Prédica: Filipenses 3.7-11
Autor: Romeu Martini
Data Litúrgica: 9º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 27/07/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — Surgimento da comunidade e fundamento teológico
Segundo o relato de At 16.11ss, Paulo chega em Filipos na sua segunda viagem missionária (ano 49). Filipos foi a primeira cidade europeia visitada por Paulo, e os fatos mostram que o apóstolo teve êxito na sua missão de fazer discípulos (Mt 28).
Os primeiros contatos de Paulo em Filipos foram: com um grupo de mulheres, ocorrendo a conversão de Lídia(At 16.13-15); a cura de uma jovem possessa de espírito adivinhador(vv. 16-18); a conversão do carcereiro (vv. 27-32), sendo que este último fato já foi consequência do segundo.
Os fatos mostram que o surgimento da comunidade em Filipos aconteceu não sem conflitos. Afinal, a pregação e ação do apóstolo de saída destruíram a fonte de renda de alguns senhores (16.19a), renda esta que estava embasada no uso de um ser humano! Por tudo isso, Paulo, juntamente com seu companheiro, são acusados de perturbar a cidade e propagar costumes contrários à prática vigente (vv. 20-21).
Qual a proposta de Jesus e como ela está presente em Paulo? Os termos mulheres, cura, conversão, não sem conflitos, de saída, uso, permitem responder a esta questão. Ou seja: a proposta de aç3o de Jesus foi a opção pelas vítimas da sociedade (especificamente lembremos: Mt 25.31-46; Lc 4.16-21). Foi uma opção visível e radical (Lc 6.20-26: bem-aventurados e ai de vós! Paulo curou a jovem e quebrou a fonte de renda). Foi uma opção que trouxe consequências (Jesus foi levado à cruz, Paulo ao martírio). Portanto, foi uma opção em oposição às normas e costumes da sociedade dominante do então.
II — Paulo e sua Teologia na Epístola
Desejo apontar para alguns aspectos relevantes da teologia paulina presentes na Epístola aos Filipenses.
a) Paulo escreve da prisão! E ele está preso por causa da sua fidelidade à proposta de Jesus (Fp 1.16).
b) Paulo tem um relacionamento cordial com a comunidade de Filipos; até recebe donativos da mesma (2.25; 4.10-20).
c) Partindo da sua fidelidade à proposta de Jesus, ele:
1. Exorta a comunidade para que fique firme no que o apóstolo ensinou e praticou (4.9).
Concretamente isso se mostraria:
— no amor que conduza justiça (1.9-11);
— na unidade da comunidade (1.27b e 2.2-4);
— no fato de não dar margem para intimidações por parte dos adversários (1.28a);
— na irresponsabilidade como luzeiros no mundo (2.15);
— na ocupação com o que é verdadeiro, justo, puro (4.8).
2. Orienta a comunidade no tocante aos cães e maus obreiros (3.2). Quem são eles? São elementos judaico-cristãos (firmes na lei, 3.2; na carne, v.3). Perseguidores de Cristo. São inimigos da cruz de Cristo (3.18). Têm tendências gnósticas, pois afirmam o valor do espírito e conhecimento, o que lhes permite usar o seu corpo e o dos outros ao bel-prazer(3.19b).
3. Revela alegria, mesmo na prisão. A prisão não impede a propagação do Evangelho (1.12). Muito pelo contrário (vv. 13-14)!
d) Na Epístola aos Filipenses Paulo desenvolve também a teologia da cruz. Neste sentido, a alegria que Paulo expressa (4.10; 2.2; 1.4), com a qual e para a qual ele também quer motivar a comunidade, não é aparente, nem fuga do sofrimento, muito menos expressão de uma teologia da glória, mas fruto do poder, da força, da garra, da convicção, da persistência produzidos pelo sofrimento decorrente do seguimento da proposta de Jesus. Ou seja: da fidelidade à proposta de Jesus, sob prisão ou morte, brotam a alegria e a certeza de que nada e ninguém pode abafar ou eliminar a força do Evangelho.
