Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Gálatas 4.4-7
Leituras: Isaías 11.1-9 e Lucas 2.1-7
Autor: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/2010
1. Introdução
“Acendemos uma luz, em nome de Deus:
Ele iluminou o mundo e nos deu o sopro da vida.
Acendemos uma luz, em nome do Filho:
Aquele que veio ao mundo,
Nascido na estrebaria,
E estendeu sua mão em nossa direção.
Acendemos uma luz, em nome do Espírito Santo:
Ele circunda o mundo e abençoa a todos
Com esperança insistente.
Três luzes para a Trindade do amor:
Deus sobre nós,
Deus conosco,
Deus em nosso meio.”
Há muitas luzes neste tempo de Natal. As pessoas buscam por momentos e mensagens que lhes devolvam a esperança. Tem-se a impressão de que a felicidade está distante, a paz não é possível. Isaías (11.1-9) projeta para o reinado de Ezequias o sonho de uma sociedade diferente. Esse reinado estará alicerçado no Espírito de Deus e no temor a Ele. Haverá justiça e fidelidade. A paz e a harmonia reinarão.
O Novo Testamento (Lc 2.1-7) vê o cumprimento da profecia no nascimento de Jesus, num tempo histórico definido. Tempo de dominação romana sobre a Palestina, tempo de recenseamento, do jugo de impostos pesados, de muita exclusão e abandono social: não havia lugar para José e Maria.
Nesse tempo, Deus envia Seu Filho, nascido de mulher (Gl 4.4-7). Deus quer resgatar seu povo para que, de escravo do domínio e da lógica econômica, sociopolítica e religiosa, possa experimentar e viver algo novo: ser filhos e filhas de Deus. Viver a partir dessa relação de adoção, de entrega, de confiança, para um novo “vir-a-ser”: herdeiros do reino de Deus. Não mais escravos que tudo precisam fazer por obrigação, mas filhos e filhas que vivem novas relações por causa de sua fé, no Deus que age e é gracioso. Isso ainda é muito atual, pois também vivemos sob leis, não só jurídicas. Há uma “lógica” que perpassa todas as áreas da vida. Essa está nos escravizando. Ainda hoje, necessitamos aprender a viver uma relação filial que Deus nos deu em Jesus. Isso é Natal!
2. Exegese
A Carta aos Gálatas é destinada aos moradores da região da Galácia (Ásia Menor – At 16.6). O apóstolo Paulo visita essa região em sua segunda viagem missionária. Os moradores são gauleses, procedentes da Europa no século II a.C.
Diante de uma série de conflitos que surgem nessas comunidades, Paulo escreve essa carta, em que aborda os seguintes temas: fé, liberdade cristã, carne x espírito, lei do amor, igualdade em Cristo, frutos do Espírito. Todos esses temas são perpassados pela mensagem central: a salvação em Cristo, oferecida pela graça de Deus, que nos torna livres e produz frutos visíveis na vida pessoal e no entorno, modificando relações assimétricas existentes no contexto.
A Carta aos Gálatas pode ser considerada a epístola da liberdade e da justificação pela fé. A perícope indicada faz parte da segunda parte da carta e trata da filiação divina pela fé em Cristo. Ela é a conclusão de parte central e está estruturada desta forma:
V. 4 – Fala do tempo ou marco divisório do agir de Deus. A plenitude do tempo não quer dar margem à discussão sobre a razão de ser nesse ou naquele tempo a vinda de Cristo ao mundo. Mas, sim, Deus é um Deus que age e intervém na história concreta de sua criação. Não é apenas o Criador, que, após a criação, fica distante, apático, olhando tudo de longe. Em Jesus, Deus “desce”, nascido de mulher, neste mundo, sob a lei, sob as normas, costumes, tradições, conflitos e rupturas que a realidade contempla.
V. 5 – Paulo dá a entender que há um perigo rondando a comunidade: há judeus querendo impor aos gentios convertidos a circuncisão e a obediência à lei de Moisés, como condição para a filiação de Deus. Ele afirma que a vinda de Cristo é a virada da história. Não são as leis e o cumprimento dos preceitos que nos fazem herdeiros de Deus. Mas é Ele mesmo, com o envio de Jesus ao mundo, que salva. A lei faz com que as pessoas acreditem obter a salvação a partir de méritos próprios. Paulo compreende o viver sob a lei como o ser escravo(a). O Filho de Deus, nascido sob a lei, veio resgatar os que vivem sob o seu peso, a fim de “vir-a-ser” (receber a adoção) de filhos e filhas.
