Filiação redime e bons poderes guardam
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Gálatas 4.4-7
Leituras: Isaías 61.10-62.3 e Lucas 2.22-40
Autoria: Antônio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 31/12/2017
1. Introdução
A indigência existencial humana é extremamente sofrida. Esvazia o cotidiano, destrói as expectativas e obscurece os horizontes, sem deixar qualquer esperança. De onde esperar um fundamento sólido, consistente e com densidade espiritual para a superação dos grandes sofrimentos?
A resposta vem de leituras profundas, de esperanças abandonadas e retomadas, da coragem heroica para afirmar que ninguém pode nos arrancar o que não recebemos de humanos, que devemos nos agarrar àquilo que nos firma a existência desde nossos tempos imemoriais, como acontece com seres humanos. E que devemos afirmar, mesmo afrontando ilusões, fantasias e ideologias, a liberdade em Cristo.
Essa foi a coragem do apóstolo Paulo na Carta aos Gálatas, já chamada de “o mais combativo dos muitos escritos combativos de Paulo”, mostrando que suporta o debate, não foge ao confronto e mantém a disposição de admitir os gentios ao evangelho – estrangeiros que não eram judeus – sem a necessidade de se submeterem à circuncisão. É o raciocínio que desenvolve nessa carta.
O apóstolo passou pela região em sua segunda viagem missionária, quando chegou à região da Galácia (At 16.6), retornando a segunda vez no início da terceira viagem (At 18.23). Esse nome se origina dos gauleses, que emigraram da Europa para essa região da Ásia Menor, atual Turquia, no século II a.C.
A tensão passava pela visita já feita por ele aos gálatas. Surgiram tensões nessas comunidades, como a imposição da circuncisão aos gentios convertidos pelos judaizantes e a observância da Lei de Moisés (Gl 1.6-10; 5.7-12). Havia pessoas que questionavam a legitimidade apostólica de Paulo (Gl 1.1-2), outros parecem ter se afastado dos seus ensinamentos, levando-o a referir-se a eles como os que adotaram outro evangelho. Por isso a orientação do apóstolo aos gentios foi mais severa ao afirmar que se nós, ou um anjo do céu, pregarmos outro evangelho além do que o que vos pregamos, seja amaldiçoado (Gl 1.8).
Das outras duas perícopes indicadas para a leitura, a primeira vem do testemunho do Dêutero-Isaías (61.10-62.3) em relação aos moradores de Jerusalém e que traduz a confiança dos que se sentem amparados na fé em Deus, orientando a comunidade a se sentir como um noivo que põe um turbante de festa na cabeça, como uma noiva enfeitada com joias (61.10). É o mesmo profeta do exílio que ajudará o povo a reeguer a cabeça e nutrir convicções, como não se calar e não descansar.
A outra perícope é a do evangelista Lucas (2.22-40), com sua visão oriunda do mundo grego, e por isso mais racional. Ela descreve Jesus sendo levado por seus pais ao Templo para a cerimônia da purificação, como mandava a Lei do Senhor. Nessa circunstância, os pais e o menino encontram o piedoso Simeão, que esperava a salvação de Israel. Ele pegou o menino nos braços e louvou a Deus por estar vendo a salvação de Israel, apesar da idade avançada. Ao devolver Jesus a Maria, disse que ele seria a perdição e a salvação de muitos, além da satisfação e o desprezo que sofreria e a dor da perda que marcaria a mãe. Da mesma forma a profetisa Ana, piedosa e devota, louvou a Deus por ver Jesus com os pais no Templo.
Os textos do profeta Isaías, do evangelista Lucas e da carta enviada à Galácia apontam para a promessa dos que têm uma firme esperança, dos que viram a esperança se concretizar no menino nascido e do apóstolo corajoso que viajou do mar Mediterrâneo ao território que hoje é a Turquia, movido pela fé universal no Cristo, pelo direito dessa gente poder vivê-la, e do poder do evangelho que relativiza todos os poderes religiosos, políticos e culturais, assegurando sua capacidade de professá-la.
Essa compreensão renova nossa confiança dos brasileiros de que a atual crise da vida pública “comprada” – como se o país estivesse à venda – por grandes interesses internacionais e nossas elites incultas, mal-formadas, sem perspectiva de futuro e que reluta a acertar as contas com nosso passado escravista e explorador de imigrantes.
2. Exegese
A perícope da pregação, Gálatas 4.4-7, conclui o raciocínio teológico da parte central da Carta aos Gálatas. Para Paulo, o ato de Deus ao enviar seu Filho e
o Espírito Santo é o fundamento da filiação divina da pessoa cristã. Nele se firma o apóstolo Paulo ao comunicar a fi liação divina dos cristãos a partir da encarnação de Jesus Cristo, o filho de Deus, nascido de mulher e sob a lei. O apóstolo dos gentios enfatiza a encarnação – adentrar a condição humana – como fundamento da divina adoção filial dos cristãos.
