Permanecer na missão requer parceria
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Filipenses 1.21-30
Leituras: Jonas 3.10 – 4.11 e Mateus 20.1-16
Autoria: Cristina Scherer
Data Litúrgica: 16° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/09/2020
1. Introdução
Quem funda a comunidade cristã na cidade de Filipos é o próprio apóstolo Paulo, entre 49 e 50. Em Atos 16.11-40 narra-se a primeira visita de Paulo àquela cidade, para onde retorna mais duas vezes (cf. 2Co 8.1-6 e At 20.6). Ali o evangelho é anunciado pela primeira vez na atual Europa. A cidade leva esse nome porque era antiga e fora reconstruída pelo rei Felipe II, da Macedônia. Era uma importante colônia romana. Em Filipos ocorreu a conversão da comerciante Lídia e do carcereiro, sendo esse o nascimento da comunidade cristã naquela região.
O que Paulo mais deseja na vida é ser servo de Jesus Cristo e anunciar o evangelho. Todo o resto é para ele perda e lixo (3.8). Paulo agradece aos que colaboram no anúncio (1.5) e participam com ele na defesa e na confirmação do evangelho (1.8,16). Contratempos como prisão e perseguição são vistos como contribuição para o progresso da evangelização (1.12-13). Ele fica triste pelo fato de alguns anunciarem Cristo por inveja e espírito de competição (1.15), mas o que quer é não fracassar na manifestação de Cristo (1.21). Entre os colaboradores no anúncio, Paulo agradece a Timóteo (2.22), Evódia e Síntique (4.3) e toda comunidade de Filipos (4.15).
Paulo encontra-se possivelmente em Éfeso ou Roma, preso (1.7), e dali escreve a carta. A comunidade de Filipos envia Epafrodito para ajudar Paulo materialmente. Quando Epafrodito retorna (2.25ss), Paulo envia a carta com ele a fim de motivar os filipenses a crescer na fé e na comunhão e a persistir no testemunho cristão com alegria. Motiva para uma vida de humildade e unidade, a exemplo de Cristo, e anima para estarem firmes diante das intrigas de inimigos (judaizantes, romanos). Por meio da carta recebida, os filipenses possivelmente foram consolados, pois souberam que quaisquer que fossem os sofrimentos que tivessem de enfrentar, seriam sustentados em meio a tudo; que sofriam pela mesma causa que o companheiro/apóstolo estava sofrendo; que sofriam, não por causa de alguma maldade praticada, ou da qual pudessem ser acusados, mas porque confiavam no Filho de Deus, o Cristo vivo!
2. Exegese
V. 21 – O Cristo vivo pulsava em todo o ser de Paulo. No entanto, diante dos sofrimentos, calúnias, prisões, açoites (cf. 2Co 11.16-33), ele afirma que a morte poderia representar um fim para isso tudo, um alívio físico, psíquico e antropológico. Diante da situação em que Paulo se encontrava, a morte poderia ser um ganho.
V. 22 – A prisão de Paulo é consequência de sua missão, de sua tarefa. Independente de estar livre ou preso, ele coloca sua vida a serviço da evangelização, animando os irmãos. Se partisse para a eternidade, estaria longe desse “vale de lágrimas e dores”, o que para ele parecia mais conveniente. No entanto, pensar só em si mesmo seria uma opção inaceitável, e optar pelos outros, como sempre fizera, o deixava perplexo. Se ele não fizesse grandes esforços, se não usasse seus direitos como cidadão romano, facilmente poderia morrer na prisão. Ele sabia que a escolha não dependia dele mesmo, mas de Deus. No final, opta por continuar a viver e continuar servindo. Vence seu desejo de solidão e aposta na parceria da missão.
V. 23-24 – Aqui Paulo continua verbalizando seus desejos e seu dilema: partir e estar logo com Cristo ou permanecer e estar junto com irmãos e irmãs na fé? Concluir sua missão de maneira solitária ou continuar firme na missão, junto a outras pessoas?
