A dádiva de andar no Espírito
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Gálatas 5.1, 13-25
Leituras: 1 Reis 19.15-16, 19-21 e Lucas 9.51-62
Autoria: Astor Albrecht
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/06/2016
1. Introdução
O texto para a prédica contém um chamado para todos e todas que são de Cristo Jesus para que andem no Espírito. Isso é dádiva de nosso Senhor. Não há vida cristã se essa não for guiada pelo Espírito Santo de Deus. Se ele não guiar, instala-se o caos (obras da carne). Com ele manifesta-se o fruto do Espírito.
O texto de 1 Reis 19 apresenta o profeta Elias cumprindo as ordens de Deus ao ungir os reis da Síria e de Israel. Ele chama Eliseu como seu sucessor. A ação de Elias de lançar o manto sobre Eliseu equivale a tomar posse e adquirir um direito (Rt 3.9). Esse gesto é aqui uma espécie de ordenação para o ministério profético, já que Eliseu, ao ficar com a posse do manto de Elias, recebeu também o Espírito e o poder que o capacitaram para continuar a missão de seu mestre.
Lucas 9 trata dos samaritanos que não recebem Jesus. Alguns discípulos desejam que a ruína venha sobre eles, mas são advertidos por Jesus. Em seguida, traz exemplos de pessoas que são provadas em seu propósito de seguir a Jesus. O texto não fala claramente do Espírito Santo, mas enfatiza que andar com Jesus precisa ter prioridade sobre as demais coisas. Não se deve ser fútil ao seguir Cristo e ser dele. Isso precisa perseverança e traz mudança para a vida. Ou, como Paulo escreve, quem é de Cristo produz o fruto do Espírito.
2. Exegese
O que perfaz o estado do cristão é a liberdade. Esse foi o argumento final (4.31) no texto precedente (Sara e Hagar). Paulo trata das implicações práticas da liberdade cristã. Nos v. 13-15 escreve que o amor ao próximo deve preencher o espaço conquistado pela liberdade, pois onde quer que se pregue a liberdade, é possível entendê-la erradamente. Poderia servir para “dar ocasião à carne” (v. 13), isto é, há a possibilidade de que a liberdade degenere em licença. A palavra “carne” resume a tendência moral do ser humano que não é movido pelo Espírito de Deus. Para a liberdade não ser deturpada, segue o chamado: “sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor” (v. 13). Liberdade em Cristo é liberdade para o amor. O amor é a “lei” do cristão, não no sentido de norma que regulamenta o que se deve ou não fazer, mas como princípio fundamental do agir cristão em geral. Como uma antítese ao amor está a declaração no v. 15: Paulo pensa numa alcateia de animais selvagens precipitando-se um contra a garganta do outro. Representa a desordem total e a mútua destruição.
O apóstolo passa a escrever sobre o caminho que torna possível ao crente permanecer na liberdade do amor: andar no Espírito (v. 16). Os gálatas receberam o Espírito de Deus e nele deram início à sua vida cristã, experimentando sua ação na comunidade. Agora também é preciso continuar seu caminho na força do Espírito. O cristão conduzido pelo Espírito Santo não satisfará a “concupiscência da carne” (v. 16). Essa palavra (epithymia) é geralmente usada no sentido de ansiar coisas proibidas, é vida contrária à vontade de Deus. Por isso é que no v. 17 se afirma que o Espírito e a carne são adversários irreconciliáveis entre si. Prepara-se assim o terreno para apresentar as obras da carne e o fruto do Espírito.
Nos v. 19-21 são enumeradas quinze “obras da carne”, que em oposição ao Espírito de Deus que gera vida e ordem geram o caos. Como obras da carne apontam-se no início três pecados da sensualidade (v. 19), que tinham destaque em ritos de adoração pagã, do qual os gálatas foram tirados. “Idolatria” e “feitiçarias” (v. 20) têm em vista o falso culto a Deus. A pessoa procura apoderar-se do divino por meio da idolatria. A feitiçaria atribui a objetos e ações forças divinas que não podem ter. A pessoa acredita que basta saber manejar essas coisas para poder determinar a atividade de Deus. Seguem as obras da carne que são ameaça à vida social e comunitária. Quatro palavras descrevem as rixas: “inimizades”, “porfias” (discussão, disputa), “dissensões” (dichostasia = “colocar-se à parte”, formação de grupos separatistas hostis) e “facções” (“espírito partidário”). As outras quatro “obras da carne” perturbam profundamente a relação entre as pessoas da comunidade. O “ciúme” (a mesma palavra também significa “zelo”, e a ideia nesse contexto é de um “zelo pervertido”) e a “inveja” continuam sendo inimigos mortíferos na vida da comunidade cristã. “Ira” e “discórdias” cooperam para que o caos se instale. A lista termina com os pecados da intemperança (“bebedices”, “glutonarias”), que eram sancionados na adoração pagã. No fi nal, uma advertência severa: “não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam” (v. 21).
