimento” (epígnōsis) para se tornar eficaz. Nem todo conhecimento interpreta Cristo de forma correta, autêntica. Basta só olhar ou considerar as e os pastores das diferentes igrejas ou, inclusive, de uma mesma igreja. Por isso não adianta só reafirmar a necessidade de praticar o bem. Precisa-se dizer, ao mesmo tempo, de que “bem” estamos falando, que práticas de “bem” estamos defendendo.
Em 2021, houve pastores e pastoras que acharam que o “bem” seria deixar igrejas abertas para a prática de cultos/missas presenciais; outros e outras já criam o contrário; uns achavam que não era necessário usar máscaras, Deus haveria de providenciar a cura caso houvesse problemas com a Covid-19; outras já não concordavam: “Se não usa máscara porque Deus protege, para que deseja uma arma?” (Mara Parlow, Facebook, abril de 2021) etc. Esses são só poucos exemplos para mostrar que o “bem” a que Paulo se refere não é óbvio, pelo menos não o “bem” que se espera de um cristão: requer conhecimento, sabedoria, depuração, aclaramento. E quem é que vai dar esse aclaramento, essa depuração? É Jesus, sua obra e seus ensinamentos.
O v. 7 não faz mais parte do agradecimento direto de Paulo a Deus. Ele repete, em forma de constatação, aquilo pelo qual já havia sido agradecido a Deus no v. 5: o amor de Filemom, que chegou a consolar as entranhas, ou seja, o mais íntimo dos seres participantes de sua comunidade caseira.
V. 8-20 – O pedido de Paulo para que Filemom receba o escravo Onésimo como irmão amado […], tanto na carne como no Senhor.
Nos v. 8-12, Paulo contrapõe, por um lado, a parresía/ousadia, o destemor (aqui, inclusive, talvez até no sentido de “a autoridade”) para epitassein/ordenar/exigir de Filemom o que convém, e, por outro, o ágape/amor, com o qual não exige/ordena, mas tão somente parakaléo/solicita/pede (v. 9 e 10) a Filemom. Significa que o amor não funciona com ordens e mandados, ele trabalha com convicções e em liberdade, o que o apóstolo reafirma mais uma vez no v. 14: o bem concreto que Paulo espera ser realizado por Filemom não pode ser imposto, forçado, mas requer espontaneidade, livre vontade. Paulo pede a Filemom por Onésimo, a quem denomina de filho gerado (= convertido) por ele na prisão (Paulo assume aqui a “paternidade espiritual” de Onésimo: v. 10) e splanchma mou/minhas entranhas” (v. 12 [cf. o mesmo termo também nos v. 7 e 20] para designar o coração do apóstolo, isto é, seu “centro de sensibilidade, afeto, ternura” (Houaiss), sua “personalidade total no nível mais profundo” (MARTIN, 1984, p. 168). Isso é uma grande identificação, ou seja, Paulo dá a entender que aquilo que vai pedir por Onésimo é praticamente como se estivesse pedindo por ele próprio (cf. v. 17). Afirma ainda que Onésimo antes havia sido inútil, mas que atualmente é útil tanto ao apóstolo como a Filemom. Pode-se interpretar essa inutilidade de antes assim: “A utilidade que constitui o objeto escravo é uma falsa utilidade. Ela é na verdade ‘inutilidade’, ela é o contrário de um bem” (COMBLIN, 1986, p. 98). Mas também é possível que Paulo considere Onésimo como “inútil” no passado por ter causado – concretamente – algum dano ou dado algum prejuízo ao seu senhor (v. 18).
V. 13-16 – O pedido de Paulo para que Onésimo seja recebido por Filemom como irmão amado, tanto na carne como no Senhor.
Os v. 13-14 são uma espécie de entrelinhas, em que o apóstolo confessa o desejo de ter podido conservar Onésimo consigo – em vez de Filemom (em teu lugar) – para diakonein/praticar diaconia, ou seja, para auxiliá-lo nas algemas do evangelho, isto é, para auxiliar Paulo como preso em suas necessidades físicas e materiais, mas também na divulgação do evangelho dentro e fora da prisão (cf. At 13.5; 24.23; Fp 2.25ss). Mas, como assim hyper sou/em teu lugar? Por que acha Paulo que o lugar de Filemom seria do seu lado nas algemas do evangelho? A ideia é, provavelmente, que Filemom “devia” a Paulo tais serviços como gratidão “que o convertido deve ao Apóstolo que lhe deu a vida nova” (COMBLIN, 1986, p. 98), ou seja, como gratidão à fé em Cristo, a quem foi conduzido pelo apóstolo (cf. v. 19). Mas, como afirma Paulo, está mandando primeiramente o escravo de volta para que o aludido (agatos) “bem” (Almeida = “bondade”; Bíblia Sagrada: “benefício”; Bíblia de Jerusalém: “boa ação”) que Filemom poderia fazer não resultasse de imposição, mas de livre vontade, uma característica do agape/amor.