V. 25 – Paulo expressa sua convicção, aquilo que sua consciência lhe revela e que pulsa em seu ser como discípulo de Cristo: ele decide permanecer e permanecer junto, fazendo uma combinação do verbo menō (permanecer) e paramenō (junto+permanecer = permanecer junto). Estar junto é expressão da
alegria plena a qual são convidados a sentir (4.4) e anunciar. Alegria que vem de uma vida de comunhão, de esperança e amor.
V. 26 – Essa vivência do evangelho seria motivo de orgulho e altivez da comunidade. Paulo não esconde o direito de gloriar-se, de envaidecer-se, de partilhar as vitórias do evangelho, depois de tantas lutas e sofrimentos. A expressão kauchēma significa altivez, orgulho ou sentimento de superioridade. Esse orgulho em Cristo é lícito, porque será sempre um orgulho íntimo, próprio e encorajador, que se alimenta da confiança no evangelho e da esperança na parúsia em Cristo (v. 23). Paulo espera “permanecer e continuar junto” com os filipenses e promete revigorar o crescimento na fé com seu retorno à comunidade.
V. 27 – Paulo faz um pedido à comunidade: Uma só coisa peço a vocês: comportem-se como pessoas dignas do Evangelho de Cristo. Paulo sabe que eles continuarão firmes, estando ele presente ou não. Ele deseja que eles continuem firmes nessa luta dura e difícil, sem medo dos adversários.
Esse modo de comportar-se dignamente, tal qual o evangelho exige, revela-se na vida em comunhão. O verbo synathleō significa lutar com comum esforço, lutar irmanado de corpo e alma no mesmo projeto ou contra o mesmo inimigo. Para tanto Paulo ainda usa o verbo stēkō, que significa estar de pé, erguido. Nesse contexto, pode-se traduzir como: estar firme, forte, erguido, em contraposição ao que poderia ser um comportamento ou posição derrotista, desanimada ou lamuriosa diante dos embates com os inimigos e adversários. Ser um só corpo e uma só mente (v. 27; At 4.32; 1Co 16.13; Ef 4.3) se constitui numa necessidade imperativa frente aos opositores e adversários.
V. 28 – Não temei nenhum dos vossos inimigos […]! O “não temor” é um tema forte na relação de Jesus com seus discípulos: Não tenhais medo deles (Mt 10.26); Não temais os que matam o corpo […] (Mt 10.28). A situação não é pacífica, e não é apenas Paulo que está em perigo por estar na prisão. Os filipenses também estão em dificuldades, enfrentam lutas com seus opositores. Há os que atrapalham o caminho porque anunciam o evangelho por inveja (1.15-17), mas há também os que se postam em trincheiras inimigas, se colocam em linhas opostas, os antikeimenōn, que podem ser vistos como opositores, agressores e inimigos, romanos ou judaizantes. São motivados a estar de pé e não temer para que os inimigos não se sintam vencedores.
V. 29 – A “teologia da resistência” produz um agraciamento em Cristo. A fé vivida torna-se verdade, justiça, santidade e resistência em todas as horas e situações. O ato de crer é uma profissão de fé no compromisso, em todas as circunstâncias. Por isso a fé produz a resistência, e a resistência constrói o amor, pois só o amor constrói (1Co 8.1). Mas essa construção do amor segue outra vez o exemplo de Cristo: Se alguém quiser vir depois de mim, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e me siga (Mc 8.34).
A capacidade da doação de si em favor de alguém ou de uma causa maior exige o esvaziamento para um preenchimento perfeito com uma nova realidade (o exemplo de Cristo, 2.5-11). O evangelho traz consigo a experiência do oposto. Todo aquele que encontrou Jesus estará, invariavelmente, encontrando à sua frente os adversários do evangelho, porque todo amor radical pelo evangelho envolve a hostilidade dos seus antagonistas.
V. 30 – A missão não é um caminho de flores, mas muito mais um “caminho entre espinhos”. O uso do termo agōn (luta, batalha, combate) aponta para o desfecho da opção pelo evangelho. O segredo maior que anima Paulo é este: Para mim o viver é Cristo! E por vida de serviço e de vivência do evangelho que ele vai optar e se empenhar até o fim.
