Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Filipenses 2.1-13
Leituras: Ezequiel 18.1-4, 25-32 e Mateus 21.23-32
Autor: Evandro Jair Meurer
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 28/09/2014
1. Introdução
Os três textos já foram abordados no PL 35. Reencontramo-los, depois de três anos, com o desafio de pregar sobre esse lindo Salmo Cristológico, seu contexto, textos de apoio e respectivos protagonistas.
Ezequiel, Jesus, Paulo: três personagens distintos em seus respectivos tempos, mas com algo em comum: anunciar e apregoar uma alternativa ética distinta a ser assumida e vivida. Ezequiel (18) tem a tarefa de anunciar a Palavra do Senhor, que conclama o povo a não pecar mais e assim viver uma nova vida (v. 32). Jesus (Mt 21) conclama ao arrependimento, à fé em Deus e ao cumprimento da vontade do Pai (v. 32). Paulo, em Filipenses 2, (d)escreve a humildade e a grandeza de Cristo e desenha o caminho de humildade que cada cristão deve seguir: obedecer à vontade de Deus, tanto no pensamento como na ação (v.13). Paulo, Jesus e Ezequiel: três pregadores da mesma “boa notícia do evangelho”(Fp 1.5,7 e 4.3) de vida nova a ser buscada e vivenciada “de acordo com o evangelho de Cristo” (Fp 1.27). Muito diferente e distinta, por sinal, das veredas humanas de cada um desses tempos bíblicos… e também de nosso kairós: “… tempos de autoexaltação… egoísmo… isolamento” (WEBER, PL 35, p. 309).
2. Exegese
2.1 – Sobre o Salmo Cristológico
Não é possível, neste recurso homilético, discorrer sobre o desenvolvimento da cristologia no Novo Testamento. Contudo, não há como não fazer menção de seu postulado central: o evento pascal. Há um antes e um depois da cruz, há um antes e um depois da Páscoa. Houve uma nítida compreensão pelos primeiros cristãos desse caminho descendente e ascendente de Deus em Cristo. Não pode o ser humano tornar-se Deus. Mas Deus pode tornar-se ser humano e fê-lo em Jesus Cristo. Essa é a essência do querigma primitivo, já poetizado e cantado por diversas mãos, lábios e corações. João 1 co(a)nta-nos do Verbo e sua trajetória descendente: o Filho estava junto ao Pai (v. 1-5), veio ao mundo (v.10-11), “armou barraca” entre nós “cheio de graça e de verdade” (v. 14a), revelando também a sua glória (v. 14b).
Atos 5 relata-nos a marcante experiência de Pedro e dos demais apóstolos. Também em situação prisional, o “Pedro-Pedra” afirma pública e poeticamente, com um testemunho de fé, a trajetória de Jesus “para baixo e para cima”: “O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, pendurando-o num madeiro. Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador…” (v. 30-31).
Assim, aos poucos foi se formando uma cristologia neotestamentária. A boa-nova de forma nova! Desdobrando-se desse modo em duas partes complementares, marcadas por dois movimentos: um para baixo e outro para cima (um pódio às avessas). Abrangendo todo o evento salvífico de Deus sobre o mundo (Jo 3.16): da preexistência à volta à gloria do Pai, passando pelo mi(ni)stério da cruz. É assim que Filipenses 2.6-11 apresenta-se como um lindo exemplo de um hino litúrgico já presente na vida comunitária e cúltica em comunidades de então. Paulo incorpora-o em sua carta com um forte e distinto propósito: chamar seus irmãos e irmãs filipenses a um mesmo caminho descendente, na certeza de que Deus ascenderá a cada um no seu tempo.
