Ano Novo – Muda tudo e nada
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Filipenses 2.5-11
Leituras: Números 6.22-27 e Lucas 2.15-21
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: Ano Novo (Nome de Jesus)
Data da Pregação: 01/01/2015
1. Introdução
O texto já foi tratado em seis edições do PL: nº 5, p. 57 (M. Volkmann); nº 11, p. 216 (N. Bakken); nº 17, p. 97 (W. Brunken); nº 25, p. 158 (V. Lückemeier); nº 29, p. 111 (H. G. Dalferth); nº 32, p. 59 (W. Fuchs). O presente estudo pressupõe a leitura das contribuições anteriores. Chamo a atenção para o fato de que os cinco primeiros são estudos preparados para o Domingo de Ramos, e só a partir do PL 32 o texto está previsto para o dia 01 de janeiro (nome de Jesus).
O tema proposto para o culto de Ano Novo é o nome de Jesus. Os dois textos do Segundo Testamento abordam o tema de forma bem clara. Lucas recorda que o ato da circuncisão era o momento de dar um nome à criança, como muitos hoje ainda dizem do Batismo. Nosso texto de Filipenses faz uma relação do nome de Jesus com: 1) o poder de Deus; 2) o rosto de Deus na identidade humana. Jesus é o nome que esse rosto recebe. Por causa da humildade extrema desse rosto recebe uma condecoração extrema: Senhor.
Uma possível relação com o texto de Números é que o nome do Senhor seja uma bênção para as pessoas, o bem-dizer de Deus sobre seu povo, agora não mais de cima para baixo, mas na horizontal.
2. Exegese
Os pesquisadores e as pesquisadoras deste texto são unânimes em ver o v. 5 como uma ligação entre a parênese dos versículos anteriores e esse hino cristológico que já circulava entre as comunidades. Pela linguagem usada e pela falta da dimensão soteriológica do hino, podemos dizer com toda a certeza que o autor não é o apóstolo Paulo.
Também há consenso de que o hino pode ser dividido em duas partes (v. 6-8 e v. 9-11) e tem um acréscimo paulino no v. 8: “morte de cruz”.
“Ter o mesmo modo de pensar” no v. 5 não deve ser entendido como a busca por uma imitação de Jesus Cristo para alcançar a salvação. Significa deixar-se embeber pelo drama salvífico pelo qual Jesus Cristo passou e que, sendo Deus, fez valer para toda a humanidade em todos os tempos.
Os v. 6-8 tratam da “desdivinização” de Deus na pessoa de Jesus. Sua identificação com o ser humano ganha um rosto. Jesus tinha plena consciência de sua natureza divina, mas abre mão do que ela poderia representar para tornar-se um rosto perfeitamente humano. Sua natureza divina está na humildade sobre–humana, e sua natureza humana na fragilidade que leva à cruz. Aqui se encontram humildade e humilhação, para que a segunda seja abolida.
Nos v. 9-11, há uma “redivinização”. Deus se “rediviniza” a partir do nome “Jesus”. Aqui, o nome não é um slogan, um exemplo a ser seguido, como poderia sugerir o hino cristológico. A “redivinização” tem um sentido escatológico. O nome é de um ser humano com identidade e aparência, que viveu, morreu morte de cruz em total obediência e coerência para alterar a história das pessoas e de toda a criação. Portanto, no evento escatológico, Deus se reinventa, muda seu caráter, sem mudar, no entanto, sua essência. Seja aqui salientada a importância do pequeno acréscimo feito pelo apóstolo Paulo: “morte de cruz”. Caso contrário, o sentido gnóstico do hino teria prevalecido e se teria perdido seu sentido mais profundo.
3. Meditação
Tendo em vista que todas as pessoas têm acesso aos estudos anteriores através do portal luteranos (http://www.luteranos.com.br), nos quais encontrarão boas reflexões, impulsos para a prédica e recursos litúrgicos, apresentamos uma reflexão que traz a questão do rosto de Deus para o texto proposto. Fazemos isso trazendo o mundo do teatro para o texto, lembrando que no teatro um personagem ganha um rosto, o rosto uma mensagem, uma missão. Traçamos, pois, um paralelo entre o herói aristotélico e o esvaziamento de Cristo.