3. Meditação
a) Servir por amor ao evangelho
A verdadeira atitude do evangelizador ou da evangelizadora está na sua maneira de se colocar a serviço de todos para conquistar a todos. Paulo faz qualquer coisa para ganhar pessoas para o reino de Deus (cf. 1Co 9.19-22). Esse servir vai até as últimas consequências, deixa-se envolver por dúvidas, conflitos, desejos bem humanos. Já ouvimos a expressão de que a dúvida é irmã da fé. Quem não fica em conflito interior consigo mesmo diante do servir, da missão que Deus nos confia, não sabe dos percalços da fé, e de como Cristo desce ao nosso encontro para nos salvar, ajudar, consolar, animar e fazer ficar firmes e ir adiante, apesar dos pesares, mas na certeza de que haverá alegria e júbilo no céu e na terra por termos feito a melhor opção.
b) Desejos conflitivos
Nossa vida é feita de muitos desejos. Desejamos muitas coisas. Algumas pessoas talvez até tenham o desejo de abandonar o barco, de deixar de apostar numa vida de comunhão, partilha, de motivar para ações de solidariedade em meio à dor. Às vezes queremos largar tudo e jogar tudo ao léu. Desejos que estiveram presente com o profeta Jonas e com os trabalhadores da vinha, conforme as leituras que acompanham o texto de hoje. Sim, os desejos da nossa natureza humana nos habitam, assim como também estiveram com Paulo. Respondemos a eles ou à vontade de Deus?
Paulo escreveu da prisão e sabe que existe a possibilidade de ele ser assassinado. Ao mesmo tempo, ele se sente responsável pela caminhada da comunidade. Reconhece que vão sofrer com sua morte e que ainda poderia realizar um trabalho frutífero para o reino de Deus: Se eu ainda continuar vivendo, poderei realizar um trabalho útil. Por isso, não sei o que escolher (1.24). Esses desejos conflitivos são muito comuns hoje em dia, quando rápidas e profundas transformações modificam a nossa compreensão do mundo e nossa capacidade de situar–nos nele e comprometer-nos com a sua transformação. São muitas e variadas as tendências nessa busca por uma boa qualidade de vida, nesta tumultuada e complexa realidade do mundo de hoje.
c) Permanecer na missão requer parceria
Não há outra saída, outra solução. Escolhamos a melhor parte: estar juntos, permanecer na missão, ficar firme, estar em pé. Paulo opta por ficar e não por cessar seus sofrimentos e estar prontamente com Cristo. Muitos outros nomes podem ser dados para essa caminhada em conjunto na missão de viver e anunciar o evangelho: fraternidade, sororidade, irmandade, companheirismo, comunhão, parceria, amizade, comunidade, igreja… Seja qual nome usarmos, todos são unânimes num quesito: se queremos vencer, ter boa qualidade de vida, se queremos lutar contra forças inimigas, precisamos estar unidos, unidas, juntos e juntas, em fé, esperança e amor. Caso contrário o inimigo vencerá.
Essa mensagem que animou e confortou Paulo na prisão continua nos motivando e capacitando ainda hoje diante das adversidades, de perigos e sofrimentos que o mundo impõe. Diante desta realidade, somos chamados e chamadas a resistir, lutar e juntos vencer, por amor ao evangelho e sua mensagem de paz e comunhão, alegria e irmandade! Vida cristã só tem sentido se for uma vida partilhada, em comunhão, em que as pessoas se fortalecem mutuamente e são fiéis ao preceito evangélico de Romanos 12.5: Alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram! Façamos isso em comunhão e na certeza de que Cristo habita em nós e nos fortalece para a missão.
Dinâmica: Partilhe exemplos da vida da comunidade em que pessoas, agindo juntas, encontraram soluções para conflitos e problemas! Se quiser, peça para pessoas darem um breve testemunho no culto.
4. Imagens para a prédica
Comentário sobre Filipenses 1.27-30 por Johannes Bugenhagen: A unidade em Cristo resulta em humildade e amor.