III — A perícope
a) Contexto
A perícope indicada (Fp 3.7-11) encontra-se inserida no contexto dos capítulos 3.1b-4.1, onde Paulo faz um severo ataque contra os que ele chama de cães e maus obreiros (3.2). E a fundamentação para o que Paulo dizem 3.7-11 é o que está nos vv.2-6 do mesmo capítuIo: cuidado com os cães!; cuidado com os que se agarram na lei, na carne! Cuidado com os que seguem alguns preceitos legais, mas que empenham a vida naquilo que fere e contradiz a proposta deixada por Jesus. Paulo procura clarear à comunidade que os cães e maus obreiros defendem exatamente isso que ele defendia enquanto era ferrenho caçador de cristãos (vv. 5-6).
E é bom que entendamos: eliminar os seguidores da proposta de Jesus seria atender o desejo da classe dominante! Não atendendo este desejo, surge automaticamente a perseguição.
b) Análise do texto (cf. Almeida)
Penso que a perícope pode ser dividida em três partes significativas:
1 — vv. 7-8: lucro = perda, refugo x causa de Cristo.
2 — v. 9: justiça dos homens (lei) x justiça de Deus.
3 — vv. 10-11: participação nos sofrimentos, morte e ressurreição de Cristo x proposta dos gnósticos.
Vejamos a análise pormenorizada destas três partes:
1. Paulo (Saulo) era caçador de cristãos por convicção. Tinha o respaldo da lei (autoridade). Baseando sua ação naquilo que na epistola ele atacava veementemente (vv. 5-6), o apóstolo considerava lucro (v. 7) sua ação contra a proposta de Jesus. No entanto, agora, convencido por esta mesma proposta de Jesus (v. 7b), ele coloca tudo ao nível da perda (8a). E esta palavra é decisiva no texto! Perda (vv. 7b e 8a, conf. Almeida), bem como refugo (v. 8b) tem no grego a mesma raiz: ZÊMIA, o que significa: lama, sujeira, bosta, lixo, esterco. Quer dizer, Paulo tem em sua vida a experiência de uma mudança radical: de caçador de cristãos (o que contentava o sistema vigente!) ele é transformado em defensor da causa cristã (o que lhe traz perseguição). Fica evidente a contradição e incompatibilidade entre a proposta do Jesus e as propostas que até podem ter certa semelhança com a mesma (no caso, os cães agiam em nome de Deus, mas o fim especifico contradizia ao todo da proposta de Jesus!).
2.0 v.9 trata da justificação por fé em contraposição à justifica cão pelas obras da lei defendida por Saulo(!) e os cães e maus obreiros atacados na epístola. Vejamos! Saulo e os quo Paulo ataca criam que a observância de um determinado número de preceitos e regulamentos permitia à pessoa alcançar, por si mesma, o estágio da aceitabilidade de Deus: justificação pelas obras e/ou pela lei. Ou seja: o auto-esforço na observância de leis (das quais a gente mesmo pode participar na elaboração!) conduz à perfeição, à justiça própria (v.9a). A justificação por fé, porém, ao contrário, procede do fato de o elemento ser achado (v.9a) por Cristo. E a partir disso o achado age por convicção, na defesa de uma causa, e não por interesses. E a causa de Paulo é a proposta de Jesus.
Sob este prisma, que é o oposto da justiça própria, ou auto-esforço, a fé, a convicção em torno da proposta de Jesus é que motiva o crente e convicto a agir. É o que Paulo faz! E é o que o apóstolo também tenta esclarecer à comunidade que sofre a interferência destes que criam confusão (3.2). Ao mesmo tempo, a justiça que procede de Deus (v.9b) também faz com que o justificado não e nunca sinta ter alcançado o estágio da perfeição e irrepreensibilidade, o que fazia parte da ação dos cães. Paulo desenvolve este aspecto nos vv.12-14, que opcionalmente podem ser anexados à perícope em pauta (considero, no entanto, realmente serem os vv.12-14 opcionais).
3. Vv. 10-11 apontam para a outra contradição profunda entre a forma como Paulo compreende a proposta de Jesus e como os cães a compreendem. Paulo aponta para a necessidade de se participar/comungar dos sofrimentos até a morte para então tomar parte na ressurreição. Que seja bem entendido: não se trata de fazer algum esforço para participar/comungar, conforme referi acima. Trata-se do fato de que a fé dá ao crente a força, a humildade para ele ir até as últimas consequências na sua ação em favor da proposta de Jesus. Portanto, ele vai porque a causa defendida o obriga a isso. O que, por outro lado, não era o caso dos cães. Sua doutrina baseava-se na observância de algumas leis; leis que admitiam o que os senhores faziam com a jovem de espírito adivinhador (lembrando Atos 16.16ss). Sem dúvida podemos falar que nos vv.10-11 especificamente Paulo aponta para a necessidade de se entender a globalidade, o todo da causa de Cristo (v.7b).
