Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Gênesis 15.1-6
Leituras: Lucas 12.32-40 e Hebreus 11.1-3, 8-16
Autor: Martin Dreher
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 08/08/2010
1. Introdução
O capítulo 15 de Gênesis tem suas complicações. Nele começa a participação do Eloísta. Por outro lado, duas narrativas vão se intercalando, quase que compondo uma fuga no melhor estilo de Johann Sebastian Bach. São tantas as contradições que encontramos em nosso texto, que só podemos trabalhar com a hipótese de que duas narrativas foram entretecidas. Veja, por exemplo, que no v. 5 é noite e que no v. 12 começa a anoitecer. No v. 6, Abraão crê; no v. 8, duvida, sendo auxiliado por Deus, que lhe concede uma garantia. Mesmo que possamos identificar a pena do Eloísta em nosso texto, fato é que temos nele duplicações e cesuras. Observe-se que o v. 3 é paralelo ao v. 2 e que o v. 5 é paralelo ao v. 4. Feitas essas observações, uma outra tem que ser feita: para a pregação devemos considerar a perícope na forma em que ela se nos apresenta em sua redação atual. Devemos acompanhar a fuga e não desconsiderá-la em nossa interpretação teológica.
2. Exegese
A fórmula “depois disso Abrão teve uma visão” é estranha ao Pentateuco. Encontramo-la, constantemente, na literatura profética. A pessoa que nos apresenta a narrativa e as pessoas que a conheciam só conseguiam imaginar Deus se relacionando com Abraão, segundo o esquema da vocação dos profetas, através de uma “visão”. No restante do Pentateuco, contudo, não vamos encontrar outra alusão a uma “visão”. Essa fala direta de Deus a uma pessoa era, para os contemporâneos da narrativa, algo que punha a tremer; leitura bem diferente daquela feita por formas de piedade de nossos dias que a julgam “o máximo”. Para Abraão, no entanto, é dito que não trema diante do tremendum. A razão para essa admoestação é que Deus é um “escudo”. Essa expressão que tem Deus por escudo, por protetor (pelo radical da palavra portuguesa, Deus sempre nos é “teto”), vem do linguajar do culto (cf. Sl 3.3). Mesmo que as traduções portuguesas falem em “recompensa”, no v. 1 o texto fala em “mérito”, que deve ser entendido, como acontece na literatura profética, no sentido da dádiva livre e graciosa de Deus (cf. Is 40.10; Jr 31.16). Em todos os casos, o conceito não deve ser entendido como uma contrapartida da parte de Deus, pois se observamos o andar da narrativa, a verificação da fé de Abraão só vai acontecer posteriormente. A dádiva não é o próprio Deus, mas uma incontável descendência (v. 5). Mas a formulação programática deve ter levado a que gerações posteriores pensassem em toda a salvação e nas bênçãos, das quais Israel se ia dando conta e que se reflete, também, na perícope de Hebreus 11.
Abraão resigna. Seu ceticismo aproxima-se da blasfêmia. Mesmo assim, sua postura direciona-nos para o motivo de sua dor: a falta de filhos. O final do v.2 é de difícil tradução. Em todos os casos, o “de Damasco” é uma impossibilidade. É provável que Abraão esteja fazendo referência a seu servo Elieser, mas o nome só aparece nessa passagem, nesse versículo com texto todo corrompido. Esse servo será seu herdeiro. No entanto, Israel desconhece lei que preveja esse passo legal. Nos povos vizinhos, podemos encontrar contratos, segundo os quais, no caso da falta de filhos, escravos podem ser adotados com o compromisso de providenciar sepultamento digno para o testamenteiro. Parece que Abraão tomou tal decisão ou que a esteja tomando (v. 3). Devemos ter cuidado com o termo “continuo” utilizado por Almeida, pela Nova Tradução na Linguagem de Hoje e por outras traduções. Holek, sem acréscimo de outras expressões, significa “caminhar”. Se considerarmos que essa narrativa se encontra no início da obra do Eloísta, esse deve estar situando seu relato ainda na Mesopotâmia. Por isso devemos ponderar que Abraão talvez esteja dizendo: “De que vale a tua recompensa se me ponho a caminho sem filhos”. Esse pensamento é renovado no v. 3 por formulação tomada de outra fonte. Como nos referimos acima, é repetição (fuga) do verso anterior. Só que agora Abraão, que se encontrava deitado em sua tenda, deve sair e observar na infinidade de estrelas sinal para a incontabilidade de sua descendência. Só que essa ordem de Deus não significa diminuição de sua resignação e de seu ceticismo. Ao contrário: o fato de Deus tornar plástica a promessa nada plástica do v. 1b só aumenta o paradoxo. É nesse instante eletrizante que a narrativa é interrompida. O narrador deixa Abraão olhando para as estrelas e dirige-se ao leitor e lhe transmite conceitos teológicos de grande densidade, sendo que o acontecimento no qual se baseiam seus conceitos não é descrito nem em relação a Javé nem em relação a Abraão. Se entendermos aquilo que o narrador descreve como “crer”, como um processo psicológico que teria acontecido com Abraão, não temos amparo no texto. É como se o narrador se encontrasse diante de algo que não se consegue descrever. Essa fé não é descrita, só é afirmada. A exteriorização dessa fé expressa-se mais de forma negativa: é silêncio, é ouvir silencioso e contemplar.