O texto se estrutura da seguinte forma: nos v. 4-6, fala do tempo a partir da encarnação, pela qual enfatiza a adoção filial dos cristãos como dom recebido, sendo esse o ponto central do texto. Mas isso não signifi ca uma existência distanciada dos sentidos e das lutas da vida, essa mesma que cria o espaço e o modo de ser, e possibilita expressar-se e empenhar-se por um modo de vida saudável, justo e digno para todos. Os gritos e os clamores dos cristãos são os mesmos do Filho de Deus.
No v. 7, Paulo apresenta uma conclusão, após retomar o ato redentor de Deus no tempo antigo, antes da encarnação, na era de escravidão; em seguida, nos conduzindo ao ato da filiação, através da qual Deus nos acolhe para junto de si e do filho unigênito, dando-nos integridade pela filiação. O tempo da menoridade foi superado, possibilitando-nos viver de forma consciente, integrando o amor e os sentidos, e nos dando condições de viver o tempo da maturidade da fé, superado o estágio da menoridade.
A partir dessa clareza, o apóstolo passa a defender sua atuação de pregador do evangelho de forma veemente (Gl 1.6-2.10), a combater o legalismo dos judeus-cristãos, exortando os gálatas a viverem sua conversão à fé cristã e a permanecerem firmes no amor, já que a plenitude da lei está no cuidar do próximo. É desse modo que ele convida os leitores a se guiarem pela liberdade cristã e pela ação do Espírito que produz frutos visíveis (Gl 5.13-26), e a decidirem se desejam viver segundo o instinto humano, egoísta e que conduz à morte, ou viver guiados pelo Espírito, que conduz à vida eterna.
A grande contribuição de Paulo para a pregação do evangelho é a admissão dos gentios, os estrangeiros que não eram judeus e por isso ficavam alheios ao evangelho. Essa decisão afasta a necessidade de terem que passar pela circuncisão. Essa foi a compreensão teológica decisiva para afrontar o evangelho do ambiente cultural judaico e forjar um novo espaço cultural não judaico. Com o impacto teológico-cultural-social causado, o apóstolo Paulo precisa defender decididamente seu estatuto apostólico, sua pregação e sua compreensão do evangelho. Esse grande avanço na teologia paulina, já nos primeiros escritos, faz abrir trilhas, como a clara distinção entre fé e obras ou graça e lei, que aparece na Carta aos Romanos, embora já tenha aparecido na Carta aos Gálatas. Sabendo que um homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé de Jesus Cristo, cremos também em Jesus Cristo, para que sejamos justificados pela fé de Cristo, e não pelas obras da lei, porque pelas obras da lei ninguém será justificado (Rm 2.16).
Para construir seu fundamento teológico sobre a supremacia da fé, Paulo argumenta que Abraão é pai de Cristo, já que este é da “semente de Abraão”, que a lei é “nosso mestre de escola para nos levar a Cristo”, situando a história judaica como preparação para Cristo. Assim, no batismo todas as distinções entre Jesus e os gentios são removidas. Isso cria o estatuto libertador: porque vocês foram batizados para ficarem unidos com Cristo e assim se revestiram com as qualidades do próprio Cristo. Desse modo já não existe diferença entre judeus e não judeus, escravos e livres, homens e mulheres; todos vocês são um só por estarem unidos a Cristo Jesus (Gl 3.27-28).
3. Meditação: Viver pela graça sob a tormenta das elites
O povo brasileiro sofreu abandono, perdeu parte das conquistas da última década e meia, conquistadas a duras penas, para quadrilheiros do desperdício do dinheiro público, legisladores corrompidos e juízes comprados a preço de soldo, coadjuvantes do golpe de uma mídia corrupta, faminta de poder, associada a criminosos, e que repete a mesma mentira, até se tornar verdade.
Diante da perversidade do golpe midiático-parlamentar-judiciário, precisamos agir com clareza, sem perder a oportunidade de dialogar a respeito. A corrupção torna-se intensa e rápida, já que os golpistas não terão muito tempo para saquear. Por isso uma forma de denunciar a falsidade da objetividade das grandes empresas de comunicação é analisar seu discurso. Três ideias do filósofo e sociólogo Edgar Morin nos fazem pensar nos crimes midiáticos que sofremos:
– “É necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade.”
– “O que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente.”
– “Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana. O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis.”
Quando o conhecimento é um serviço à curiosidade das pessoas, a comunicação da imprensa é clara e supõe que ela não esteja corrompida, diz a primeira ideia. Quando se entende o conhecimento como uma tradução, os mais atentos esperam para saber os pressupostos e, logo, percebem como os pressupostos do órgão que informam são utilizados artificialmente e sem nenhuma responsabilidade com os leitores, a cidadania e o país, afi rma a segunda ideia. O conhecimento como tradução sempre nos pede uma reconstrução, para fazer sentido, é a terceira ideia.
