Reforma e liberdade
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Gálatas 5.1-11
Leituras: Isaías 62.1-12 e Mateus 5.1-10
Autoria: Odair Braun
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2020
1. Introdução
A passagem de Gálatas 5.1-11 já foi amplamente trabalhada em edições anteriores de Proclamar Libertação, que podem servir de aporte extra na preparação da mensagem para o Dia da Reforma de 2020.
Em relação às leituras, destacamos que Isaías 62.1-12 mostra que Deus age de modo libertador. O profeta menciona que Deus não se calará, não ficará quieto até que a sua justiça seja plena e resplandeça. O profeta também menciona que há guardas sobre as muralhas de Jerusalém, apontando para a necessidade de vigiar, estar atento. Nessa perspectiva, há que pensar nos desafios da igreja, que deve estar sempre em reforma, sempre em busca de caminhar junto ao seu povo, que tem necessidades e desafios próprios. Surge então um paralelo a explorar: estar junto e estar apto a preparar o caminho, colocando dons e tempo a serviço.
Mateus 5.1-10 descreve a liberdade que Deus concede em Jesus Cristo. Faz menção à riqueza alcançável quando há disposição para seguir, servir, testemunhar e deixar a palavra de Deus orientar os passos, e aponta, de modo especial, públicos que precisam ser alcançados, com prioridade, pela igreja e suas comunidades.
Gálatas 5.1-11 apresenta uma passagem tão rica quanto desafiadora. Logo o primeiro versículo nos leva à essência de todo o livro de Gálatas, ou seja, que para a liberdade foi que Cristo nos libertou (Gl 5.1). E, a seguir, arremata a grandiosa notícia com um indicativo de que não podemos permanecer passivos, que temos um papel a exercer. Por isso, permaneçam firmes e não se submetam, de novo, a jugo de escravidão (Gl 5.1b). Portanto o tema fundamental da passagem de Gálatas 5.1-11 versa em torno da liberdade e dos desafios que a mesma traz aos nossos dias. Considerando que esse texto deve inspirar o Dia da Reforma de 2020, estamos diante de um tema de vastas possibilidades e desafios. Que com liberdade e ousadia possamos interagir com os textos e, inspirados, levar a mensagem de ânimo e esperança, que tem suas raízes fixadas na liberdade que alcançamos em Cristo Jesus, e que é um dos grandes legados da Reforma de Lutero.
2. Exegese
A passagem em estudo encontra-se inserida num contexto maior, que vai de Gálatas 3.1 a Gálatas 5.15. Esse contexto é marcado pelos paralelos, ou seja, relação lei e evangelho, lei e promessa, lei e fé, lei e liberdade, lei e Cristo. Gálatas não dá espaço a dúvidas: a salvação é obra de Deus por intermédio da graça, devendo ser acolhida pelos cristãos e cristãs, por meio da fé, confiança e entrega a ele e seus ensinamentos. Tal entrega deve levar ao serviço em amor e solidariedade frente a irmãos e irmãs, frente ao mundo. Obra não salva; obra deve ser fruto do amor recebido de Deus e, como fruto, não pode ser segurado, escondido: deve estar a serviço do próximo, da humanidade, do meio no qual estamos inseridos; deve transparecer e nos levar a ser sal da terra e luz do mundo, de sorte que as duras realidades do meio social sejam transformadas a partir do serviço em amor e solidariedade vindo de Cristo, que concede liberdade e vida renovada.