No v. 6, temos a formulação: “Ele creu em Javé e isso lhe foi imputado para justiça”. Creu, imputado e justiça merecem maior explicação. O “imputar” foi, originalmente, importante função dos sacerdotes. Cabia a eles, na qualidade de pessoas autorizadas por Deus, qualificar os sacrifícios. No Escrito Sacerdotal (P), ainda encontramos toda uma série de juízos sacerdotais, declarados aos que participavam do culto (cf. Lv 13.17, 23, 28, 37, 44, 46). “Justiça” não é uma norma absoluta, que está acima do ser humano, mas conceito relacional: o conceito “justo” é conferido àquela pessoa que se porta corretamente em relação à comunhão na qual se encontra. Tal comunhão pode referir-se a pessoas, mas também a Deus, como é o caso no presente texto. Deus é justo ao permanecer fiel ao pacto que celebrou com uma pessoa ou com um povo. O ser humano é justo ao se ater às normas, às leis desse pacto. – Fé é fundamentar-se em Javé, via de regra em sua salvação que vai acontecer no futuro. É um ato de confiança, de participação nos planos de Deus na história. Observada desde o ser humano, fé é algo passivo, é abrir-se à ação de Deus (cf. Is 7.4, 9; 28.16; 30.15).
Em nossa perícope, a justificação não acontece no âmbito do culto, mas está situada na relação pessoal de Deus com Abraão. Ela não acontece por causa de méritos resultantes de sacrifícios ou de atos de obediência. Simplesmente é dito que a fé colocou Abraão na relação correta com Deus. Deus deu a entender que seu plano histórico é fazer de Abraão um grande povo. Abraão levou isso a sério. Com isso, segundo Deus, fez a única coisa correta. O v. 6 é um ponto final. Mesmo que o ponto de partida da perícope seja saga antiga, o v. 6 faz dela uma doutrina. Fala da ação de Deus, quando a vida da pessoa passa por tempos difíceis. Israel experimentou isso na época em que esteve ameaçado por potências estrangeiras e refletiu sua situação a partir da história do patriarca. Por isso a perícope só podia iniciar como iniciou: com fórmula profética, para consolar.
3. Meditação
Textos têm contextos. Contextos têm pregadores. Também congregações têm seus contextos. O contexto do Eloísta é a experiência do distanciamento de Deus. Os anjos de Deus já não mais peregrinam pela terra. Eles chamam desde os céus (Gn 21.17; 22.11,15). Por isso os sonhos se tornam importantes. É através deles que Deus se manifesta, mesmo que muitas vezes não se o consiga entender (Gn 40. 8). Tanto mais importante é a palavra profética de admoestação e de consolo, de intercessão junto a Deus (Gn 20.7,17; Êx 15.20; 20.19; Nm 11; 12.6ss). Nossa perícope tem um contexto, do qual se pode dizer que há uma comunidade que experimenta distância de Deus. Está envolta em perigos. Israel viu-se envolto em muitos perigos ao longo de sua história. Está carente de proteção. Está sem teto. Tudo terá ruído? Ou estará prestes a ruir? De que adianta a promessa que Deus fez ao patriarca? Sonho bonito, mas não conseguimos viver do passado. Temos presente difícil. O futuro não será mais difícil ainda? Vamos morrer, quem nos sepultará? Como continuar, se não temos quem nos acompanhe? Temos promessa, é verdade, mas ela vai se cumprir? – Olha para o céu estrelado! Confia! Sem temor!