Há males que vêm para o bem? Nos v. 15-16 Paulo parece defender essa tese. A formulação do v. 15 é toda cuidadosa. Ela não fala em fuga ou coisa parecida de Onésimo, mas num eventual ato de afastamento deliberado dele de Filemom, mas isso também só por determinado tempo. Mas, afinal, quem poderia tê-lo afastado de Filemom, se ele não fugiu? Paulo provavelmente está empregando aqui um “passivo divino”; quando diz talvez ele tenha sido afastado, em verdade o que estava querendo dizer é que talvez ele tenha sido afastado temporariamente por Deus! E o benefício feito por Deus com esse seu agir providencial de separação foi que, com a conversão de Onésimo ao cristianismo, os laços de fé e união entre Onésimo e Filemom seriam perenes. A fé não une só para essa vida, une para a eternidade (a fim de que o recebesses para sempre).
O v. 16 complementa a novidade do aspecto temporal da união entre Filemom e Onésimo com a novidade do aspecto cristológico e social. A incorporação de Onésimo ao cristianismo tem por consequência que ele passa a se tornar irmão de fé com os demais cristãos. Por meio de Cristo não recebemos um espírito de escravidão, mas o espírito de adoção, que nos reúne numa nova família, a família dos filhos e filhas de Deus (Rm 8.12-17; Gl 4.3-7). A consequência é que viramos irmãos e irmãs, ou como diz Paulo aqui: irmãs e irmãos amados no Senhor, em Cristo. Se o amor de Cristo por nós nos irmana na fé, nosso amor mútuo e recíproco nos irmana econômica e socialmente. É bem a isso que o apóstolo se refere quando diz que o afastamento temporário de Onésimo foi para que ele pudesse ser recebido como irmão amado no Senhor e na carne. Esse como irmão amado no Senhor e na carne significa que o apóstolo espera por uma fraternidade cristã entre Filemom e Onésimo que não seja só de “coração”, só “espiritual”, mas também “carnal”, ou seja, que abarque igualmente toda a materialidade da vida em seus múltiplos aspectos econômicos, sociais, culturais, trabalhistas, empregatícios etc. Assim também Comblin: quando Paulo explicita que Onésimo seja recebido não mais como escravo, mas como irmão amado no Senhor e na carne, significa que a “materialidade da relação humana senhor-escravo […] fica destruída” (COMBLIN, 1986, p. 99). Em outros textos Paulo também alude a essa verdadeira revolução nas relações entre as pessoas quando a fraternidade cristã é assumida com todas as suas consequências: são dissolvidas as antigas distinções de raça, cultura, religião, classe social etc. (Gl 3.28; 1Co 12.13; Cl 3.11). Em textos das cartas deuteropaulinas, geralmente, essa radicalidade não é assumida, optando-se mais por uma mera humanização das relações senhor-escravo, como nos mostram Cl. 3.22 – 4.1; Ef 6.5-9; 1Tm 6.2; Tt 2.9s; 1Pe 2.18-25. Na mesma linha vai também o AT, que admitia escravos e escravidão, embora com várias leis para coibir abusos (Êx 21.1-11,16,26s; Dt 15.12-24; 23.15-16; Lv 25.8ss,39ss etc.). Entre as comunhões religiosas da Antiguidade (essênios, religiões de mistérios, outros cultos pagãos da época do AT/NT etc.) foram só os terapeutas que praticavam uma real igualdade entre senhores e escravos; certos cultos antigos integravam os escravos às demais pessoas livres em suas celebrações, mas sem a pretensão de real abolição da escravidão fora dos limites de celebração (STUHLMACHER, 1975, p. 46s). A radicalidade de Paulo está a sugerir que é, sim, possível viver a profundidade do amor cristão também “na carne”, ou seja, também fora dos limites das celebrações e ajuntamentos de louvor e adoração. Do contrário, haverá cristãos de duas caras, duas práticas: uma dentro e outra fora das igrejas.