O texto de Filipenses 2.5-11 traz relações com a estruturação do herói trágico contida na Poética de Aristóteles. No texto do filósofo grego, o herói trágico tem entre seus traços mais comuns algumas características:
– o herói descobre que sua queda é resultado de suas próprias ações, não por causa dos acontecimentos;
– o herói vê e entende o seu castigo e que seu destino foi definido por suas próprias ações;
– um herói trágico é muitas vezes nobre ou descendente de nobres;
– o herói é confrontado com uma decisão séria;
– o sofrimento do herói é significativo porque, embora o sofrimento seja o resultado da própria vontade do herói, não é inteiramente merecido e pode ser cruelmente desproporcional.
Esses traços, segundo Aristóteles, se fazem necessários para que possa haver a catarse (em grego katharsis, purificação). Essa purificação só pode ser atingida através do reconhecimento, pois “o reconhecimento se dá entre pessoas; ocasiões há em que somente uma personagem reconhece outra, quando não existem dúvidas acerca da identidade de uma delas; outras vezes, as duas se reconhecem” (Aristóteles).
Não pode existir reconhecimento entre um ser extremamente superior com um ser inferior. O reconhecimento só existe, segundo Aristóteles, nos casos em que um indivíduo se coloca no lugar de outro. Nesse reconhecimento existe a possibilidade da troca, de um experimentar as dúvidas e sofrimentos do outro e com isso purgar seus sentimentos e, através dessa ação, crescer. Existe, portanto, na catarse um caráter didático da tragédia grega, e existe também no esvaziamento de Cristo um caráter pedagógico do seu ministério.
Aristóteles coloca a coerência como um dos pontos a ser abordado pela tragédia: “Mesmo quando o personagem é incoerente em relação a suas ações, precisa ser, na tragédia, incoerente com coerência”. Essa incoerência coerente faz-se visível em um Deus que se faz humano, incompreensível para a sociedade da época, mas absolutamente coerente para Paulo, quando diz em 1Co 1.23: “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios”.
Na perícope em questão, é absolutamente necessária a compreensão do conceito de herói para um aprofundamento da reflexão proposta pelo apóstolo Paulo. Na incoerência de um Deus que se faz humano, de um Deus que se permite fragilizar para demonstrar sua força, reside a inversão de valores que a sociedade greco-romana, e talvez a atual, não esteja apta a compreender.
Esvaziando a divindade, surge o humano; surgindo o humano, evidencia–se o divino. Não seria possível a troca de personagem entre o divino e o humano. O divino é inatingível, intransponível e inimaginável. Para Deus, tudo é possível e exequível, não sendo possível a catarse com o humano e, por conseguinte, a troca de olhares e lugares e, por decorrência, o processo de aprendizagem. Esse processo de aprendizagem se faz, em Cristo, por imitação (mimeses, em grego), conceito também evidenciado por Aristóteles na sua Poética. Só é possível imitar aquele ou aquilo que nos é parecido, senão caímos no campo das incoerências incoerentes.
Não está em questão o mito do super-herói moderno, do Super-Homem ou qualquer coisa que o valha. Não cabe o escapismo, de que esse só faz isso por ter poderes especiais. Cristo exalta no humano o poder real através da imitação de seus atos, que este, o humano, é capaz de realizar, não como elemento de salvação, mas de vida com sentido. Deus nos quer participantes do processo de criação de seu reino; por isso é preciso a identificação com o projeto e a compreensão desse.
A humilhação de Jesus Cristo tem caráter profundamente pedagógico. Ele quer que os seres humanos aprendam algo sobre sua natureza divina. Uma divindade que se apresentasse como Deus talvez só validasse os cultos de até então, de deuses antropomóricos, com sentimentos humanos e propensos a toda forma de desvios existentes no humano. A vida desvalorizada pelo ser humano é apenas traço de deuses que também desvalorizam a vida humana. Zeus é capaz de prender Prometeu a uma rocha, colocar seu fígado à mostra para que aves de rapina o destrocem constantemente apenas por este, Prometeu, ter dotado os seres humanos de inteligência. Se um deus não se identifica com sua criação, não se coloca no lugar dessa, decorre que a ação humana será de desrespeito com a vida e com a criação. Uma vez que os deuses desrespeitam a própria criação, a criatura vê-se livre (ou constrangida) para não se respeitar também. É aí que se faz necessário o esvaziamento de Cristo para que haja o efeito pedagógico esperado.