2.2 – Sobre o texto
A delimitação da perícope de pregação aponta para seu propósito e intencionalidade. Mais comum (comprovado por seis edições anteriores do PL: V, XI, XVII, XXV, XXIX e XXXII) seria a pregação sobre Filipenses 2.5-11, o Hino Cristológico. Ou seja, a intencionalidade teológica e pastoral do que vem antes e depois do hino aponta para a mensagem central: desafio a uma ética cristã diferenciada e que faça a diferença. Por isso, no plano exegético, ajuda se olharmos o texto subdivido em três partes:
1) 2.1-4 – Aponta para o que já se faz e conclama a completar: Unidos, fortes, animados, participantes, bondosos, misericordiosos (NTLH) (se isso já se vive e se pratica…); exortação, consolação, comunhão, afetos e misericórdia (ARA) (se isso já acontece…), então que satisfação seria se ainda fossem harmoniosos, amorosos, desinteressados pessoalmente, sem desejos tolos, humildes. A alegria de Paulo estaria completa se houvesse alguns outros predicados da prática cristã e comunitária, como ter o mesmo pensamento, ter o mesmo amor, ser unidos de alma, ter o mesmo sentimento, sem partidarismo, sem vanglória, com humildade, com altruísmo. Esse é o padrão ético observado, apontado, esperado por um pai espiritual a seus filhos e filhas espirituais. Essa é uma prática e vivência comunitária que já existe e que gera muita alegria em quem dedicou tempo e amor à missão e ao pastoreio. O chamado vai na direção de dar continuidade a esse caminho. Ou seja, “está bom, mas pode melhorar”.
2) 2.5-11 – Aponta para o que Jesus já fez e conclama a fazer igual: O melhor padrão e modelo para essa busca por ampliar e melhorar a qualidade de vida cristã pessoal e comunitária é o próprio Cristo. Ter o mesmo modo de pensar, o mesmo sentimento que Cristo Jesus tinha é o grande alvo. Que completude ética! Quanta alegria causaria ver a trajetória e o estilo de vida de Jesus concretizarem–se na vida de pessoas que já foram alvo de cuidado e ação apostólicas. Quanta felicidade ver a vida de Cristo espelhada na vida do irmão, da irmã, do próximo! Uma postura nova, alternativa, diferenciada e que faz a diferença.
Uma trajetória descendente pode ser alvo de vivência, não necessariamente em sua literalidade, mas no espírito de humildade e humilhação, deixando que Deus realize a grandeza e a glorificação a seu critério e propósito e a seu tempo. Essa trajetória descendente e ascendente, na perspectiva de um “pódio às avessas”, ficaria ilustrada desta forma: [Veja em anexo Pódio às avessas.]
O hino é uma bela, criativa e inspirada composição musical. Segundo Oscar Cullmann, “um resumo magnífico da doutrina concernente à pessoa de Jesus Cristo… Esta passagem, ritmada, … interrompe um pouco o fio da epístola e emprega um vocabulário diferente. É bem possível que estejamos aqui diante de um dos primeiros hinos litúrgicos pelos quais a comunidade cristã primitiva cantava sua fé em Cristo”.
Ilustrado de outra forma, mas mantendo a ideia da ascendência e descendência, vale reproduzir o esquema publicado por Fabio R.F. em 20.05.2010:
[Veja anexo: Ascemdência e descendência – Esquema.]
http://escritosdepaulo.blogspot.com.br/2010/05/hino-cristologico-da-carta-aos.html
3) 2.12-13 – Aponta para a obediência já realizada e conclama a continuar: Obediência: essa é a perspectiva de relação entre “queridos amigos”, entre “amados”. Obediência: essa é a linha de relação mestre-discípulo que transparece no texto. Obediência de filho/a, tanto na ausência como na presença do pai/da mãe: essa é a perspectiva de apostolado que está por trás da carta e da relação Paulo-Filipenses. Obediência: esse é o caminho que se deve continuar trilhando para o desse envolvimento da salvação, da obediência e da salvação, essas que são ação divina em cada pessoa, em cada comunidade. É Deus agindo e efetuando tanto o “querer” como o “realizar”. Ou seja, tanto os pensamentos como as ações de obediência que nos levam à salvação são obra e graça divinas.
3. Meditação
Em minha prática pastoral (e por isso a trago como proposição de passos para a prédica), tenho utilizado o que chamo de “ABC Homilético”:
“Atualmente”, tenho observado uma ascensão do que chamo de “Lei do Pódio”. Talvez porque eu vivi o tempo do nascimento e desenvolvimento da “Lei de Gerson”. Tal expressão originou-se de uma propaganda de 1976 de uma determinada marca de cigarro. O vídeo apresentava o meia armador Gerson, da Seleção Brasileira de Futebol, como protagonista. Iniciava associando sua imagem ao “cérebro do time campeão do mundo da copa do mundo de 70”. Então o entrevistador lhe pergunta o porquê de “Vila Rica”. Durante a resposta, ele recebe um cigarro de Gerson e acende, enquanto ouve a resposta, que é finalizada com a frase: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também. Leve Vila Rica!”