“Quando isso acontece? Sempre que guardamos o ensino de Cristo inalterado e puro, não permitindo que qualquer ensino humano que exalte as obras e tragicamente cause separação seja acrescentado a ele […] o corpo santo de Cristo. Em resumo, nada mais resultará senão uma amarga disputa, logo que permitirmos qualquer outra coisa além da pura e simples Palavra de Deus. Se isso não acontecer, elogiaremos a nós mesmos, julgaremos os outros, nos consideraremos melhores que os outros e, então, seremos separados do corpo de Cristo juntamente com as seitas […] Por outro lado, onde estiver o puro e claro evangelho, sempre haverá também uma fé simples e um amor puro. Entre aqueles que mantêm a única Palavra de Deus, não pode haver divisão. Aqueles que reconhecem que receberam todas as coisas da misericórdia de Deus são incapazes de elogiar a si mesmos. Aqueles que sempre se lembram disso são incapazes de acusar ou julgar uns aos outros. E, de fato, cada um fica de pé ou cai do seu próprio mestre e, embora entre eles existam diferentes dons, diferentes obras, diferentes práticas e diferentes perseguições, ninguém pode ridicularizar o chamado do outro, mas o que cada um faz deve agradar a todos. Eles suportam as fraquezas uns dos outros. Eles utilizam seus dons para o bem uns dos outros. Cada um sofre com o outro; cada um ajuda o outro. Em resumo, cada um se dedica ao outro, não se considerando igual ao outro nem à altura do outro. É assim que os cristãos devem tratar
uns aos outros.” (Apud TOMLIN, 2015).
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida
“Não caminhes diante de mim: talvez não conseguirei acompanhar-te. Não caminhes atrás de mim: talvez não conseguirei guiar-te. Caminha ao meu lado, na amizade” (Albert Camus).
Poema: O Que Restará de Ti (It rastreatra de Toi)
O que restará de ti é tudo aquilo que deste
E não o que guardaste nos cofres enferrujados.
O que restará de ti e de teu jardim secreto é uma flor esquecida jamais fenecida.
E tudo que deste nos outros florescerá.
Pois aquele que perde a vida um dia encontrará.
O que restará de ti é tudo que ofereceste
De braços abertos numa manhã ensolarada
E tudo que perdeste ao longo da jornada.
E tudo que sofreste nos outros reviverá.Pois aquele que perde a vida um dia a encontrará.
O que restará de ti: uma lágrima caída, um sorriso brotado nos olhos do coração.
É verdade, o que restará de ti é o que semeaste,
dividiste com os que buscam a felicidade.
E tudo que semeaste nos outros germinará
Pois aquele que perde a vida um dia a encontrará!
(O Que Restará de Ti é uma tradução livre de autoria de Miguel Falabella do poema francês “It rastreatra de Toi” e foi recitado em homenagem à atriz Márcia Cabrita no Programa Fantástico em 12/11/17, por ocasião de seu falecimento.)
Absolvição dos pecados
“Deus não é alguém que olha para cima, pois não há ninguém que esteja acima dele, ele também não olha para os lados, pois não há ninguém que se iguale a ele, mas Deus olha para baixo, pois ali está o povo no meio da sua criação”
(Martim Lutero).
Leitura do Salmo 86.15-16
Confissão de fé
“Nada conheço e nada quero conhecer em questões divinas, exceto meu Senhor Cristo. Ele deve ser tudo que concerne à minha salvação e ao que deve ser tratado entre Deus e mim. E embora eu experimente muitas tentações e resistência da parte do diabo, do mundo e de minha própria consciência, precisando, inclusive, sofrer a morte por causa disso, permanecerei nessa fé. Estou determinado a viver e a morrer nela” (LUTERO, 2010, p. 93).
Sugestão de hinos:
Grupo Ânima
– Parceria no caminhar (http://www.luteranos.com.br/textos/parceria-no–caminhar)
– Bom que já nos pertencemos (http://www.luteranos.com.br/textos/bom–que-ja-nos-pertencemos)
Bibliografia
MAZZAROLO, Isidoro. Carta de Paulo aos Filipenses. Rio de Janeiro: Mazzarolo, 2011.
MESTERS, Carlos; LOPES, Mercedes. Elogio da Amizade. Círculos Bíblicos sobre a Carta aos Filipenses. São Leopoldo: CEBI, 2009.
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2010. v. 11.
TOMLIN, Graham. Filipenses e Colossenses – Comentário Bíblico da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).