Contando com a graça de Deus
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Gênesis 15.1-6
Leituras: Lucas 12.32-40 e Hebreus 11.1-3, 8-16
Autoria: Samuel Gausmann
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 07/08/2016
1. Introdução
Gênesis é o livro das origens, que destaca o relacionamento de Deus com seu povo escolhido: Abraão, Isaque, Jacó, José e seus descendentes. Através de toda a narrativa, a principal preocupação do autor é apresentar o propósito de Deus em criar e providencialmente guiar esse povo eleito.
Hebreus 11.1-3,8-16 procura, inicialmente, conceituar a fé: “Fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem”. É feita alusão à história de vida de Abraão e Sara a partir desse conceito de fé, destacando que o apego à palavra de Deus jamais decepciona.
Lucas 12.32-40 não fala diretamente de Abraão e Sara, mas se pode fazer uma ligação entre a família de Abraão e Sara e o pequeno rebanho ali apresentado. O evangelista fortalece a comunidade, lembrando a presença e a promessa do reino de Deus. Assim como as promessas de Deus a Abrão expressam o amor e a graça divinos, o pequeno rebanho também é protegido pela graça de Deus. No v. 32b é dito que Deus tem prazer em dar o reino ao pequeno rebanho. Diante da promessa é preciso estar vigilante e crer, a exemplo de Abraão.
Portanto os cuidados de Deus em cumprir sua promessa e a fé nele (e todo compromisso que isso implica) são os fios que entrelaçam os três textos. Em Lucas, é Jesus quem diz “não tenha medo” ao pequeno rebanho, e, em Gênesis, é Deus quem diz “não tenha medo” a Abrão e apresenta-se como escudo.
2. Exegese
A perícope delimitada está inserida na “colcha de retalhos” de Gênesis 15, composta de duas narrativas independentes (Gn 15.1-6 e Gn 15.7-21) e com linhas de diferentes tradições (profética: com a expressão “veio numa visão/teve uma visão”; Dêutero-Isaías: de onde vêm expressões como “não temas”, entre outras). Recomendo consultar a pesquisa feita por Nelson Kilpp no PL 26, p. 257-260. É salutar pesquisar o contexto da história bem como as intenções dos redatores para não perder o “fio da meada” e não “rasgar” a colcha, mas valorizar seu colorido na pregação.
O v. 1 faz referência a fatos anteriores ao afirmar “depois desses acontecimentos/ depois disso”. Os capítulos anteriores relatam que exércitos vindos do Oriente invadiram a terra de Israel e causaram muitos estragos. Abrão envolveu-se no conflito por causa de seu sobrinho Ló, que fora feito prisioneiro de guerra. Além disso, vale recapitular acontecimentos marcantes que causaram profundo impacto em Abrão e sua família, como: fome e fuga para o Egito (12.10), mentira no Egito por causa de Sarai (12.13), separação de Ló (13.9), promessa de uma terra (13.14-15).
Naquele momento específico, a maior preocupação de Abrão era uma retaliação militar. Por isso é tão significativa para sanar os medos de Abrão a revelação de Deus como escudo. O escudo é um instrumento de defesa e proteção do guerreiro. Deus assegurou a Abrão que não deveria considerar Eliézer como seu herdeiro. De acordo com as leis da época (relatadas em descobertas arqueológicas), era costume casais ricos e sem filhos adotarem um servo e torná-lo seu herdeiro. Não há relatos dessa tradição entre os israelitas. Nesse momento de crise de fé, Abrão cogita fazer uso do costume de outros povos para “viabilizar” a promessa de Deus. A desgraça de não ter filhos abala também a fé de Sarai, quando, fixando os olhos mais nas circunstâncias do que nas promessas, contando mais com as possibilidades humanas do que com os milagres de Deus, também recorre ao costume estrangeiro e entrega sua escrava Hagar a Abrão na esperança de que ela concretize o herdeiro que Deus havia prometido. Por agir sem contar com Deus, as consequências foram discórdia e sofrimento.
Na época de Abrão, ter filhos era uma questão central, diferente de hoje, mas, ainda assim, os filhos representam um dos maiores galardões que se pode ter. O termo galardão associado a filhos consta no Salmo 127.3: Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Abrão trocaria todo o gado, todos os servos, todo o ouro e toda a prata para poder ter o galardão de um legado fiel. Deus, então, enfatiza que Abrão terá um herdeiro gerado de seu próprio corpo (no hebraico, o termo soa como “de tuas entranhas”, ou seja, das próprias capacidades procriativas). Outra tradução seria “do útero”, pois transfere a questão da procriação para Sarai.
Abrão não opôs dúvidas ao que Deus lhe disse, embora já tivesse idade avançada. Ele creu firmemente em sua palavra, e isso lhe foi imputado por justiça (Rm 4.18-22), isto é, por causa da sua fé de que Deus cumpriria sua promessa, Deus o aceitou e, como as demais personalidades do Antigo Testamento (Hb 11), Deus declarou-o justo. Semelhantemente, todos os que põem sua fé em Cristo são declarados justos por Deus e herdeiros das bênçãos de Abrão.