Conforme a Encliclopédia Livre Wikipédia, “na cultura brasileira, a Lei de Gérson é um princípio em que determinada pessoa age de forma a obter vantagem em tudo o que faz, no sentido negativo de se aproveitar de todas as situações em benefício próprio, sem se importar com questões éticas ou morais. A ‘Lei de Gérson’ acabou sendo usada para exprimir traços bastante característicos e pouco lisonjeiros do caráter midiático nacional, associados à disseminação da corrupção e ao desrespeito a regras de convívio para a obtenção de vantagens pessoais”.
Nada novo na sociedade e no mundo atual: “levar vantagem”… “chegar na frente” ou “estar no topo” são sinônimos de uma mesma ética humana de quem vive longe da ética proposta por Deus em Jesus. Semelhantemente, percebo que hoje a moda é “estar no topo do pódio”. Palestrantes motivacionais utilizam muito essa linguagem. Para tanto “sobem em escadas”, usam a figura de Jesus, ilustram com imagens de escaladas de montanhas e inclusive remetem a Shakespeare: “Eu aprendi que todos querem viver no topo da montanha, mas toda felicidade e crescimento ocorrem quando você a está escalando”. Estar no topo do mundo, no topo das pesquisas, no todo do pódio… Nada diferente de certas teologias evangélicas da “bênção” e da “prosperidade”, presentes em nosso contexto atual.
Biblicamente, observamos e somos portadores dessa mensagem de inversão desses valores que comumente se apresentam como corretos na história da humanidade. Tanto Ezequiel (18) como Jesus (Mt 21) e Paulo (Fp 2) têm algo novo a propor e apresentar às pessoas de sua época. Em especial, o texto de pregação apresenta-nos como novidade uma proposta de “pódio às avessas”. Um estilo de vida alternativo, diferente e que faz a diferença. “A vida cristã inclui a necessidade de esquecermos a nós mesmos, já que o altruísmo é o coração mesmo do amor, ao passo que a arrogância é manifestação do egoísmo e do orgulho…” (Champlin).
A tese do apóstolo Paulo sobre a necessidade de humildade é ilustrada com o próprio exemplo da trajetória de Cristo: primeiro a humildade, depois a exaltação. Por fim, fica explícita a chamada para o desenvolvimento permanente e constante da fé, da postura ética, da salvação. Ou seja, o reconhecimento mútuo de que “tá bom, mas pode melhorar”.
Concretamente, cada pregador/a deverá perceber qual ênfase dará à concretude da palavra lida, ouvida e a ser vivida. Percebo que a pregação pode ser direcionada, pelo menos, para três áreas:
– Pessoal: poderemos levantar um desafio para uma autoavaliação, no sentido de perguntar em que medida certas “leis” conseguem ditar nossa forma de vida. A pregação poderá ajudar cada pessoa a revisar em que direção está indo seu viver. Só em busca de glória e exaltação, vantagens e o topo a qualquer custo? Ou no caminho da humildade cristã? Minha filha morou, trabalhou como Au Pair e estudou por cinco anos na Alemanha. Sua intenção ao sair do Brasil para essa experiência era poder estudar numa universidade. Quando finalmente alcançou esse intento, em certo momento ela me disse em conversa virtual: “Os estudantes aqui disputam entre si para ver quem tira a nota mais alta nessa ou naquela matéria. Querem estar na frente… no topo… Não sei se quero isso pra mim”. Dois meses depois, ela nos informou que estava voltando ao Brasil e queria continuar seus estudos e vida aqui.
