Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Filipenses 3.4b-14
Leituras: Isaías 43.16-21 e João 12.1-8
Autoria: Clarise e Jair Holzschuh
Data Litúrgica: 5º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 21/03/2010
1. Introdução
A Epístola de Paulo aos Filipenses é uma carta pessoal. Ela não é um tratado teológico, mas demonstra reconhecimento e gratidão mútuos entre Paulo e a comunidade de fiéis de Filipos por auxílios em tempos de dificuldade. Além disso, ela possui outros assuntos, como a crítica a algumas pessoas que o apóstolo chama de “falsos pregadores” (Fp 3.2) e “inimigos da cruz” (Fp 3.18).
A perícope de Filipenses 3.4b-14, indicada para o 5º Domingo na Quaresma, identifica Paulo, fala sobre a vida na justiça de Deus e enfatiza que a dádiva da fé precisa ser uma constante na vida da pessoa cristã.
Como leituras complementares estão indicados os textos de Isaías 43.16-21 e João 12.1-8. O profeta Isaías fala da superação do velho e da vinda do novo. Deus escolhe seu povo não por razões étnicas, por mérito da lei ou porque é um povo sem falha, mas por sua justiça, povo que ele “formou para si”. O evangelho traz Maria perfumando o corpo de Jesus, como que o embalsamando. É o reconhecimento de Maria de que só pode acolher como Jesus acolhe quem tem seus atos guiados por Deus, ou seja, quem age segundo a justiça/vontade de Deus. Podemos vislumbrar na ação de Maria a unção de Cristo como nosso Rei e Salvador. Maria é instrumento nas mãos de Deus para a realização da obra salvífica de Cristo.
2. Exegese
A carta aos Filipenses é cercada por alguns mistérios que não permitem localizar sua redação num tempo exato. Certo é que foi redigida na prisão, em companhia de Epafrodito, cristão de Filipos, que acompanhava Paulo em sua clausura. Paulo passou por diversas prisões como infrator da lei. Mas, dessa vez, está preso como missionário cristão (Fp 1.12ss). A redação está datada entre os anos 53 e 55 d.C. Foi escrita com a finalidade de agradecer a ajuda da comunidade de Filipos, que enviou dinheiro através de Epafrodito. Esse também esteve doente nesse período e agora pode voltar a Filipos com saúde, levando a carta de Paulo.
Há uma discussão quanto à unidade da carta, pois de 3.2 a 4.1 o tom da conversa muda consideravelmente. Há pesquisas que apontam para a possibilidade de terem sido escritas mais cartas à comunidade de Filipos, que posteriormente teriam sido unificadas. Não é possível comprovar isso com apoio na própria carta, ficando como uma hipótese que carece de aprofundamento.
A comunidade de Filipos foi a primeira comunidade fundada por Paulo na região da Europa em sua segunda viagem missionária. A cidade era uma colônia militar romana, e Paulo teve grandes dificuldades nessa cidade. Sua missão em Filipos é conhecida pelos relatos de Atos 16.12-40, que menciona Lídia com sua família (16.14s) e a família do carcereiro (16.33s) como os primeiros convertidos à fé cristã. A partir dos nomes citados na carta (Epafrodito, Evódio, Síntique, Clemente) e da afirmação de não-circuncisos deduz-se que era uma comunidade essencialmente gentílico-cristã.
A carta tem três momentos claramente distintos. De Filipenses 1.1-2.30 Paulo faz saudações e agradecimentos pessoais, situa-se como prisioneiro por causa da fé e faz exortações para a vida comunitária a partir de sua situação pessoal. De Filipenses 3.1-4.1 abre uma discussão sobre falsos pregadores e falsas doutrinas, com palavras em tom alterado. Para finalizar, em Filipenses 4.2-4.23 Paulo faz suas recomendações e agradecimentos, voltando ao tom amistoso.
A perícope em questão situa-se na discussão sobre falsas doutrinas e constitui-se em duas partes distintas: Filipenses 3.4b-11: em que/quem a pessoa deposita sua confiança e Filipenses 3.12-14: a comunidade a caminho da salvação.