Nos v. 22-23 é apresentado o fruto do Espírito. O contraste reinante entre as obras da carne e o fruto do Espírito é como o que reina entre as trevas e a luz, entre o caos e a ordem, entre a multiplicidade e a unidade. A linguagem figurada é sugestiva para transmitir a ideia de crescimento espiritual em contraste com a deterioração que segue as atividades da carne. É significativo o uso do singular “fruto” ao invés do plural. O alvo de Paulo é demonstrar vários aspectos da única colheita. O fruto do Espírito é o “produto” do crente guiado pelo Espírito.
Os três primeiros frutos (v. 22: amor, alegria e paz) foram colocados no início da lista numa ordem de importância. Os seis últimos acham-se mais socialmente orientados. Mas essa deve ser considerada uma classificação apenas a grosso modo. Algumas considerações: o amor como primeiro fruto está em harmonia com o hino do amor em 1 Coríntios 13. O amor também se encontra no coração do evangelho (Jo 3.16). O próprio amor é derramado no coração pelo Espírito Santo (Rm 5.5). É no amor que a fé se realiza. A paz e a alegria são parte integrante do reino de Deus (Rm 14.17). “Longanimidade” (contém a ideia de perseverança, resistir firme sob as pressões e tensões da vida), “benignidade”, “bondade” e “fi delidade” são virtudes que, na convivência humana, garantem a alegria e a paz. “Mansidão” transmite o sentido de brandura, é a disposição de submeter-se à vontade de Deus.
“Contra estas cousas não há lei” (v. 23). Onde reina o Espírito termina a força da lei (5.18). Quem é conduzido pelo Espírito não transgride a lei, antes a cumpre. O v. 24 confi rma que o fruto do Espírito é dádiva na vida daqueles e daquelas que “são de Cristo Jesus”. O texto proposto fi nda com um apelo: “Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito” (v. 25). Há distinção entre “viver” (expressa comunhão permanente) e “andar” (aplicação constante). A pessoa em Cristo tem uma vida diferente de quem está sob o domínio da carne. Contudo a aplicação dessa verdade não é automática. Requer perseverança, assim como uma criança que está aprendendo a andar precisa de persistência. A metáfora é sugestiva porque o mesmo Espírito que dá vida também dá força e orientação no decurso da jornada da vida.
3. Meditação
Quando o texto trata das obras da carne e do fruto do Espírito, podemos constatar que são colocadas em contraste, por assim dizer, duas formas de viver. Em outro lugar das Escrituras, Paulo escreve que o “pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz” (Rm 8.6). Portanto, enquanto o andar na carne conduz para o caos e a morte, andar no Espírito conduz à vida e à salvação. A presença do Espírito Santo de Deus é quem produz na vida do crente o fruto de sua presença. Aqui cada qual precisa deixar que a palavra de Deus prove o seu andar: quando na vida pessoal, familiar ou comunitária os relacionamentos tornam-se pesados, o respeito é perdido, o amor é pálido, a disposição em cooperar desaparece e as intrigas parecem tomar conta, é porque falta submissão ao Espírito de Deus. Nesse caso, numa comunidade, toda a força e dons da igreja que deveriam estar voltados para a missão acabam perdendo-se ou tornam-se limitados em razão de discussões vazias e tolas. Eis um pecado que precisa, então, ser confessado!
A dádiva de andar no Espírito é para todos e todas “que são de Cristo Jesus” (v. 24). Não é coerente que esses andem segundo a carne, demonstrando um viver contrário à boa vontade de Deus. Aqui devemos lembrar a dádiva do Batismo quando fomos inseridos na comunidade cristã e presenteados por Deus com a dádiva do seu Espírito. Deus é gracioso e tudo preparou para que o andar de cada filho e filha tivesse a companhia do seu Espírito (Rm 8.14). Portanto, para que a vida em Cristo seja frutífera, urge atender ao apelo: “Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito” (v. 25).
Aqui é possível lembrar que o Espírito Santo de Deus é quem nos ajuda na prática da espiritualidade cristã. O Espírito Santo é dádiva de nosso Senhor, mas isso não quer dizer que podemos ser indiferentes. Na Escritura, somos exortados a não entristecê-lo (Ef 4.30), antes ser cheio dele (Ef 5.18). Sua presença há de abrir os olhos para o pecado (obras da carne) que precisa ser confessado. Nas obras da carne não somente pecamos diante de Deus, mas os relacionamentos e a boa convivência são afetados. Por exemplo, quantas discórdias, ciúmes e inimizades não afastaram pessoas umas das outras e difi cultaram a missão da comunidade? Andar no Espírito é reconhecer isso e humilhar-se para buscar o perdão do Senhor e de uns para com os outros. É buscar a reconciliação. Lembro as palavras de Agostinho: São como duas coisas distintas: o ser humano e o pecador. O ser humano, Deus o fez. O pecador é obra da própria natureza humana. Destrói o que tu fizeste para que Deus salve o que ele fez. É necessário que odeies a tua própria obra dentro de ti, amando a obra que Deus criou em ti. Mas, quando começar a desagradar-te o que tu fizeste, então começam a surgir tuas boas obras, já que acusas tuas obras más. O início das obras boas é a confissão das obras más. No arrependimento crucificamos a carne (v. 24).