V. 6 – A divina adoção filial dá ao coração (ao âmago) o Espírito do Filho de Deus. Esse novo ser que recebemos corresponde ao novo espírito, a uma nova mentalidade, um novo querer e agir. É a ousadia e a confiança de dirigir-se a Deus “como filhos amados ao querido Pai” (M. Lutero, no Catecismo Menor). Abba é a expressão usada pelas crianças ao querido pai. Expressa relação estreita, afetiva, de entrega, de segurança, de redenção.
V. 7 – Essa nova relação não permite um viver escravizado. A relação filial não é escrava. Amor de pai, amor de mãe confere autonomia e liberdade aos filhos e filhas. E a quem Deus torna filhos e filhas por graça, esses se tornam herdeiros de seu reino. Sob o jugo da lei, numa observância rígida e cega, somos escravizados e muitos, excluídos. Nessa condição, não há direito à herança. Daí a razão pela qual, na plenitude dos tempos, enviou o seu Filho para resgatar os que estavam sob a lei para receber a adoção de filhos e filhas. Somente filhos e filhas recebem a herança.
Chamo a atenção para a reflexão de Haroldo Reimer no PL 30. Ele sugere que se busque um destaque mais positivo da Torá (Lei). A fé em Jesus não revoga ou abole a lei. Jesus mesmo disse que não veio para revogar a lei, mas para cumpri-la. O autor diz: “No caminho da pessoa rumo à liberdade, a Lei/Torá é um esteio importante para conduzir a pessoa, a comunidade ou o povo para uma vivência eticamente regrada” (p. 34). A vivência em sociedade necessita de regras claras e limites. É preciso manter uma “dialética entre a vivência da liberdade na fé e o serviço no amor e na letra dos mandamentos éticos” (p. 35).
3. Meditação
Em nossos dias, a noite de Natal está carregada por uma prática simbólica, permeada por ritos e tradições. Diz-se que as pessoas estão mais predispostas a atitudes humanitárias, de generosidade, de reconciliação e de paz. Muitas celebrações de encerramento do ano aconteceram: grupos de trabalho nas comunidades, entidades, clubes sociais, escolas etc. Também as indústrias, os comércios procuram marcar esse tempo com algumas gratificações aos funcionários e colaboradores. Tudo isso dentro da lógica do “dar para receber”. Creio que o maior desafio para a pregação cristã nesse dia é diferenciar dos sentimentalismos e dos apelos que muitas mensagens natalinas nos remetem. Os textos previstos podem ajudar-nos muito.
A perícope de Lucas 2.1-7 situa historicamente o nascimento de Jesus. Deus vem ao mundo num tempo determinado. Tempo de recenseamento, de recontagem da população não para melhorar suas condições de vida, mas para melhor recolher impostos. José e Maria, filhos desse tempo, obedecem à ordem do imperador e colocam-se a caminho. E Deus escolhe esse casal, da descendência de Davi, para dar à luz a Seu Filho. Mesmo assim, como talvez para tantos outros, não havia mais lugar. Em tempo de dominação, há muito sofrimento, exclusão e indiferença. Quem se importa com um casal de migrantes pobres, cuja mulher está prestes a dar à luz? Pois é justamente aí que Deus se manifesta e está presente.
Em Gálatas 4.4-7, Paulo novamente se reporta à vinda de Jesus como a plenitude do tempo: o marco divisório da vida sob a lei e sob o amor e a graça de Deus. Sob a lei não há lugar para todos(as). Alguns não merecem, não fazem por merecer. Porém, sob a graça de Deus, as pessoas são resgatadas e recebem uma nova condição: tornam-se filhos e filhas. E em seus corações recebem um novo Espírito, semelhante ao que Isaías (11.1-9) descreve como: espírito de sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, conhecimento, temor a Deus. Esse Espírito não permite que se viva buscando uma obediência cega a normas, regras e tradições, ou numa prática de vida centrada em si mesmo e em recompensas. O Espírito novo baseia-se no amor de Deus, na consciência infantil de saber-se aceito, amado, seguro e cuidado pelo Deus que veio ao mundo como Pai amoroso e querido. A partir desse amor, somos livres para ir ao encontro de todos, como Jesus o fez, especialmente daqueles que a lei excluía, dos diferentes. Deus nos faz aprender com as crianças, pois o seu prazer é interagir, buscar, conhecer e alegrar-se com crianças. As diferenças não atrapalham; ao contrário, elas é que aproximam, despertam atenção, compaixão e partilha.