Isto é: não dá para pensar em ressurreição sem considerar a cruz e os motivos que a causaram, e que ela antecede a ressurreição. Bem como também não dá para querer o contrário! Vale, pois, que: o sinal da fé não é a glória, mas o sofrimento. Em se tratando da causa de Cristo (que eu chamo de proposta de Jesus) faz-se necessário encarar o todo. E Paulo entendeu isso. E aí também reside a alegria da sua epístola, apesar da prisão e sofrimentos.
IV — Mensagem
Podemos afirmar que a comunidade de Filipos estava entro dois fogos: ou permanecer fiel à causa de Cristo (3.7) ou aderir às propostas amenizantes, como a dos que Paulo chama de cães, onde é possível a justificação por méritos. É, pois, uma questão de opção! Trata-se de ir a favor ou contra a causa de Cristo, mesmo que a propôs ta dos cães tenha cheiro de ser cristã. Eu ainda diria assim: o acento da perícope está na insistência para com a comunidade de Filipos para que em meio à pressão não abandone a proposta de Jesus. Filipenses! Não voltem atrás, estaria dizendo Paulo. Portanto, não se trata aí de coisinhas ou detalhes. Está em jogo a opção pela vida fácil e descomprometida com a causa maior do Evangelho (3.18-19) ou a opção pelo próprio Evangelho, indo até às últimas consequências, caracterizadas por sofrimento e morte rumo à ressurreição (3.10-11).
Trazendo este recado para a atualidade, sem esquecer a história que está entre a perícope e nós, vemo-nos confrontados com estes fatos, entre outros, é claro:
a) na Igreja de hoje estamos diante da necessidade urgente (já atrasados ao meu ver!) de clarear aos obreiros(as) e membros(as) que não é possível ser cristão e ao mesmo tempo compactuar com propostas que na aparência casam com a proposta de Jesus. Analisemos esta questão olhando para a Igreja no Brasil. É exatamente também neste país que se procura conciliar a proposta de Jesus com o capitalismo. Mais concretamente isso é assim (e aqui falo da situação concreta, do Sitz-im-Leben da área de ação do meu pastorado): pensa-se que a comunidade cristã pode coexistir com proposta de Lions, politiqueiros, exploração no preço dos produtos agrícolas, exploração dos trabalhadores, crescimento do latifúndio junto com o aumento das famílias dos sem-terra. Usando linguagem de Paulo eu diria assim: há acentuada tendência na Igreja dos que pensam ser viável a coexistência (e ainda pacífica!) da proposta de Jesus com as ideias e atos dos cães (ser cristão, mas acompanhar com naturalidade a sociedade tal qual ela se nos apresenta!). Precisamos urgentemente clarear esta questão. Alguns foram levados pela ideologia dominante a aceitar o fato como normal. Outros, no entanto, o defendem para tirar proveito próprio. E outros, graças a Deus, já entenderam a questão, o neste caso o posicionamento da Igreja seria motivo de apoio para uma luta em defesa e continuidade da proposta de Jesus (eu diria: rumo à nova sociedade!).
b) outra questão que obreiro(as) e membros(as) devem entender é o fato de que na fidelidade à proposta de Jesus há o iminente risco do sofrimento e morte. Em palavras simples: precisamos compreender que se vamos optar pela proposta de Jesus corremos o risco de ir pro pau. Aliás, pelo meu ponto de vista, há poucos evangélicos de confissão luterana (como cristãos em geral) presos e enrolados com os poderosos aqui no Brasil porque a covardia deles é maior que a opção em favor da proposta de Jesus. A Igreja corre dos cães que atacam a proposta de Jesus hoje (salvo raras exceções). Entre perseguição e cadeia como sinal de fidelidade ao Evangelho (à proposta de Jesus) e opressão sob o domínio dos que são contra o Evangelho a maioria opta pela segunda possibilidade. E não quero ser tendencioso ou pessimista. Não mesmo! Especialmente os que ainda têm segurança de sobrevivência em meio ao sistema capitalista permanecem fiéis à teologia da conciliação! (tipo Partido da Frente Liberal). Com isso, continua o famoso jogo de cintura. Sendo que Paulo optou, indo até as últimas consequências desta opção. E na perícope ele motivou os filipenses a segui-lo nesta mesma opção. Nem por isso podemos negar o fato de que no Brasil há inúmeros movimentos e organizações que procuram ficar fiéis à proposta de Jesus, indo até às últimas consequências, lutando por uma sociedade justa e fraterna (bom exemplo disso são os sem-terra que ocuparam terras devolutas aqui no extremo-oeste catarinense e estão dispostos a lutar até conseguir terra definitivamente).