No contexto maior, Filipenses 3.1-4.1, Paulo critica duramente pessoas que pregam doutrinas com as quais não concorda. São missionários cristãos que se vangloriam da sua procedência judaica, que acentuam privilégios étnicos e tradições religiosas em detrimento da graça divina (3.2s). Destaca-se que Paulo não dirige seus ataques contra os judeus ou a religião judaica, mas contra “maus pregadores”, ou seja, pregadores/missionários cristãos que se achavam melhores por seguir tradições judaicas e ser descendentes do judaísmo. Por isso Paulo faz uma espécie de autobiografia e declara tudo isso como “perda” (v. 7), pois o que importa é a “causa de Cristo”.
Nos v. 7-11, Paulo chama à razão as pessoas que pregam e vivem segundo a carne, ou seja, as que procuram basear sua conduta e edificar sua vida sobre algo transitório, visível e passageiro. A verdadeira circuncisão não é confiar na carne ou em um sinal exterior, mas adorar a Deus no Espírito e gloriar-se em Cristo Jesus.
É preciso “conhecer a Cristo”, a “sua causa”, “ganhar a Cristo” e “nele ser encontrado”. “A ele quero conhecer”, diz Paulo. Essas palavras encontram-se nos v. 7-10. E o aspecto que Paulo destaca em meio a esse ardente desejo em conhecer Cristo é a dikaiosyne – justiça, a “justiça de Deus” em contraposição à “minha justiça” (v. 9). A versão de Almeida traduz dikaiosyne por “justiça, justificação”, e a Bíblia na Linguagem de Hoje, por “obediência à lei”.
No judaísmo rabínico, a justiça identifica-se completamente com a conformidade à lei e tinha a intenção de treinar os seres humanos na obediência para, com isso, adquirir méritos aos olhos de Deus.
Paulo usa o termo com frequência. A justiça de Deus e a justificação dos pecadores por Deus são um tema central em sua teologia. A justiça de Deus (ek Theou dikaiosyne) é o modo de Deus tratar o seu povo, baseado na sua aliança, que se constitui numa nova humanidade composta por judeus e gentios. Ninguém envolvidos por ela, é que se pode fazer a vontade de Deus. Somente quem é justificado e morreu para o pecado pode fazer a vontade de Deus (Rm 6).
Assim, a justificação dá-se somente pela fé em Cristo, mediante a confiança total e exclusiva na graça de Deus, que é dom gratuito (Rm 3.24; Fp 3.9).
3. Meditação
Nos dias em que escrevemos este auxílio homilético, ocorrem mobilizações dos pequenos agricultores em todo o sul do país, especialmente nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. As mobilizações reivindicam auxílio à agricultura familiar atingida pela seca e pelos preços baixos, causados por uma crise financeira global.
Sentindo-se injustiçados por não ter atendidas as suas reivindicações e, por outro lado, vendo os bancos recebendo altas somas destinadas a fábricas e indústrias, também para o agronegócio, os pequenos agricultores, produtores da comida nossa de cada dia, puseram-se nas ruas, estradas e pontes, pedindo atendimento básico, justiça social e econômica.
JUSTIÇA – esta também é a palavra-chave da perícope do 5º Domingo na Quaresma – Filipenses 3.4b-14. O dicionário da língua portuguesa define “justiça” como “conformidade com o direito; atitude que faz dar a cada qual o seu; faculdade de julgar com equidade”.
Diante dos fatos, parece que a justiça não está sendo contemplada em seu significado. Mas é dado o direito a quem “tem mais” poder, dinheiro, influência, possibilidades.
No v. 9, o apóstolo Paulo anuncia: “Não é minha própria justiça que eu quero, que provém da lei, mas a justiça que Deus concede à base da fé, a que vem por intermédio da fé em Cristo”. Há uma clara rejeição à justiça humana, baseada na lei, em favor da justiça de Deus, recebida na fé. Dentro do contexto (especialmente v. 8-10) é a ação salvífica de Deus caracterizada pela morte e ressurreição de Cristo que conduz necessariamente à rejeição da justiça da lei. Não é apenas um jeito de pensar, mas algo que muda o jeito de falar e, sobretudo, de agir.
