Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Gálatas 4.4-7
Leituras: Isaías 61.10 – 62.3 e Lucas 2.22-40
Autor: Cristina Scherer
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 28 de dezembro de 2008
1. Contexto da Epístola aos Gálatas
Durante sua segunda viagem missionária, Paulo chega à região da Galácia (At 16.6.), passando por lá uma segunda vez no início da terceira viagem (At 18.23). Trata-se de uma região, e não de uma cidade. O nome gálatas origina-se dos gauleses, que emigraram da Europa para uma região da Ásia Menor, atual Turquia, no século II a.
Após a segunda visita de Paulo à região, começam a surgir problemas nas comunidades fundadas. Os judaizantes queriam impor aos gentios convertidos a circuncisão e a observância da Lei de Moisés (Gl 1.6ss; 5.7-12). Algumas pessoas das comunidades também questionavam a legitimidade apostólica de Paulo (Gl 1.1-2).
Paulo passa a defender sua atuação de apóstolo e de anunciador do evangelho de forma veemente (Gl 1.6-2.10). Passa a combater o legalismo de judaico-cristãos, exortando as pessoas convertidas ao cristianismo a permanecer firmes no amor, pois no amor ao próximo está a plenitude da lei. Paulo convida os leitores da carta a se deixar guiar pela liberdade cristã e pela ação do Espírito que produz frutos visíveis na vida das pessoas (Gl 5.13-26). Convida as pessoas a optar se desejam viver segundo o instinto humano, egoísta, que conduz à morte, ou viver guiado pelo Espírito, que conduz à vida eterna.
O livro de Gálatas apresenta a seguinte temática: fé, liberdade cristã, carne x espírito, lei do amor, igualdade em Cristo, frutos do Espírito, tudo isso ligado ao tema central: a salvação em Cristo, oferecida pela graça de Deus, o que nos torna livres, libertos para lutar pela libertação num mundo de opressões.
2. Estrutura da epístola e do texto
A Epístola aos Gálatas está estruturada da seguinte forma: Introdução, endereçamento: 1.1-5
Censura: 1.6-10
Demonstração da origem da autoridade apostólica de Paulo: 1.13-2.21
Demonstração de nossa filiação divina pela fé em Cristo: 3.1- 4.7
Consideração sobre a liberdade em Cristo: 4.8-31
Exortação sobre a nova criatura em Cristo: 5.1-6, 10
Conclusão: 6.11-18
Nossa perícope está na segunda parte dessa carta, que trata da filiação divina pela fé em Cristo. Inicia em 3.1-5, onde consta uma repreensão aos Gálatas; em 3.6-9, Paulo usa como exemplo o patriarca Abrão, quando convida a comunidade a ser como os que são pela fé; 3.10-14 afirma que não há conciliação entre lei e fé; 3.15-18 aborda a supremacia das promessas sobre a lei; 3.19-22 aborda o porquê da lei; 3.23-25, tempo da fé e prazo da lei; 3.26-29, filhos de Deus pela fé em Cristo e ao mesmo tempo descendência de Abraão; 4.1-7, encarnação de Cristo e nossa adoção filial.
O texto de Gálatas 4.1-7 é a conclusão da parte central da Epístola aos Gálatas e ponto culminante da mesma. Aqui há o fundamento da filiação divina da pessoa cristã no ato do envio por parte de Deus de seu Filho e do Espírito Santo. O apóstolo Paulo comunica a filiação divina dos cristãos a partir da encarnação de Jesus Cristo, o filho de Deus, ele que é nascido de mulher e nascido sob a lei. Paulo enfatiza a realidade da encarnação – tornar-se carne – como fundamento da divina adoção filial dos cristãos.
O texto estrutura-se da seguinte forma:
v. 1-2: período anterior à encarnação;
v. 3: período de transição, contempla o passado e prepara a grande revelação do ponto posterior;
v. 4-6: fala do tempo a partir da encarnação, ponto central do texto, onde é enfatizada a divina adoção filial dos cristãos como dom recebido. Assim, o tempo da divina adoção filial afirma que ser filho e filha de Deus significa que a vida das pessoas cristãs deve espelhar e refletir no próprio ser a realidade do Filho unigênito de Deus. Como filhos e filhas de Deus, somos imagem de Jesus Cristo, encarnação do Verbo. O grito e os clamores dos cristãos são os mesmos do Filho de Deus;
v. 7: aqui Paulo apresenta uma conclusão e a recapitulação do que foi dito acima: o tempo antigo, antes da encarnação, era de escravidão; agora, o novo tempo é de filhos, filiação, amor do Pai que nos acolhe junto ao Filho unigênito. O tempo da menoridade ficou para trás; agora, já vivendo o novo tempo, da maturidade da fé, não é mais possível voltar ao estágio anterior de menoridade.
3. Mensagem
Sentimos os ares natalinos. Festas e comemorações na comunidade cristã e na família estiveram presentes em nossos dias. Agora surge a expectativa pelo tempo novo. Sentimentos de gratidão pelo que já passou e de confiança no Deus da vida permanecem conosco. É tempo de reflexões e avaliações pessoais, de buscar novos horizontes, de fundamentar nossa vida no amor de Deus. Tempo de reconhecer que nossa fé surge pelo ouvir da palavra de Deus, que é lei e evangelho, graça e juízo.