Os v. 17-20 encerram a carta.
No v. 17 Paulo reforça mais uma vez seu pedido de que Onésimo seja recebido por Filemom como se fosse o próprio Paulo (cf. o v. 12: […] ele, isto é, as minhas entranhas). A condição para que isso aconteça é Filemom considerar Paulo como koinōnós (Bíblia de Jerusalém: “amigo”; Almeida e Bíblia Sagrada da CNBB: “companheiro”; Comblin: “associado”; outras: “parceiro”), ou seja, integrante da koinonía = comunhão cristã. Essa comunhão que, como já vimos no v. 6, é tanto a comunhão passiva naquilo que Deus nos concede quanto a ativa, naquilo que nós nos concedemos reciprocamente em amor e serviços. Nos v. 18-19a Paulo atesta de próprio punho que devolverá ou pagará qualquer prejuízo que porventura Onésimo tenha causado ao seu senhor. Com isso ele procura evitar eventuais castigos pelos erros cometidos que Onésimo poderia receber em seu retorno como escravo. Para que Filemom não leve em conta as dívidas do seu escravo Onésimo, Paulo o lembra ainda do seu próprio procedimento: também ele, o apóstolo, que converteu Filemom à fé cristã (v. 19: […] também a ti próprio te deves a mim), poderia considerar-se no direito de “cobrar” pela fé que Filemom lhe deve a partir de sua conversão, mas não o faz. Paulo, portanto, abdica dos seus direitos: o mesmo ele espera que Filemom faça com Onésimo como escravo, depois de ter se tornado irmão amado (v. 16).
O v. 20 reforça mais uma vez a esperança de Paulo de que seu coração será reconfortado e alegrado com a acolhida que Filemom dispensará ao retorno do seu escravo.
Síntese
V.1-3 – Esses versículos introdutórios nos remetem às antigas comunidades eclesiais caseiras. Eram comunidades em que geralmente as mulheres tinham papel ativo. A menção explícita de Ápia fala nesse sentido. Ela dificilmente é a esposa de Filemom, pois nesse caso Paulo terminaria o v. 2 mencionando a igreja que está em “vossa”, e não, como no texto, em “tua” casa. Nessas comunidades caseiras os relacionamentos também são muito transparentes, pois todos se conhecem. Por isso Paulo, embora trate de assunto concernente particularmente a um só dos escravos de Filemon, dirige a carta para toda a comunidade! E uma última coisa: Paulo se apresenta como desmios/prisioneiro de Jesus Cristo (cf. v. 9-10,13,23). Aqueles primeiros tempos de cristianismo ainda eram tempos em que o testemunho tinha um elevado preço: podia levar a perseguições, prisões e morte (Mt 5.10-12). As pessoas cristãs não seguiam quaisquer ordens, leis ou costumes que tivessem herdado de tradição ou família ou de governos. Tudo tinha que corresponder ao amor e à verdade de Cristo, do contrário era criticado como egoísmo e não praticado por ser mentira. Isso criava oposições e perseguições. Cristo havia gerado um primeiro amor muito firme e forte; importava não abandonar esse “primeiro amor” (Ap 2.4).
V. 5-7 – Aqui temos um agradecimento de Paulo a Deus pela fé e amor vividos por Filemom em sua comunidade caseira. Esse trecho me lembra de uma reflexão do P. Clovis Lindner (cf. Facebook, dia 23/04/2021, sob o título “Pratique a fofoca reversa”), em que ele realça a importância de nós “bendizermos” as pessoas, isto é, de dizermos/falarmos o bem sobre elas. Pois é justamente isso que o apóstolo pratica aqui: ele “bendiz”, realça, exalta a fé e o amor de Filemom. Faz bem para ele e faz bem para o Filemom.