Em Gálatas 4.5, certamente encontramos alusão ao nosso Batismo. Jesus Cristo, nascido de mulher, nos resgatou. Concedeu a todos o morrer da velha natureza humana para uma nova dignidade: de filhos e filhas de Deus. É aí que reside o maior presente de Natal: nossa libertação de um viver e agir centrado em nós mesmos e nos apelos da sociedade (escravidão ao capital, a imagens, etc.), para um agir livre e comprometido com a justiça e a fidelidade à vontade de Deus, onde as diferenças não são uma ameaça, mas a possibilidade criativa a amorosa para um viver em paz. “Lobo e cordeiro, leão e cabrito, bezerro e leão pastarão juntos.” Ambos descobrirão a necessidade que têm um do outro e que há formas de coexistir sem se machucar, sem se destruir ou devorar.
As perícopes remetem-nos a uma constante avaliação da maneira como vivemos essa filiação divina inaugurada por Jesus no Natal. Estamos constantemente na tensão dialética entre a ruptura e a continuidade. Mas é inegável que o que Deus fez no primeiro Natal não nos permite voltar a viver a “velha mentalidade” sem correr o risco de nos tornar escravos e de jogar fora a herança graciosa. Ser filhos e filhas é viver a liberdade que Jesus nos ensinou: a liberdade de servir em amor. É uma profunda reorientação pessoal diante de tantas propostas e apelos escravizantes.
4. Imagens para a prédica
1 – Proponho que se motive a comunidade a pensar nos mimos e presentes e gratificações que receberam nos últimos dias. Também pedir que cada um pense nos critérios que usou para presentear pessoas nesse Natal. Normalmente pensamos: “Recebi porque mereci, participei, trabalhei, me dediquei etc… Vou presentear quem também trabalhou, esforçou-se, esteve a meu lado e colaborou e merece” O mérito está bem presente na economia de mercado, que perpassa todas as relações (até as afetivas). Também as “igrejas” andam vendendo o evangelho ou anunciando que a graça e as bênçãos de Deus são para aqueles que fazem por merecer. Nem precisamos abordar o presentear nas diferentes classes sociais, pois essa lógica meritória está presente em todas. Enfrentar essa lógica e apontar para o real presente de Natal e suas consequências é nosso desafio.
2 – Certo dia, no aniversário de Jesus, apareceu uma criança tímida e triste na sua casa.
– Chega mais perto, disse Jesus. Por que estás com medo?
– Eu não trouxe nenhum presente para ti, respondeu a criança.
– Oh, mas eu gostaria que me desses três coisas, disse Jesus.
– Mas eu não tenho nada para te dar, respondeu a pequena encabulada.
– Podes dar-me o desenho que fizeste hoje de manhã?, perguntou Jesus.
– Ninguém gostou desse desenho, disse a criança com tristeza.
– É por isso mesmo que eu o quero, disse a criança na manjedoura. Quero que sempre me dês aquilo que os outros não gostam e também aquilo que tu mesmo não gostas em ti e o que te deixa frustrada, nervosa e triste.
– É isso mesmo que queres, Jesus?, espantou-se.
– Como segundo presente dá-me o teu prato.
– Eu o quebrei hoje de manhã.
– Sim, é por isso que o quero. Quero consertá-lo. Quero que sempre me tragas o que quebra em tua vida. E como última coisa, quero as respostas que deste
a teus pais quando te perguntaram se havia quebrado o prato.
Aí a criança ficou triste e disse bem baixinho:
– Eu menti!