Exaltar o humilhado faz parte dessa inversão de valores. O panteão grego tem seus deuses exaltados pela sua força e pelo seu poder. Nisso podemos observar que o paganismo existente até então exalta o poder real, o poder como algo institucionalizado. Deus, em Jesus Cristo, exalta o humano na sua porção terra, no húmus original, na humilhação, e humildade que se faz necessária para a com- preensão de que o ser humano faz parte da criação toda.
Deus em Jesus Cristo oferece-se em holocausto, humilhação até para os humanos, e que Deus se permite em Cristo para demonstrar o caráter divino de seu reino.
4. Imagens para a prédica
O assunto da humildade já foi ricamente abordado nos estudos anteriores, a maioria proposta para o Domingo de Ramos. Para esta prédica, propomos o uso do tema: rosto. No dia de Ano Novo, as preocupações giram ao redor do novo, do que pode e deve mudar, de esperanças e promessas de mudança; as pessoas são confrontadas com um novo ano, um número novo no calendário e as perspectivas de mudanças coletivas, estruturais e pessoais/individuais dali para a frente. Sugiro relacionar o nome com o rosto e conduzir a prédica para as perguntas: que rosto terá este novo ano? Que rosto terei eu neste novo ano?
A proposta, pois, é fazer uma prédica relacionando o rosto de Deus (apresentado em Fp 2) com o nosso rosto pessoal. Dessa relação tirar como consequência a construção de uma identidade pessoal aberta, crítica e inovadora.
Sou o que meu nome diz? Digo pelo meu rosto o que é meu nome?
Nome de Jesus: como Jesus lidava com seu nome e com a condecoração “Senhor”?
Como lido com o meu nome? O que ele diz para mim? O que ele diz de mim?
Como meu nome, dado no Batismo, representa a divindade de Jesus Cristo na minha vida? Como apresenta a humanidade de Jesus na minha vida?
Quando me olho no espelho, identifico meu rosto com meu nome?
O que mudaria em mim se eu tivesse outro nome? Se eu pudesse escolher outro nome, eu o faria? Por quê?
O novo ano é um novo nome para a mesma vida. Mas ao mesmo tempo é oportunidade para esperadas e necessárias mudanças.
Como fazer essas esperadas e necessárias mudanças na minha vida com o nome e as características que tenho, as que posso e as que não posso mudar?
Como esvaziar-me sem descaracterizar-me?
Como esvaziar-me para descaracterizar-me e assumir algo novo, um jeito novo, uma atitude nova diante da vida e dos relacionamentos?
5. Subsídios litúrgicos
Confissão e proclamação da graça:
P – Ó Deus de amor eterno, este novo ano é novo tempo de graça. Nós o iniciamos com nossas dores, sonhos e esperanças. Mas também sabemos que o iniciamos sob a promessa da tua bênção e companhia. Queremos vivê-lo sob a promissão da tua ajuda.
C – Ajuda-nos também para que não levemos para dentro do novo ano tudo o que nos pesa e oprime. Dá-nos força para confessar nossas faltas e repará-las neste tempo que foi colocado em nossas mãos.
P – Perdoa-nos, por amor de Jesus Cristo, lá onde nos tornamos culpados. Que nossos ouvidos estejam atentos para ouvir a tua mensagem de perdão e reconciliação.
C – Dá, Senhor, que o perdão e a reconciliação sejam como sementes de uma nova vida para cada um/cada uma de nós e para toda a tua criação.
Porque eis que as trevas cobrem a terra, e a escuridão, os povos; mas sobre ti aparece resplendente o Senhor, e a sua glória se vê sobre ti. (Isaías 60.2)
Oração do dia:
C – Deus, nosso Salvador, que em todas as jornadas acompanhas teu povo, ajuda-nos a ouvir e acolher a tua palavra, para que ela nos fortaleça no amor e nos oriente nos caminhos da reconciliação. Não nos deixes desanimar quando o peso for grande e o desânimo ameaçar. Isso te pedimos em nome de Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.
Temas para a oração de intercessão:
– pelas pessoas que arriscam mostrar o seu rosto;
– pelas pessoas que fazem do nome uma identidade;
– pelas pessoas que têm a coragem de mudar.
Bibliografia
ARISTOTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural,1999.
PEREIRA, Sandro. A saga do herói e o esvaziamento de Cristo: Análise de Filipenses 2.5-11. Disposível em:
O presente estudo teve a participação do membro da Paróquia do ABCD Paulo Sérgio Macedo dos Santos, estudante de Teologia na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Bernardo do Campo (SP).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).