O contexto do pregador parece, muitas vezes, ser o de uma voz que clama no deserto. Também desanima. Pode pensar que é muito jovem, como Jeremias. Pode pensar que não há mais ninguém e que ficou só, como Elias, no Horebe. Às vezes, não quer comer coisa imunda, como Pedro. Às vezes, pede para Deus lhe tirar o espinho da carne, como Paulo. Mas a Jeremias Deus põe a palavra nos lábios; a Elias manda de volta ao caminho do deserto, pois ainda há muita gente; a Pedro manda seguir o caminho dos gentios e ser missionário; a Paulo diz que a sua graça lhe basta. Ao pregador diz: Olha para o céu estrelado! Confia! Sem temor!
Às vezes, o pregador gostaria de ser representante de Baal, um deus forte como o terremoto, que sopra qual furacão, que arranca pedaços da montanha, que faz a terra tremer, que dá prosperidade a todos os que apostam em sua loteria. Ao pregador Deus diz: Olha para a cruz! Meu poder se aperfeiçoa na fraqueza! No amor não existe medo!
O contexto da congregação é complicado. Têm emprego e desemprego; gente querida e assaltantes; amor e drogas; saúde e doenças; sonhos e pesadelos; casamentos e divórcios; encontros e desencontros; compreensão e incompreensão; namorados e viúvos; gente abençoada e gente sentindo ausência de Deus. Essas tensões fazem muita gente desanimar e não querer continuar caminhando. O pregador pode dizer que isso é consequência do pecado. Certamente é verdade. Ele também pode sugerir que a pessoa dê tudo o que tem para Deus, fazendo comércio de coisas sagradas com ele e que ele, então, vai lhe dar prosperidade. Essa opção estaria em profundo e total desacordo com a cruz de Jesus. Ele talvez possa contar sobre Mestre Grünewald e o altar de Isenheim, distribuindo, antes, no seio da comunidade reunida em culto, cópia de detalhe desse altar, contido em DREHER, Martin N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2006, p. 61. Talvez possa dizer: Como Abraão, vamos silenciar diante de Deus, mirar, confiando-nos completamente a Ele. Às vezes, só conseguimos dizer isso. E… será isso muito pouco?
4. Imagens para a prédica
Na Alsácia, existe uma localidade denominada Isenheim. Ali foi fundado, em 1298, um monastério da ordem dos antonitas, para cuja capela Mestre Grünewald foi convidado a pintar o altar. O contexto desse altar é significativo: a doença e o cuidado dispensado ao doente. No interior dos muros do monastério eram tratados muitos doentes, especialmente aqueles acometidos do “fogo de Antão”, também designado de “fogo santo” e, muitas vezes, confundido com a lepra. Quando acometida do “fogo santo”, a pessoa passava a sentir dores horríveis. Os membros ficavam vermelhos, depois escureciam; finalmente, a carne purulenta se soltava dos ossos. Cheirando a própria podridão, os doentes ficavam à beira da loucura. Impotente ante a doença, a pessoa medieval só conseguia ver nela o flagelo de Deus. Por isso familiares abandonavam os doentes; os antonitas, contudo, os recolhiam em seus hospitais. – Esses monges viam na doença possibilidade de crescimento espiritual. As dores eram vistas como caminhada em direção à salvação eterna; os desfigurados eram considerados “mártires de Deus”, por isso merecedores de mais e maior amor.