– Comunitária: “Vida em comunhão” não é fácil. Pregar sobre (e ouvir) os desafios de uma vivência sempre renovada na comunidade eclesiástica é sempre necessário. Dizer “Eu vivo comunidade”, mas não “ser”, não “participar” nem “testemunhar” não faz sentido. O caminho do pódio cristão pode ser revisto na perspectiva da comunidade “sempre em reforma”, sempre “melhorando” em sua postura relacional, ética e de humildade. “A humildade aqui requerida dos crentes… para dizer a verdade, é apenas um outro nome dado ao altruísmo, ao amor ao próximo, ao cuidado por seus semelhantes, conforme cuidamos de nós mesmos, em que nos preocupamos com o bem-estar e os direitos alheios, e não apenas com a nossa própria exaltação e bem-estar. É dentro desse espírito de humildade que a união e a harmonia são mantidas. Pois a autoexaltação invariavelmente nos conduz a contendas e divisões” (Champlin).
– Social: Estar no topo! Quantos exemplos vemos ao nosso redor que poderiam ser motivo de anúncio e denúncia quando esse “estar no topo” fere a ética da humildade e do respeito à vida da outra pessoa e machuca a natureza. A vida pública, em especial (governamental ou eclesial), sempre está mais na berlinda quanto a essa busca pelo topo. Palanque e púlpito são, muitas vezes, compreendidos como “pódio” alcançado ou almejado. Trazer à luz a proposta do pódio da humildade de Deus em Cristo torna-se uma tarefa profética e apostolicamente necessária e difícil.
4. Imagens para a prédica
Proponho o uso do pódio como imagem e ilustração para a pregação. Refletir com a omunidade sobre a visão humana e mundana de sempre querer estar no topo de tudo. O pódio é uma plataforma onde ficam os campeões, palco destinado aos primeiros colocados em alguma disputa. Na prática esportiva, ele é bem presente e acaba sendo o objetivo que todo atleta quer alcançar. Nas competições de automobilismo e atletismo, a cerimônia de premiação coloca os três primeiros colocados, cada um em seu devido lugar. Recentemente, no mês de julho, acompanhamos e presenciamos a Copa do Mundo de Futebol realizada no Brasil: a luta e a disputa de cada país por colocar a sua seleção no pódio e depois erguer a taça no lugar mais alto, voltar para seu país (ou ficar) com o troféu de vencedor.
Traga um pequeno pódio de madeira para junto do púlpito. Especialmente se for possível colocar esse pódio de cabeça para baixa em certo momento da pregação. Contudo, uma folha de papel cartão/cartolina, um flyier ou mesmo alguma imagem projetada podem muito bem substituir o pódio de madeira. O importante é a intenção de ilustrar a inversão de vida e ética inaugurada por Jesus, a qual os primeiros cristãos e apóstolos bem perceberam e passaram a buscar viver e conclamar a que se viva. Um verdadeiro pódio às avessas!
5. Subsídios litúrgicos
A música ainda continua sendo pregação. Por isso uma escolha minuciosa dos hinos a serem cantados durante o culto favorece. Minha contribuição na direção de escolha de pelo menos um hino que ilustre o escopo da pregação vem de um resgate (evangelicamente nostálgico, é verdade), mas que talvez possa ser uma opção. Se você buscá-lo na internet sob os títulos de “Deus enviou seu filho ao mundo” ou “Porque ele vive” ou mesmo “Deus lá do céu mandou seu filho”, você encontrará recursos e versões para utilização (YouTube ou Cifras). Ou, quem sabe, conseguimos (re)despertar nossos ouvintes a cantar e viver o hino 44 do HPD.
O Credo é outro momento forte do culto, que pode colaborar com o intuito central da pregação dominical. Se Deus nos inspirar e se pudermos transpirar ainda uma versão própria de um credo para a comunidade, seria o ideal. Caso contrário, a que encontramos em “Prática da Esperança” (Lindolfo Weingärtner, p. 54) pode ser uma opção.
A oração focada no “preço da encarnação” pode colaborar para fortalecer a ação. Gosto muito das reflexões de Johnson Gnanabaranam (Senhor, renova-me). E a inspirada em Filipenses 2.7-8 (p. 69) pode ser resgatada.
Bibliografia
CHAMPLIN, Russel Norman. O NT interpretado versículo por versículo. V. 5. São Paulo: Milenium, 1982.
DUPUIS, Jacques. Introdução à Cristologia. Loyola, 2004.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).