– Eu sei, respondeu Jesus. Mas quero que tragas sempre para mim o que
está errado: tua maldade, as mentiras, tuas tristezas, tua inveja, tua falta de confiança. Não precisas carregar tudo isso contigo. Quero libertar-te e, a partir de
hoje, podes vir sempre conversar comigo. Hoje, no meu aniversário, é um dia
especial e apropriado para fazermos um acordo:
– Minha alegria para tua tristeza,
– minha vida plena para o teu vazio,
– minha paz para tua ansiedade,
– minha verdade para tuas mentiras,
– meu amor para cada dia do novo ano,
– minha companhia para viveres em comunhão com todos.
– Obrigado, Jesus!, respondeu a criança. Assim terei um ano novo e uma
vida mais feliz!
(Adaptação de uma história do Zimbábue, África)
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida:
Barriga bem grande, pés inchados…
Cansados da viagem, com fome e sedentos,
Entraram em Belém pedindo hospedagem.
Cumpriram as ordens daquele que manda e impõe o seu poder.
Sem pensar na justiça, pois a lei da cobiça é a sede de TER!
Chegaram, bateram… andaram.
Bateram e nada se abria.
Tudo estava cheio!
Restava somente a estrebaria.
E lá se abrigaram no meio do feno, junto aos animais…
Com dores de parto, sem conforto, sem quarto…
Não aguentou mais!
E Ele nasceu! Palhas e fenos o abrigaram e lhe deram calor!
Lágrimas, sorrisos, braços e abraços o cercaram de amor…
Lá fora corria a notícia do censo e só se ouvia o agito do povo.
Mas ninguém sabia que, na estrebaria, chegava o novo Rei!
E lá estavam os animais, em ato contemplativo, numa inquieta suspeita: Pobre criança!
Será que o mundo se encanta ou será que o mundo a rejeita? Pobre criança!
(poesia do P. Jairo dos Santos)
“O reformador Martin Luther disse: Esta é a fé da misericordiosa graça que a palavra de Deus e a sua obra exigem: que você creia que Cristo nasceu para você e que o seu nascimento aconteceu para o seu bem. Pois a Escritura Sagrada não afirma apenas: Cristo nasceu, mas diz: Nasceu para vocês. Também não afirma apenas: Eu anuncio uma alegria, mas diz: Eu anuncio uma alegria para vocês.”
“De palavras e ações que provocam discórdia, preconceito e ódio, Ó Deus, liberta-nos.
De desconfianças e medos que são obstáculos no caminho para a reconciliação,
Ó Deus, liberta-nos.
De acreditar e dizer mentiras sobre outros povos e nações,
Ó Deus, liberta-nos.
Da indiferença cruel ao clamor dos famintos e desabrigados,
Ó Deus, liberta-nos.
De tudo o que nos impede de cumprir tua promessa de paz,
Ó Deus, liberta-nos.
Salva-nos de nossa própria ruína, oramos , Ó Deus,
E por tua graça e presença restauradora resgata-nos…
Para as águas de descanso e pastos verdejantes,
Ó Deus Criador, salva-nos.
Para a liberdade e perdão que encontramos em ti,
Ó Cristo Ressurreto, salva-nos.
Para a difícil tarefa de amar os nossos inimigos,
Ó Jesus, salva-nos.
Para servir-te em alegria no teu nome,
Servo de todos e todas, salva-nos.
Para a promessa de novo céu e nova terra,
Para a integridade da justiça,
Para o poder de sua paz,
Ó Espírito Santo, salva-nos hoje e nos dias porvir.
Transforma as nossas vidas e as nossas igrejas com o poder de tua paz, ó
Deus.
Domine nossos medos e enganos com a promessa de tua presença.
Faze de nós sinais de tua generosidade e justiça.
Ilumina nossos dias com a tua presença, para que andemos em tua verdade
e em teu nome sejamos uma encarnação de teu amor.
Amém.
(Em tua Graça, Livro de Cultos e Orações. CMI, p. 39-40)
Bênção:
Que o Deus “Aba” querido
Transforme a todos com o Seu amor.
A dureza de corações, em ternura.
O ódio, em compreensão e amor.
A tristeza, em alegria.
O lamento, em esperança.
A indiferença, em amizade.
A passividade, em ação.
A discórdia, em paz verdadeira.
Assim os abençoe o Deus, o Pai e Mãe, o Filho e o Espírito Santo. Amém.
Bibliografia
EM TUA GRAÇA, Livro de Culto e Orações, Nona Assembleia, Conselho Mundial de Igrejas, Genebra, 2006.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).