c) o compromisso para com a proposta de Jesus não surge de cálculos ou empreendimentos próprios. Vejo que ele surge da análise da realidade dura e cruel na qual vivemos, da descoberta de que esta sociedade que aí está é conscientemente assim planejada, mas que por outro lado há alternativa (a proposta/causa de Jesus Cristo!). O compromisso surge não por imposição, mas como fruto da constatação de que Jesus Cristo nos antecedeu na caminhada rumo a uma so-ciedade nova (que Paulo descreve, por exemplo, em Fp 2.2-4). O compromisso surge tanto maior, quanto maior for a alegria para com a causa do Evangelho. E com essa alegria também nós precisamos ser contagiados e contagiar outros! Trata-se de descobrir a alegria em meio às perseguições e morte por causa do Evangelho. Trata-se de entender que sem morte não há ressurreição. Trata-se de abandonar a concepção do Jesus glorioso e em lugar dele assumir o Jesus no caminho da cruz.
V — Dicas para a prédica
a) descrição breve do surgimento da comunidade de Filipos.
b) mostrar que o fundador da comunidade está preso e dizer o porque da prisão: At 16.16-26 é um exemplo; mas o apóstolo coloca tudo como consequência de sua opção em defesa do Evangelho (Fp 1.16). E mostrar que a epístola surge na prisão.
c) mostrar o específico da perícope: defesa da causa de Cristo em contraposição às tentativas de amenizar a opção cristã, ou de revestir o Evangelho com panos velhos (leis, gnosticismo).
d) clarear o conflito que vivenciamos hoje: a sociedade está dividida. A criação de Deus está estragada. Não dá para remendar! Urge transformação! E os cristãos participam desta transformação na medida em que optam pela causa de Cristo, indo até às últimas consequências (perseguição, calúnia, morte).
e) da radicalidade desta opção (é preciso estar consciente do risco que se corre; é preciso estar disposto a perder tudo) surge a possibilidade de alcançar a libertação em vida (nova sociedade e alegria daí decorrente) e na morte (ressurreição).
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Deus, Senhor da vida e da história! Lembrando o que Jesus fez e disse; lembrando sua decisão total (para não dizer opção radical) em favor da vontade do Pai, trazemos a ti nossa frieza, nossa indiferença, nossas desculpas diante do desafio do Evangelho. Perdão, Senhor, se aceitamos com naturalidade o fato de o Brasil e também as comunidades cristãs estarem divididos em ricos e pobres, patrões e empregados, ladrões e roubados. Perdão, Senhor, pelo precioso tempo que gastamos para encontrar desculpas diante do desafio da proposta de Jesus. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Deus, nosso Pai! Reconhecemos quo tua Palavra é a fonte certa da orientação que necessitamos para falar e agir como teus filhos e tuas filhas fiéis. Ilumina-nos com o teu Espirito Santo, a fim de que possamos compreender corretamente a Palavra que agora será lida e que possamos sair daqui dispostos e decididos a praticá-la. Amém.
3. Assuntos para a oração final: A partir da situação da comunidade: 1.°) agradecer(citando exemplos/nomes) pelos que no passado e presente optam(ram) pela proposta de Jesus, e 2.°) interceder em favor das situações/casos em que se precisa agir e também intervir em nome de Deus, almejando transformação.
VII — Bibliografia
– CAFIERO, C. O capital. Uma leitura popular, 3a. ed.,-São Paulo, 1983,
– Jesus, sua terra, seu povo, sua proposta. Ação Católica Operária, n.° 4, São Paulo.
– SCHELKLE, K.H. Teologia do Novo Testamento. Sua história literária e teológica, São Paulo, 1977, p. 163-165.