V. 8-20 – Esses versículos, que compreendem o miolo da carta, contém:
a) Um pedido: que Onésimo, quando retornar ao seu senhor Filemom, seja recebido por ele como irmão amado que se tornou com sua conversão ao cristianismo por Paulo e não como escravo que era anteriormente, o que poderia implicar uma série de castigos e penalidades. Paulo não exige, só solicita (v. 9,14). Por quê? A razão é que a base para essa solicitação é o amor de Cristo (agape), que nos irmanou numa grande família de irmãos e irmãs (Rm 8.12-17; Gl 4.3-7; cf. as várias referências à irmão/irmã na carta: v. 1,2,7,16,20), tendo Deus como pai/mãe (v. 3) e provocando idêntica prática de amor (v. 5,7,9; as pessoas tornam- -se agapetos = “amadas”: v. 1,2,16) e do bem/bondade (agathos: v. 6,14) entre os crentes. Ora, o amor não impera por imposição, mas por livre e espontânea vontade, por liberdade (2Co 3.17; Gl 5.1-15).
b) Duas consequências práticas. A primeira é para dentro das igrejas: a fraternidade conseguida por Cristo não permite mais desconsideração, discriminação ou desatenção para qualquer irmã ou irmão de fé dentro das igrejas e celebrações. A segunda é para fora das igrejas: a fraternidade construída pelo amor vai romper e implodir também “na carne”, ou seja, fora das igrejas, tudo o que nos desune, marginaliza e inferioriza.
c) Um desejo manifesto com todo o cuidado: de Filemom liberar o Onésimo para auxiliar o apóstolo no serviço do evangelho (v. 13). E, ao que tudo indica, esse desejo foi atendido por Filemom (cf. Cl 4.9).
d) A certeza de que Filemom haverá de fazer até mesmo mais do que o apóstolo está lhe solicitando (v. 21).
3. Meditação
À luz da exegese da perícope de Filemom, olhamos para os textos de Deuteronômio 30.15-20 e Lucas 14.25-33. O servir a Deus e pertencer ao Corpo de Cristo exigem de nós uma decisão em favor desse mesmo Deus que promove vida. Ingressar na Terra Prometida implica comprometer-se com uma nova ética, um novo modo de viver e encarar o relacionamento com Deus, com as pessoas e com a terra. Não se trata de uma mera postura piedosa e individual, mas é um discipulado (Lc 14), que espera comprometimento individual e também de todo o entorno, a começar no lugar mais próximo, o lar, e abarcando todas as dimensões do viver.
Preparamos este auxílio homilético no decorrer do ano dois da pandemia por Covid-19. Não há um único aspecto da vida humana e de nossa existência no planeta que não tenha sido afetado. A economia mundial, já combalida, entra em grave colapso. A justiça ambiental – tema estudado pelo CONAJE ao longo de 2021, traz no seu âmago o clamor pela exaustão da natureza, hiperexplorada e poluída. A solidificação de uma visão cada vez mais polarizada e maniqueísta da realidade tem produzido um ambiente degradante de falta de diálogo e intolerância. Há manifestações extremas de violência contra qualquer pessoa ou grupo que não comungue ideias e princípios. É um momento de cacofonia e alarido, onde só se falam todas as versões sobre todas as coisas, e aparentemente não há meios de chegarmos a consensos mínimos, nem mesmo sobre o mais urgente dos assuntos. Tornamo-nos senhores e senhoras de nossas próprias verdades. Somos A verdade sobre todas as coisas.
No exato momento da redação deste auxílio, o Brasil chega a recordes históricos de desemprego (/), aumento da fome (), violência nos lares, no campo, contra pessoas indígenas e contra pessoas LGBTIs.
O fraco engajamento da população brasileira e de outros países na adoção de condutas preventivas à disseminação da Covid-19 tem prolongado a duração da pandemia e tem possibilitado o surgimento de variantes mais mortais e transmissíveis do vírus.
As comunidades passam pela transição do modelo presencial para o híbrido, não sem sofrimento. Há, em alguns momentos, sentimento de desânimo, dificuldades de manter a sustentabilidade dos Campos de Atividades Ministeriais (CAMs), bem como a interrupção ou suspensão de várias atividades, grupos e departamentos. Ao abrir este auxílio, em 2022, o quanto dessa situação terá melhorado, piorado ou permanecido?