Andar no Espírito é um chamado à perseverança. Infelizmente, há irmãos e irmãs que se afastam da comunhão de sua igreja. Por descontentamento, discórdia ou outro motivo ficam distantes. Não deve ser assim! O Espírito de Deus não nos é dado para nos conduzir durante uma determinada etapa da vida, como por vezes acontece após o ensino confi rmatório. Ele também não é somente um convidado de honra em momentos especiais, como um batismo. Ele nos é dado para nos auxiliar e guiar todos os dias de nossa vida. E toda aquela pessoa que permanece apegada a Cristo Jesus pode dar graças pelo Espírito que assim a guia.
Andar no Espírito manifesta-se de maneira prática no serviço fraterno. É o amor presente em nossa vida que testifica de sua presença. “Os que vivem sem amor são pesados para si mesmos, enquanto que os que amam carregam-se mutuamente” (Agostinho). Isso precisa ser destacado: o amor não pode ser espiritualizado! Quando isso acontece, o próximo é esquecido. E isso nós já não podemos chamar de amor. É preciso que o amor dê provas de sua autenticidade pelo serviço prestado aos necessitados dentro da comunidade, dentro de nossa família. Portanto, se temos tensões ou inimizades em nossos relacionamentos, devemos ter os olhos abertos: isso leva ao caos. Precisamos mostrar na prática como podemos, de maneira crescente, ajudar e cooperar uns com os outros. A comunidade é um belo canteiro onde o fruto do Espírito pode ser semeado. Isso pode começar de modo muito simples, como, por exemplo, em vez de criticar ou apontar falhas nos outros mostrar um olhar agradecido, dar uma palavra de ânimo. Isso não será difícil quando feito com amor. Com certeza, o Espírito será o auxílio para quem assim se dispõe.
4. Imagens para a prédica
A missionária Edite R. Gillet conta que, durante um período de fome em Moçambique, duas mães vieram até ela pedindo para fazer algum trabalho em troca de um pouco de farinha de milho. Ela conta: “Deixaram suas duas filhas conosco enquanto trabalhavam. No decorrer da manhã, levei quatro frutas para as duas meninas. Agradeceram-me, e então ouvi uma delas dizer à outra: ‘Vamos comer uma só fruta cada uma e guardar as outras duas para nossas mães’. E assim elas fizeram”.
Se duas meninas famintas podiam distribuir o pouco que tinham, quanto mais nós não havemos de pôr em prática a regra áurea de nosso Senhor? Todos nós precisamos ser mais atenciosos e generosos no uso que fazemos de nosso tempo, energia e bens. Acima de tudo, precisamos do Espírito de Cristo como base de todos os nossos atos. Não está o Espírito de Cristo resumido na regra áurea? Não é verdade que Cristo mesmo se colocou em nosso lugar e compartilhou conosco tudo o que ele era?
5. Subsídios litúrgicos
Oração de confissão de pecados
Nosso Deus e nosso Pai, bom é estarmos em tua presença. Em Cristo Jesus, teu filho, tu nos libertaste da escravidão do pecado e concedes a cada um e cada uma de nós vida nova. Tu não queres ver teus fi lhos e fi lhas andando neste mundo como pessoas que vivem em brigas, intrigas, discórdias, mentiras, ciúmes e tantas coisas mais que só trazem sofrimento para a vida, para a família e para a comunidade. Mas, Senhor, é assim que às vezes procedemos. Acontece porque não andamos contigo. O nosso coração pendeu para o orgulho, para a raiva, e então coisas bonitas de nossa vida foram prejudicadas. Perdoa-nos, Senhor! Ajuda-nos a ir ao encontro de nosso próximo e daquela pessoa de quem estamos distantes. Por teu Espírito, queremos acertar o nosso caminho para que seja de amor, de paz, de alegria e de tudo o mais que vem de tua bondosa mão. Fortalece-nos, Senhor, por teu Espírito Santo. Dá-nos força para que nosso coração se fi rme e se liberte de tudo o que é desnecessário e que prejudica. De tantas coisas que entram em nosso coração, que nada nos desvie de ti. Dá-nos a tua graça e que assim andemos no Espírito que tu enviaste. Assim damos graças por tua misericórdia, que nos alcança em nome de Jesus. Amém.
Proclamação da graça de Deus
Assim como oferecestes os vossos membros para a escravidão da impureza e da maldade para a maldade, assim oferecei, agora, os vossos membros para servirem à justiça, para a santificação (Rm 6.19).
Bibliografia
GUTHRIE, Donald. Gálatas – Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 1999.
SCHNEIDER, Gerhard. A Epístola aos Gálatas. Coleção Novo Testamento e Mensagem – n. 9. Petrópolis: Vozes, 1967.
WEINGÄRTNER, Lindolfo (editor). Flores no jardim de Agostinho. Curitiba: Encontro Publicações, 2005.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).