Paulo levou os gálatas a conhecer Deus e a sofrer transformação de vida. Gálatas 4.13 demonstra que os gálatas receberam Paulo enfermo e que ele, mesmo nessa condição, anuncia a Boa-Nova. Gálatas 3.27 demonstra terem sido batizados, resultado do trabalho de pregação da Boa-Nova anunciada por Paulo. Gálatas 3.16 demonstra que os gálatas acolheram o evangelho e passam a ter uma relação direta com Deus, sem intermediários. Tornaram-se livres (Gl 4.3,8-9). E Gálatas 5.1 afirma, de modo enfático, que Cristo libertou para a liberdade. Esquecer isso faria retornar a escravidão e todas as consequências decorrentes. Gálatas 4.8-9 indica que as comunidades nas quais Paulo pregou eram constituídas por ex-integrantes do paganismo, sendo alcançados pelo evangelho, que foi acolhido com alegria (Gl 4.14-15), a mesma alegria revelada em Gálatas 5.1, ao conhecer Cristo e, assim, alcançar a liberdade. Porém Gálatas 5.7 evidencia que o fervor inicial passou e que desvios voltam a ser observados naquela jovem comunidade. Esses desvios levam Paulo a novamente anunciar aos gálatas, como forma de fazê-los retornar ao caminho da verdade e do bom testemunho, que dá, promove e concede a liberdade.
Gálatas 5.1-11 é perpassado pelo tema da liberdade, força propulsora da Reforma encabeçada por Lutero. A liberdade concedida por Cristo, de que trata essa passagem bíblica, faz parte da grande descoberta libertadora feita por Lutero e que ainda hoje inspira e deve continuar inspirando a igreja luterana em todas as suas frentes de atuação, tanto no Brasil como fora dele. Uma liberdade preciosa, imensurável, pois é concedida por meio do sacrifício de Jesus na cruz, a favor dos que nele creem.
As igrejas da Galácia (território incorporado ao Império Romano em torno do ano 25 a.C.) estavam vivendo com muitos “ruídos” decorrentes de pregações que mostravam compreensões divergentes do que Paulo pregava. Atos 16.6 informa que Paulo passou pela região da Galácia e lá organizou as comunidades. Pouco se sabe sobre essa região, mas isso não diminui sua importância para a igreja, em processo de formação, e, consequentemente, para os nossos dias.
Deve estar presente na preparação desta mensagem que aquela igreja era proveniente de um grupo que tinha forte influência do paganismo e que muda de vida e de rumo quando Paulo lhes apresenta o evangelho. Isso, todavia, não impede que surjam desvios de conduta, de entendimento e de orientação. Paulo, diante das falsas pregações, além de alertar para o caminho tortuoso que estava sendo trilhado, também aponta para a perda da liberdade, a escravidão e outras consequências que poderiam resultar desses caminhos, os quais colocavam em risco a liberdade concedida pelo sacrifício de Cristo na cruz a favor da humanidade. Em Gálatas 5, Paulo menciona a liberdade dada por Cristo e aponta para a fraternidade e amor que devem ser decorrentes, derivados dessa liberdade, que de nada adianta, assim entende e defende Paulo, se não houver compromisso com as transformações e mudanças que precisam acontecer, seja na vida pessoal, familiar ou em sociedade. Nessa perspectiva, a Reforma desencadeada por Lutero significou um forte brado de contestação aos desvios que eram experimentados pela igreja da Idade Média.
Gálatas 5.1-6 é, como já dissemos, o centro de todo o livro. Paulo, antes perseguidor dos cristãos, se torna o grande anunciador do evangelho, de sorte que apresenta o fundamento da vida cristã, a liberdade concedida por Cristo. Percebe–se a necessidade de discernir e optar entre a liberdade e escravidão, Cristo e lei. Gálatas 5.7-11 demonstra a necessidade de haver resistência e permanecer firmes na fé, na entrega e na confiança em Cristo, não se submetendo à escravidão, que é o resultado do afastamento de Deus e seus ensinamentos. Nessa perspectiva, Gálatas destaca que Cristo é o sujeito da libertação. Da mesma forma que Gálatas 1.4 e 2.20 apontam, de modo inequívoco, que Cristo liberta do pecado, Gálatas 3.13 aponta para a libertação da lei. Portanto somente Cristo liberta da escravidão e, libertos, temos caminho livre para servir e colocar dons a serviço, o que resume um dos pilares da Reforma: o sacerdócio geral de todas as pessoas crentes.