A perícope delimitada termina com um famoso versículo (citado em Rm 4.3; Gl 3.6; Tg 2.23): Abrão creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça. Essa é a manifestação de um coração acalmado, de alguém sereno e tranquilizado pela suficiência do Senhor. De tudo o que o ser humano pode fazer para agradar a Deus, o mais sublime é crer nele e nas palavras dele. Deus é glorificado em nós à medida que confi amos nele. A fé agrada a Deus porque evidencia que ele é digno de confi ança, que ele é mais importante do que seus presentes. Em momentos de dúvida ou temor, confi e na sufi ciência do Senhor: viva contando com a graça de Deus!
Nesse contexto, justiça não é uma norma absoluta, mas conceito relacional: o conceito justo é conferido àquela pessoa que se porta corretamente em relação à comunhão na qual se encontra (com outras pessoas e com Deus). Deus é justo ao permanecer fiel ao pacto que estabeleceu com uma pessoa ou um povo.
O conceito de fé que o texto nos revela também enfatiza o aspecto relacional. Em momentos de perigo ou desespero, Abrão deveria crer no cumprimento das promessas divinas. O contato com Deus estabelece-se no momento em que alguém crê no que Deus disse. Somente considerar verdade aquilo que Deus disse ainda não é ter fé, nem mesmo o fato de admitir somente a sua existência. Conforme afi rma o P. Alcides Jucksch: “As palavras de Deus são o único fundamento da fé viva em um Deus vivo: Não importa o que as experiências mostram. Não interessa o que os sentimentos informam. Não é relevante o que o raciocínio pondera. Só importa, só interessa e só é relevante o que Deus disse”. Submissão confiante à vontade de Deus é o elemento básico na verdadeira religião, como destaca Hebreus 11.8, quando afirma que Abrão, sendo chamado, partiu sem saber para onde ia. Todo o ciclo de sua vida está dentro de três parâmetros: obedecer à palavra de Deus, retornar à palavra de Deus e esperar pela palavra de Deus. Fundamentais, nesse sentido, são também as palavras de Jesus Cristo para os cristãos, como, por exemplo, sua presença até o fim dos tempos (Mt 28.20) e as palavras de instituição da Santa Ceia.
3. Meditação
Para a elaboração da pregação, é bom ter em mente que esse texto faz parte das sagas do povo de Israel, em que a história do povo é sempre história com Deus e, por isso, assim como ele agiu com os patriarcas, ele está agindo com seu povo em todos os tempos. As costuras proféticas da perícope destacam esse aspecto de consolo para leitores que se encontram em um presente conflitivo, e a lembrança de uma promessa divina do passado serve para vislumbrar um futuro com mais esperança.
O medo é um instinto de sobrevivência, mas há medos infundados que limitam a vida. Deus teve paciência e trabalhou no coração de Abrão, reafi rmando suas promessas. Quando Abrão ouviu a promessa de Deus, não aconteceu nada de extraordinário naquela noite: Deus não enviou um exército para proteger o acampamento e nem blindou as barracas contra as espadas dos inimigos. Abrão apenas sentiu a presença de Deus, e isso acalmou seu coração angustiado. Foi como uma criança com medo do escuro ouvir a voz da mãe ou do pai e sossegar porque soube da presença de alguém mais forte e que a ama.
No Antigo Testamento, a fé apresenta um duplo aspecto: confi ança em/ou dependência de/e lealdade. Nesse texto, o termo crer (do hebraico aman) significa perseverar confiando e crendo, evidenciando isso mediante uma fidelidade obediente. Era esse tipo de fé que Abrão tinha.
Diante disso cabe questionar: será que Deus é a nossa suficiência? Ou será que, quando em apertos, nossa primeira opção é: Familiares? Namorado ou namorada? Livros de autoajuda? Multidão de conselheiros? Será que recorremos primeiro a Deus? Para isso acontecer, muitas vezes, Deus permite que caiamos… e até o “cair em si mesmo” pode servir aos propósitos divinos de revelar às pessoas os seus planos, que, por ser maiores do que nossa compreensão, não significam que não existam e que, por serem, às vezes, diferentes dos nossos, não signifi cam que sejam contra nós.
Em nosso mundo, onde tudo tem preço, medida, pressa, onde tudo parece possível, mas não há nenhuma segurança, em que tudo “cai na rede” e tanta gente não “cai na real”, onde cada vez mais coisas estão acessíveis no mundo virtual, mas no mundo real a consciência e o coração das pessoas estão cada vez mais inatingíveis, com o que, afi nal, podemos contar? Não conte com nada a não ser com a graça de Deus! Essa conta parece desesperadora para quem não crê. Como assim, contar apenas com a graça de Deus? Esse foi o teste de Abrão e continua sendo uma prova de fogo para a pessoa cristã moderna, que conta com muito mais possibilidades do que Abrão, mas permanece com a mesma insegurança tão humana: com o que contar quando não posso contar com mais nada? Essa conta não tem solução matemática. Sua solução é Deus. Jesus Cristo pagou nossa conta na cruz e requer que apenas contemos com sua graça a cada novo dia.