Sem orientação clara e direta não podemos subsistir. Como cristãos, precisamos de leis, ensinamentos, conselhos que servem de bússola para nossa caminhada como povo de Deus. Sem essa palavra que nos dá a lei ficaremos desorientados, perdidos neste vasto mundo. Mas essa palavra não revela somente uma lei que nos quer subjugar, escravizar; antes ela pretende nos libertar para servir a Deus e ao próximo em amor. Amor que o próprio Deus revela a nós quando decide vir ao nosso encontro em Jesus Cristo.
Assim, para sermos lembrados desse imenso amor de Deus por nós, é essencial que falemos da encarnação de Deus na humanidade, do envio de seu Filho Jesus Cristo ao mundo. No evento da encarnação, o amor de Deus expressa-se num determinado momento histórico da humanidade. Ali fica claro que somos adotados pelo Pai. Deus torna-se um pai amoroso, e podemos chamá-lo de Abba, paizinho querido, assim como fez Jesus.
Com Deus passamos a ter uma relação de Pai-filho/filha, quando o Espírito de seu próprio Filho está conosco, o qual clama: Abba, Pai. Paulo afirma que, por causa de Cristo Jesus, já não somos mais servos, mas passamos para a condição de filhos, ou seja, não estamos mais debaixo da lei, visto que a observância rígida e exclusiva da lei gera servos e não filhos, e se somos filhos, somos também herdeiros por Deus. Em Hebreus 1.21* diz que Cristo é o herdeiro de tudo. Portanto, sendo ele o herdeiro de tudo, nada sobrou para ninguém. Entretanto, Deus em sua infinita misericórdia também nos faz participantes das promessas em Cristo pelo evangelho. Está claro que sob a lei, numa condição de servidão, o ser humano não tem direito à herança. Daí a razão de Deus, na plenitude dos tempos, ter enviado seu filho para nos resgatar debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos, porque só os filhos têm direito à herança.
Gálatas 4.1-7 afirma que o tempo em que vivemos é de plenitude, porque nesse tempo, nessa história da humanidade, Deus enviou seu Filho, não de qualquer maneira, mas “nascido de mulher e sujeito à lei”, quer dizer, semelhante em tudo a nós, em nossa humanidade e em nossos condiciona- mentos históricos. Mas esse “rebaixamento” do Filho de Deus alcançou-nos a maior das graças: a de chegarmos a ser filhos de Deus, capazes de chamá-lo Abba – Paizinho querido!
Nossa condição filial fundamenta uma nova dignidade de seres humanos livres, herdeiros do amor de Deus. Assim, como herdeiros desse amor, somos convidados pelo bondoso Deus a nos apropriar de nossa dignidade de filhos livres, rechaçando os males pessoais e sociais que nos angustiam e oprimem, lutando juntos contra eles, a fim de que reinem a justiça e a paz que Jesus Cristo veio anunciar ao mundo.
Nascido de mulher, nascido sujeito à lei – recorda Paulo (Gl 4.4). Jesus nasceu na fraqueza, na pobreza, fora da cidade, numa gruta, porque não havia lugar para ele na pousada. Nasce na mesma situação que o conjunto do povo, simples, humilde, destituído de poder. Esse nascimento real e concreto foi assumido por Deus para abraçar no amor todos os que a tradição havia deixado de lado. É a visita real daquele que, por simples misericórdia, dá-nos a graça de poder chamar com familiaridade a Deus de Abba – “paizinho” – e a possibilidade de considerar todos os homens e mulheres como irmãos muito amados.
Em Jesus, nascido de mulher, todos os seres humanos foram declara- dos filhos e não escravos, declarados co-herdeiros, por vontade do Pai. A bênção ou benevolência de Deus para com os seres humanos dá um grande passo: Deus já não abençoa com palavras, agora abençoa todos os seres humanos, e ainda toda a criação, com a própria pessoa de seu Filho, que se faz irmão de todos. E ninguém fica fora de seu amor. Desde o Antigo Testamento, o povo de Israel experimentava a graça e o amor de Deus que faz brotar a salvação e permite que a vitória brilhe como o sol (Is 61.10ss). Essa salvação é anunciada ao povo quando Jesus é apresentado no templo, “porque meus olhos viram a salvação que preparaste na presença de todos os povos” (…), pois esse menino “foi escolhido por Deus tanto para salvação quanto para a destruição de muita gente” (Lc 2.29ss). Em Jesus, nascido de mulher em meio à dor, Deus revela sua bondade, seu amor, sua misericórdia e graça sem par e anuncia libertação de todo jugo da lei que domina e escraviza o povo.