Gálatas 5.2-4 é desdobramento negativo da tentativa de assegurar a salvação por meios humanos. Na contramão dos ruídos presentes na comunidade dos gálatas, que anunciavam a justificação como forma de chegar à presença de Deus, Paulo afirma, enfaticamente, que isso na verdade afastaria. Gálatas 5.5-6 traz o lado positivo, pois contra o erro e desvio somente há possibilidade por meio da liberdade e da fé. Em Gálatas 5.7-11, Paulo diz que as dúvidas que foram plantadas em meio à comunidade não vêm e não são de Deus. Se não são de Deus, dele afastam. Desta forma, Paulo deseja despertar e orientar a comunidade para que se mantenha firme na fé em Cristo, exercendo a liberdade que essa fé nos concede. Lutero seguiu esse mesmo caminho e, por isso, é justo e importante que em dias atuais o Dia da Reforma seja festejado e celebrado com alegria e júbilo, como forma de inspiração para persistir na caminhada e no serviço.
3. Meditação
Dando passos para a construção da pregação deste dia, que necessariamente gira em torno da dimensão da liberdade, propomos um breve roteiro orientador que visa dar praticidade na elaboração da mensagem. Vejamos:
a) Olhar para trás e aprender
b) Olhar para o presente e ousar no testemunho
c) Olhar para o futuro e agir com confiança, pois o evangelho é libertador
A Reforma tem um importante ponto de propulsão quando Lutero lê, medita e interpreta Romanos 3.28, segundo o qual o ser humano é justificado pela
fé, independentemente das obras da lei. Depois de Romanos, o livro de Gálatas ocupa importante espaço na elaboração teológica de Lutero. A liberdade redescoberta por Lutero, e que tem Jesus Salvador como fonte de salvação, reside no entendimento da vida na fé, com ações movidas pelo amor.
A Reforma faz recordar e quer aguçar o desejo por liberdade recebida de Cristo. Tal liberdade, desafiadora, deve nos manter comprometidos e vigilantes, pois armadilhas e ciladas estão em toda parte, prontas para levar à escravidão. Liberdade, a Reforma recorda isto também, é um valor, algo importante para os dias atuais e não é alcançada por força própria. Liberdade é presente de Cristo para a humanidade e deve pressupor agir com amor (Gl 5.13). Assim sendo, a liberdade por Cristo concedida desafia e chama para que, com amor, prestemos serviço em favor do próximo e do mundo, frente à criação de Deus, da qual usufruímos em nosso dia a dia. A liberdade exige compromisso com o próximo e, assim sendo, também a igreja e suas comunidades devem avaliar, constantemente, seus atos, sua atuação, sem jamais esquecer que é sua função e seu dever estar ao lado das pessoas que buscam vida plena, digna e abundante, perpassada pela justiça e a paz. A Reforma precisa ser celebrada. Ela trouxe liberdade, mostrou o “rosto” de amor e de graça de Deus para com a sua criação, para com a humanidade.
A Reforma que traz liberdade não pode ser esquecida. Onde e como ela é celebrada? No que ela nos inspira? Reforma é questionamento saudável para toda a igreja e suas comunidades, assim como aos seus fiéis. Nossa raiz e fundamento é ser igreja da Reforma, voltada à verdade do evangelho, principalmente porque, em nossos dias, essa verdade tem sido questionada e, muitas vezes, escamoteada: há falsas leituras e interpretações do evangelho; há exploração política do e a partir do evangelho. Reforma faz olhar para essa realidade sem se calar diante de desvios e desmandos. Por fim, a Reforma espera, de cada qual, determinação e ousadia, desprendimento e coragem de testemunhar e anunciar, assim como fez Lutero. A liberdade é alcançada e precisa ser preservada. Não pode passar por ameaças nem ser posta em dúvida. Qual o caminho que leva à liberdade? Essencialmente aquele que passa pela entrega, confiança e seguimento de tudo o que é ensinado, vivido e demonstrado por Jesus.