A “justiça que vem da lei” é o que Paulo chama de “minha própria justiça”, e essa leva a pessoa a vangloriar-se de si mesma, de suas próprias atitudes e feitos. É o vangloriar-se “na carne” severamente criticado por Paulo. Em clara oposição a isso, apresenta-se “a justiça que vem de Deus à base da fé”, ou seja, que Deus confere aos que creem, o que Paulo chama de “justiça de Deus”. Ao que crê Deus confere a sentença: justo. Entretanto, a justiça da qual vive a pessoa que crê em Jesus Cristo não é a sua própria justiça, mas uma justiça alheia; ela é dádiva de Deus, que lhe é concedida à base da fé em Cristo. Assim não confia em si mesma, mas apenas no Deus que, em Cristo, declara justo o ímpio (cf. Rm 4.5). Na mesma linha de raciocínio está a parábola de Jesus sobre os trabalhadores da vinha, em que o dono resolve pagar o mesmo valor a todos, independente da hora em que iniciaram o seu trabalho (Mt 20.1-16). Portanto a centralidade dessa palavra é a justificação pela fé em Cristo, que o ser humano não vive de sua própria realização, mas de uma justiça alheia que lhe é concedida por Deus.
Diante disso, não é possível ficar calado frente à justiça do mundo, que tem mais peso num lado da balança. A justiça de Deus olha para a necessidade, enquanto a justiça humana olha para o merecimento. A justiça divina olha para o coração, enquanto a justiça humana olha para o lucro, o mercado, o retorno e a glória pessoal. A justiça de Deus preza pelo comunitário, e a humana, pelo individual e pessoal. Não que a justiça divina vise somente o comunitário, desprezando o individual e pessoal. Ela supera a visão do pessoal e a integra em sua visão. A justiça de Deus é universal, enquanto a nossa é local e parcial. O ser humano tem em si o senso de justiça, mas tem dificuldade para aplicá-lo ao próximo. Enquanto a justiça humana sofre de miopia, a justiça de Deus enxerga longe e consegue até mesmo enxergar o que se passa no coração e na mente das pessoas.
A busca da justiça é uma constante na vida das pessoas cristãs. A justiça não é algo que se conquista uma vez para sempre, mas é o alvo de constante e incessante busca na vida cristã. A busca pela justiça passa por sofrimentos, tentações, tensões e perseguições. O caminho da pessoa cristã é comparável a uma corrida, segundo Paulo mesmo afirma em Filipenses 3.12ss. Durante o desenrolar da corrida, não é possível se vangloriar pela vitória final, mesmo sabendo que em Cristo nós já a tenhamos recebido antes de encerrar a corrida. Essa postura evita vanglória e coloca-nos em nosso lugar de criaturas de Deus.
A corrida a que Paulo se refere é a nossa vida. A luta contra as injustiças – egoísmo, opressão, desunião, guerras… – está presente em toda a vida.
4. Imagens para a prédica
A imagem clássica da justiça é a balança. A necessidade de nos preocuparmos tanto com a justiça é a presença real e concreta da injustiça entre a humanidade. Cada ação injusta carrega em seu cerne a morte como fim e meio últimos. Subverte a justiça de Deus em sua essência. A justiça divina promove a vida e a dignidade para toda a criação.
A existência de juízes entre nós só tem sentido se estiverem a serviço da promoção e do restabelecimento da justiça entre as pessoas. Supondo que fosse possível sermos libertados da justiça humana, ainda não estamos livres da justiça de Deus.
Levando em consideração o acima exposto, sugerimos levar para a igreja uma balança. Durante a pregação colocar sobre a balança, num lado, o que faz parte da justiça/injustiça humana e, no outro, da justiça divina. Egoísmo, consumismo, “particularismos”, materialismo… só podem ser superados quando somos contagiados pelo amor de Deus, que tem no seu centro a justiça para todas as pessoas, sem levar em conta merecimento ou apadrinhamentos. Na reflexão sobre a justiça de Deus, não podemos esquecer o que ela significa em relação à criação como um todo, ao meio ambiente. Só o amor de Deus transformou a crueldade humana, estampada na cruz de Cristo, em salvação para a humanidade toda. Sugerimos que de fato se leve uma balança e se explore essa imagem, mesmo sabendo que nossa justiça é sempre parcial e local.
5. Subsídios litúrgicos
Sugerimos a liturgia constante no Livro de Culto, p. 154-156, sob o título: “Porque Deus nos serve, promovemos a justiça”. Na oração de intercessão pode ser cantado o refrão: Dá, Senhor, pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão.
Bibliografia
BARTH, Gerhard. A Carta aos Filipenses. São Leopoldo: Sinodal, 1983.
KÜMMEL, Werner G. Introdução do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).