Quando alguém entrava no mosteiro de Isenheim, era levado à capela e colocado ante o altar de Mestre Grünewald, cujo nome de fato era Mathis Gothart- Nithart. Adepto de Lutero, depois passou a acompanhar os camponeses em suas reivindicações. O Cristo que pintou no altar de Isenheim mais parece um campo- nês crucificado. Depositado aos pés do altar, o doente era confrontado com a eternidade. O monge orava com ele, pedindo que Deus tivesse misericórdia e o curasse. Confrontavam-se o corpo desfigurado do crucificado e o não menos desfigurado corpo do doente. O doente implorava por cura. A tensão era imensa: haveria cura? Houve relatos de cura. Houve pedidos não atendidos. Chorando, o doente era levado para o hospital. A figura do altar não era apenas um símbolo, mas presença do divino, poder de Deus, ligação com o mundo de Deus. Mestre Grünewald recebera a solicitação de pintar o quadro com a finalidade de propiciar cura. Enquanto pintava, estava cercado de seres humanos, cujos membros estavam deformados pelo “fogo de Antão”. Sua incumbência era pintar uma imagem diante da qual o ser humano pudesse pedir a Deus a cura da sua doença. No altar de Isenheim, Grünewald retratou as dores de um mundo em crise no final do século XV e no início do século XVI. Todas as convulsões de seus dias estão retratadas ali. Ele próprio as viveu e fixou através do pincel. No entanto, ele não terminou no caos, no qual ele e seus contemporâneos estiveram envolvidos. Quis ajudar a superar o caos. As pessoas retratadas por Grünewald sofreram, e muito, mas assumiram a dor sem ser por ela dominadas. Elas experimentaram a noite da dor e anunciaram a luz de Deus, que vence a doença. Na mesma época em que muitos pregavam aos que sofriam, dizendo-lhes que seu sofrimento era consequência de seu pecado e entregando-os à dor, Grünewald apontava para a realidade que era maior do que pecado e dor. Ele sabia de paz interior e de salvação, que não são menos reais do que pecado e dor. Talvez Grünewald possa ser intérprete de mensagem que o Eloísta nos quer transmitir em Gênesis 15.1-6.
5. Subsídios litúrgicos
Oração de coleta:
Deus, Senhor todo-poderoso, nós te pedimos: Abre nossos ouvidos para que possamos ouvir o que nos queres dizer. Guia-nos por tua palavra e ensina-nos tua vontade. Ouve-nos por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo dirige a história dos povos. Todo-poderoso Deus, tu és princípio e fim dos tempos, de eternidade a eternidade. Amém.
Oração da igreja:
Todo-poderoso, eterno Deus, vieste a nós em teu filho Jesus Cristo. Tu nos ensinas e consolas pelo poder do Espírito Santo.
Senhor, nós te agradecemos por seres o Senhor da história e dos povos. Muitos reinos e reis surgiram e pensavam poder submeter a si toda a terra. Perante ti, porém, somos como pó, como insignificante gota d’água em imenso balde e como névoa que logo se dissipa. És tu quem determina início e fim da história.
Senhor, pedimos perdão por toda a soberba e falsidade com a qual muitos governam o mundo em nossos dias. Também o seu poder é limitado. Permite que os governantes reconheçam que deverão prestar contas ante o teu trono.
Senhor, pedimos por nosso povo, que ao longo dos tempos acumulou muita culpa sobre si. Quando te fomos infiéis, trouxemos sofrimento e dor para outras pessoas. Pedimos-te por razão e percepção para a medida correta para nosso falar e agir. Não permitas jamais que esqueçamos que és o Senhor de nossa história Senhor, em muitos lugares deste mundo há injustiça, necessidade e guerra. Há seres humanos fugindo porque têm que abandonar sua terra. Crianças sofrem fome, porque os ricos não querem partilhar. Pessoas são torturadas porque quem governa é a violência. Outros são perseguidos por causa de sua fé. Senhor, perdoa nossa culpa e faze de nós instrumentos de tua paz neste mundo.
Ouve nossa oração, misericordioso Deus e Pai, por nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
Bibliografia
DREHER, Martin N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2006.
RAD, Gerhard von. Das erste Buch Mose. Gênesis. 8. ed. Göttingen: Vanden- hoeck & Ruprecht, 1967 (Das Alte Testament Deutsch 2/4)
WESTERMANN, Claus. Genesis. 2. ed. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1989. (Biblischer Kommentar Altes Testament, I/2)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).