A liberdade dada por Cristo estava em risco quando Paulo escreve o texto em estudo. De certa forma, Paulo deseja fazer a comunidade de Gálatas e, por consequência, as nossas comunidades, acordar, despertar dos erros, dos desvios, dos falsos ensinamentos que estavam sendo colocados em seu meio. O que significa a Reforma do século 16 e qual a sua relevância para os dias atuais? O que significa liberdade? No que ela compromete?
Falsos ensinamentos se apresentavam na comunidade e questionavam aquilo que Paulo havia ensinado. Os chamados judaizantes trazem de volta regras como a necessidade da circuncisão como forma de chegar a Deus. Paulo, nesse contexto, lembra que o evangelho é central, que está acima das regras do mundo, que a liberdade alcançada por Cristo a tudo subjuga. O projeto de Jesus Cristo e a liberdade por ele concedida também estavam em perigo quando Lutero, na Idade Média, ergue a sua voz e dá nova orientação, nova interpretação à palavra de Deus. Em nossos dias, a situação de perigo se repete: há teologias diversas e distintas que, por vezes, usurpam o evangelho para benefícios próprios. Cabe, mais uma vez, estar vigilantes, atentos e determinados a testemunhar.
Não há possibilidade de vida cristã se não houver caminhada com Deus, com o Espírito Santo. A ausência do Espírito Santo de Deus dá espaço para o desvio do caminhar e, consequentemente, para o pecado. Assim como Gálatas 2.1-11 aponta que a coisa mais importante para o cristão é a liberdade que Cristo alcançou e oferta, Gálatas 5.13-15 ensina que o amor deve ocupar o espaço que é conquistado quando alcançamos essa liberdade. Que o amor nos faça confiar e nos impulsione ao serviço e ao testemunho.
4. Imagens para a prédica
Uma possível cena a ser explorada ao longo da celebração, de modo especial no culto, poderia ser a colocação de três ou quatro pombas presas numa gaiola nas imediações do altar. Pode ser de tal forma que, desde o começo do culto, se aponte para elas, como se comportam; que se possa falar do significado de estar preso, sem liberdade de ir e vir, no caso, de voar; que se possa refletir sobre as muitas privações que o “engaiolamento” provoca.
Após a pregação, com os devidos cuidados, as aves devem ser libertadas em frente à igreja, chamando a atenção para que as pessoas observem o comportamento na revoada. Destacar que as pombas devem estar livres e soltas, conforme criadas por Deus. Traçar paralelos dessa liberdade das aves com a liberdade alcançada pela igreja a partir da Reforma de Lutero, assim como os desafios que nos são colocados, na atualidade, para que sejamos corresponsáveis por essa liberdade.
5. Subsídios litúrgicos
As orações e petições devem dar prioridade ao tema liberdade e aspectos dele decorrentes. Da mesma forma, os hinos para o dia devem priorizar a liberdade que recebemos e os desafios e compromissos que ela nos faz enfrentar.
Bênção
Senhor derrame sobre ti a paz.
O Senhor te dê sensibilidade para perceber os dons ofertados a ti
O Senhor te ensine a amar sem esperar recompensa.
O Senhor te ensine a servir com justiça e misericórdia.
O Senhor te acalme quando estiveres eufórico, achando que tudo depende de ti.
O Senhor te ofereça segurança e fé.
O Senhor te carregue quando estiveres cansado.
O Senhor seja a tua fortaleza e porto seguro nas horas de dor, dúvida e
sofrimento.
O Senhor seja fonte de alegria da tua vida e a razão para servi-lo.
O Senhor seja contigo em todos os caminhos, para todo o sempre.
Assim te abençoe o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Amém.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).