As decisões de fé podem levar-nos a perdas e renúncias para manter uma vida santificada, podem levar-nos a temer ou ficar desanimados. Podem até criar inimigos para nós. Podem custar caro e, aparentemente, não dar nenhum retorno. Mas não devemos temer o futuro. Não devemos temer que perdemos oportunidades inéditas. Deus é maior! Ele anda conosco, mesmo pelo vale da sombra da morte (Sl 23.4). A única solução para o medo de alguma coisa é ter algo maior a seu lado. Deus dá-nos o presente da coragem para viver pela fé, sabendo que ele está conosco.
O v. 5 subentende que Abrão estava dentro de uma tenda: “Então Deus o conduziu até fora”. Esse versículo lembra-nos que Deus nos conduz para fora de nossas limitações. Abrão estava cercado por paredes de pano. Tantas vezes nós só vemos os problemas, só enxergamos até onde alcançam nossas “paredes de pano”: nossos recursos humanos limitados e frágeis. Então Deus pega-nos pela mão e nos tira de “nossa tenda” e manda-nos levantar os olhos (buscar a Deus) e contar estrelas (contar com a graça de Deus). O contar estrelas lembra-nos de duas coisas: não podemos contá-las assim como não podemos contar os recursos de Deus e não podemos tocá-las assim como não podemos interferir nas ações divinas. Eis uma reflexão desafiadora para nossa vida de oração: oramos “contando estrelas” ou encarando nossas “paredes de pano”? Deus tem muito mais a nos oferecer e pode realizar muito mais do que podemos contar. A partir do que Deus diz a Abrão todas as vezes que ele contemplava o céu estrelado, sua fé se renovava.
A dúvida é inimiga da fé: ela agiganta os problemas e encolhe Deus. A exemplo de Abrão, podemos perceber que quem mede perde; quem crê vê!
4. Imagens para a prédica
Usar uma lâmina de retroprojetor, pintá-la para deixá-la escura e opaca e então fazer furinhos em formato de estrela para projetar na parede ou no teto da igreja com pouca luz ou na escuridão para dar um efeito de céu estrelado. Nesse momento, cantar “Conta as bênçãos” ou usar essa projeção durante ou no final da pregação.
Estória para exemplificar: Um acrobata apresentava, bem acima da cabeça das pessoas, suas sensacionais habilidades. Os espectadores estavam entusiasmados. De repente, ele ficou parado sobre a corda e exclamou: “Vocês acreditam que eu consigo pegar um carrinho de mão, sentar um homem nele e levá-lo em segurança sobre a corda até o outro lado?” “Sim, sim!”, gritaram as pessoas. Então o acrobata chamou um homem que tinha gritado “sim” com especial entusiasmo: “Você aí! Suba! Venha, você vai atravessar a corda comigo!”. O homem empalideceu. “Não! Eu não! Isso já é outra história!” Quantas vezes nossa fé é fervorosa, mas nossa vivência… bem, aí é “outra história”… Deus fez o convite a Abrão e enviou seu Filho para reforçar o convite, deixando claro que bem-aventuradas não serão as pessoas que gritarem “sim” (crer em Deus e acreditar no que ele diz), mas aquelas que ousarem e aceitarem o convite (viver segundo aquilo que Deus diz). Você aceita o convite?
5. Subsídios litúrgicos
Hinos
HPD 1: 159, 161; HPD 2: 453, 454, 456, 460.
Versículo de acolhida
Eu te amo, ó Senhor, força minha. O Senhor é a minha rocha, a minha cidadela, o meu libertador; o meu Deus, o meu rochedo em que me refugio; o meu escudo, a força da minha salvação, o meu baluarte (Sl 18.1,2).
Participação do Culto Infantil
Para destacar o compromisso em educar na fé as futuras gerações: uma sugestão para as crianças cantarem o hino “Sabes quantas estrelinhas lá no firmamento estão?” (HPD 1, 236).
Anúncio da graça
Jesus ensina em Lucas 12.32: Não temais, ó pequenino rebanho, porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino. Quem esvaziou seu coração de pecados e culpa seja preenchido pelo perdão de Deus; quem não vê mais graça nas coisas receba a graça de Deus, que nos faz enxergar mais longe e mais profundo; quem se arrependeu receba a coragem e a orientação de Deus para fazer melhor.
Oração do dia
Ó Deus misericordioso, tu vês a nossa caminhada. Perdão quando empacamos por causa de nossos medos. Concede que tua palavra desate nossas amarras, torna nosso caminhar mais leve e confiante. Agradecemos-te porque tuas promessas não mudam, apesar de nossos tropeços. Ensina-nos a contar estrelas como Abrão. Ensina-nos a seguir-te, apesar do que vemos e sentimos. Amém.
Bibliografia
GARDNER, Paul (Ed.). Quem é quem na Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Vida, 2005. p. 10-16.
RENDTORFF, Rolf. A formação do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1998.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).