Nestas circunstâncias em que vivemos, o risco apresenta o ponto vital não abordado no ensino: a possibilidade das pessoas ligarem as pontas e darem um nó no erro a que estão sendo induzidas. Para sair dessa charada, é preciso lembrar que somos idênticos e diferentes, exatamente o ponto do qual enxergamos melhor. Esse index sui et falsi, de Baruch Spinoza, já usado para desmontar a noção da única fé verdadeira, é o que nos ajuda neste momento. É aí que vamos perceber os erros de quem se atrapalha, e ao assumir seu discurso, expõe sua posição real.
4. Imagens para a prédica
A letra do hino de Dietrich Bonhoeffer diante das atrocidades impostas pelo regime nazista nos ajudam sempre a recobrar a serenidade para perceber, nos organizar e nos preparar para enfrentar o mal, começando o novo ano com disposição e força.
De bons poderes fiel e em paz cercado, tranquilo consolado, sem pesar,
ao vosso lado nestes dias quero estar, convosco em ano novo entrar.
Maravilhosamente bem guardados, confiantes esperamos o porvir. De noite
e dia em Deus aconchegados e assim em cada dia que surgir.
Ainda nos oprimem dias idos, fantasmas do passado sobrevêm. Ó Deus,
concede aos homens desvalidos a salvação que guarda lá no além.
E caso o amargo cálice servires, de sofrimento a transbordar, então mui
gratos, sem tremer, conforme o queres, o recebemos de tua boa mão.
Porém, se queres dar-nos alegrias no mundo, ainda, com o seu fulgor, então
lembrar queremos idos dias, e a vida tua só será, Senhor.
E que ardam hoje cálidas as velas que vieste em nossas trevas acender.
E a todos nós reúne – que o concedas! A noite tua luz há de vencer.
E quando agora a calma nos envolve, do mundo ouçamos o celeste som
que imperceptível sobre nós se estende, dos filhos teus a glória em alto tom.
Autor da letra: Dietrich Bonhoeffer
Autor da melodia: Siegfried Fietz
5. Subsídios litúrgicos
Saudação: Amada comunidade, neste 1º Domingo após Natal, queremos renovar nossa confiança no Espírito, que não nos abandona na mágoa inútil, mas nos traz esperança diante do futuro. Não nos esquecemos dos grupos que controlaram nossa sociedade por séculos, amealhando nossas riquezas para construir as próprias fortunas com o fruto do trabalho do nosso povo.
Oração: Ajuda-nos a recobrar nossa articulação para lutarmos por governos justos e bons, por parlamento que legisle para o bem-estar da nação e a riqueza distribuída aos filhos deste país e por uma justiça que cumpra o papel que lhe foi confiado pelo nosso povo. Que o Senhor nos liberte de espíritos maus, amplie os horizontes do nosso povo e nos restitua a serenidade para tomar decisões. Que mantenhamos a ousadia, o amor e a leitura dos sinais dos tempos. Para que possamos assumir a tarefa que nos confias, pedimos. Amém.
Confissão e lamento pelos pecados: Pelas vezes que somos forçados a crer na mentira e a chamar a mentira de verdade, pedimos perdão, Senhor! Pelas vezes em que descremos o anúncio da salvação e praguejamos contra os criminosos que preferem lucrar a respeitar as demais pessoas, pedimos perdão, Senhor! Por falharmos na confiança de que és um Deus que acompanha o sofrimento dos pobres, mesmo num momento de tempo diferente do nosso, pedimos perdão, Senhor! Para termos coragem de enfrentar as elites corruptas, de denunciar, anunciar e atuar pela tua salvação, pedimos perdão, Senhor! Ajuda-nos a construir possibilidades de assumir riscos e viver desse modo, pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
Oração do dia: Somos política e socialmente fracos, sustenta-nos em nossa fraqueza. Vem ao nosso encontro e nos chama à vida de comunhão para sermos libertados de medo, angústia e opressão na luta pela vida de compromisso, amor e dignidade para todos. Ajuda-nos a assumir tarefas e responsabilidades, em companhia de gente de fé firme e caráter, que assuma riscos em nome dos fracos da nossa comunidade de fé. Na tua esperança, clamamos. Amém!
Bibliografia
SCHERER, Cristina. Gálatas 4.4-7. 1º Domingo após Natal. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 2008. v. 23.
THE BIBLE AUTHORIZED KING JAMES VERSION. Introduction and Notes by Robert Carroll and Sthephen Prickett. Oxford: Oxford University Press, 2008.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).