O texto da carta de Paulo a Filemom pode nos levar a refletir sobre o tema da escravidão, e como ele se apresenta atualmente: o subemprego, a falta de segurança alimentar, a falta de estabilidade no emprego, nas novas modalidades de trabalho, como a jornada intermitente, que precarizam ainda mais o emprego em nosso país. Também podemos falar da escravidão ideológica produzida por visões maniqueístas e polarizadas da realidade. Por fim, podemos olhar para as maiores vítimas dessa crise humanitária mundial: as pessoas vítimas de desemprego, violência, fome. Diante dessa reflexão, a resposta da comunidade de fé certamente vem da inspiração paulina: pessoas libertas, libertadas das realidades de escravidão, não apenas pela ação piedosa individual, mas por convicção de fé e compromisso de amor, essas são “úteis” para Deus, pois a sua libertação produz uma nova realidade, um novo relacionamento com a comunhão de fé e com a “nova terra” que habitamos (Dt e Lc). Diante de uma sociedade que se apoia em “verdades individuais absolutas”, sobressaem-se a carta de Paulo a Filemom, tão importante ao tratar do tema da libertação da escravidão e do compromisso com Deus, assim como as admoestações e apelos: Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência […] (Dt 30.19b); Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo (Lc 14.33).
4. Imagens para a prédica
A escravidão é um tema controverso até mesmo entre pessoas cristãs. Há pessoas que se dizem cristãs, mas apoiam situações ou realidades análogas à escravidão.
Quais são as pessoas, os grupos e as situações mais afetados pela crise sanitária e humanitária causada pela Covid-19? Agora, um ano antes desta prédica e culto serem preparados, podemos afirmar: mulheres negras, pessoas LGBTIs, povos indígenas e tradicionais (quilombolas e grupos que baseiam seu sustento na agricultura familiar), jovens que moram nas periferias e que têm dificuldade de acesso à formação no sistema híbrido. Essas situações, pessoas e esses grupos, movidos pelo desamparo e pela fome, facilmente, estão sendo empurrados para situações de escravidão. A comunidade de fé que se sabe amada por Cristo não tem dúvida nenhuma de que o seu compromisso é com essas mais pequeninas irmãs e irmãos do Reino.
O movimento de Paulo, em sua carta, também carece do movimento da comunidade cristã, por meio da empatia, da compaixão, da diaconia, que visa aliviar os sofrimentos sem preconceitos, transformar realidades e promover a vigília e escuta atenta e constante em relação a todas as situações de sofrimento.
Seria importante lembrar onde a diaconia está acontecendo, onde pode acontecer. Quem sabe trazer o testemunho de trabalhos e grupos que estão comprometidos com a diaconia transformadora, ligados ou não à igreja, mas que podem envolver, motivar, engajar.
5. Subsídios litúrgicos
Hino: LCI 566 – Que estou fazendo?
Palavra de saudação:
O campo de ação da pessoa cristã é o mundo.
Aqui ela deve colocar a mão na massa,
cooperar e agir,
fazer aqui a vontade de Deus.
Por isso o cristão
não é um pessimista resignado,
mas alguém que vive, no mundo,
alegre e animado. (Dietrich Bonhoeffer)
Súplicas – Kyrie 11 do Livro de Culto (p. 252)
L: Somos igreja amada e carregada por Deus. E Deus nos ama e carrega para darmos testemunho no mundo. Pois é neste mundo que muitas pessoas sofrem, gemem e clamam.
L1: Sofrem, gemem e clamam pessoas por causa do medo e da violência diante das armas.
L2: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque as dádivas de Deus estão injustamente repartidas.
L1: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque há demais governantes que usam a política para favorecer seus compadres.
L2: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque a religião é usada para enganar.
L1: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque o testemunho das comunidades cristãs é tímido.
L: Reunidos em culto, unamos nossas vozes e roguemos ao Senhor:
C: Pelas dores deste mundo, ó Senhor.
Para o momento da interpretação da palavra, se for possível o uso de material audiovisual, sugerimos que se compartilhe, do Portal Luteranos, iniciativas diaconais que sejam promotoras de transformação social. São uma motivação para uma comunidade cristã compassiva e diaconal! Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/organizacao/missao-diaconia>.
Bibliografia
COMBLIN, José. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filêmon. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1986.
HOEFELMANN, Verner. Auxílio homilético sobre Fm 9b-17(18-21). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal. v. 29, p. 254-264.
LOHMEYER, Ernst. Der Brief an die Philipper, an die Kolosser und an Philemon. 11. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1956.
MARTIN, R. P. Colossenses e Filemom. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1984.
MARTINI, Romeu R. Auxílio homilético sobre Fm 9b-17(18-21). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1991. v. 17, p. 201ss.
STUHLMACHER, Peter. Der Brief an Philemon. Zürich: Benziger; Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1975.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).