É a situação de filhos e filhas de Deus que nos dá condições para lutar pela dignidade do ser humano, por uma vida justa, por direitos iguais numa sociedade tão desumana. Não podemos nos deixar escravizar pela lei do mais forte, pela lei do mercado, pela lei da corrupção e falsidade. Como herdeiros do reino de Deus, somos convidados a anunciar a palavra do evangelho que liberta, que é verdade que produz vida, acolhimento, entendimento, que traz paz, humildade, benevolência e domínio próprio, e contra essas coisas não
há lei (Gl 5.23).
4. Imagens para prédica
Os braços compridos de Deus
Radiante de alegria, a menina correu para o pai com um papel na mão:
– Papai, olha só o que eu desenhei.
O pai olha a “obra de arte” da filha, mas não entende bem o significado do desenho: ao pé da folha ela desenhara uma porção de rabiscos, um perto do outro; mais acima, estava um vulto bem grande, com braços enormes, estendidos para baixo.
– O que é para significar isso? – perguntou o pai. A menina procurou explicar o desenho:
– Aqui embaixo, essas pequenas linhas são as pessoas, somos nós. E esse grande, ali em cima, é Deus.
– Mas esse teu Deus parece meio desengonçado e desproporcional. Eu nem o acho muito bonito. Seus braços são compridos demais – retrucou o pai.
– Mas papai, disse a filha um pouco chateada, exatamente aí está a beleza de Deus. Porque, para alcançar e abraçar todas as pessoas, ele precisa ter braços muito, muito compridos.
O pai deu um beijo na filha e afastou-se um pouco envergonhado, pois tinha recebido um sermão muito profundo através de um simples desenho de criança: como poderíamos chamar o poderoso e eterno Deus de pai se ele não tivesse braços compridos, com os quais ele quer abraçar cada pessoa, seja ela rica ou pobre, idosa ou jovem, e demonstrar-lhe seu imenso amor?
Quando Jesus ensina o Pai-Nosso, ele quer mostrar que Deus é muito maior do que nós podemos imaginar. Mas que ele, mesmo assim, “é o nosso verdadeiro Pai”, no qual podemos confiar sempre, e “que quer atrair-nos carinhosamente” e que somos “os seus verdadeiros filhos, para que lhe roguemos sem temor” – (Lutero).
5. Subsídios litúrgicos
Versículo de acolhida:
“Vejam como é grande o amor do Pai por nós! O seu amor é tão grande, que somos chamados filhos e filhas de Deus” (1 Jo 3.1a).
Confissão de pecados:
Sou teu filho, Senhor, sou tua filha. Tantas coisas tenho para te dizer neste tempo em que se respira Natal, que finaliza o ano. Tantos pecados tenho para te confessar, caminhos a endireitar. Tu sabes, Senhor, o quanto me afastei de ti e de teus ensinos neste ano em que vivi pela tua graça e bondade. Ó Pai, perdoa os erros, perdoa as faltas, perdoa as caídas e tropeços. Estende teus braços compridos ao meu redor e não permitas que me afaste de ti e me esqueça de teu amor. Dá-me o calor de teu abraço e a certeza de teu perdão por causa de teu amado Filho e Salvador, Jesus Cristo, o Senhor. Dá-me o teu perdão, pois sou teu filho, Senhor, sou tua filha. Graças e louvor para todo o sempre. Amém.
Absolvição dos pecados:
Em Cristo, os braços de Deus tornam-se mais compridos, para nos alcançar;
Mais fortes, para nos segurar; mais humanos, para nos compreender; Mais divinos, para nos perdoar; mais sensíveis, para nos prender a seu infinito amor!
“Todos aqueles que Deus aceita e que recebem como presente a sua imensa graça reinarão na nova vida por meio de Cristo” – (Rm 5.17b).
“Imenso é seu amor, sem fim sua bondade para todos os que na terra o seguem na humildade. Bem forte é nosso Deus, levanta o seu braço, espalha os soberbos, destrói todos os laços”.
Cantemos glória a Deus nas alturas e paz entre nós!
Oração final:
Deus amoroso e misericordioso, que nos abraça em tempos difíceis e nos consola, que perdoa nossos pecados e nos faz recomeçar com novas forças, que nos orienta e não permite que nos percamos na escuridão da solidão e da falta de esperança, a ti chegamos e abrimos nossos corações (…)
Colocar os pedidos de intercessão, de acordo com cada realidade.
Em meio a tantos sinais de desamor, angústia e falta de esperança, ajuda-nos a nos concentrar na boa-nova que mudou o mundo: Hoje nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, Cristo, o Senhor. Amém.
Hinos:
Bom é estarmos unidos; Vede que grande amor (intercalado nas leituras bíblicas); Virá o dia em que que todos (O Povo Canta, n. 40).
*A leitura de Hebreus 1.1-12 também pode ser utilizada durante o culto como leitura opcional.
Bibliografia
SANTOS, Nilson Faria dos. Adoção filial e plenitude do tempo/plenitude dos tempos: Estudo exegético-teológico de Gl 4,1-7 e Ef 1,3-10. V. 1. Rio de Janeiro, [s.n.], 2005.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO, v. 10. Paulo e suas cartas. São Leopoldo: CEBI; São Paulo: Paulus, 2000.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).