Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Gênesis 18.1-10
Leituras: Lucas 10.38-42 e Colossenses 1.15-28
Autor: Manoel Bernardino de Santana Filho
Data Litúrgica: 9º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/07/2013
1. Introdução
O livro de Gênesis narra as origens de Israel. Isso ele faz de duas formas. Os capítulos 1 a 9 relatam, como proto-história, a criação do mundo em dois atos: criação e dilúvio. O pacto celebrado no capítulo 9 pelo Deus Criador com “tudo o que vive” integra simultaneamente os assim chamados mandamentos de Noé enquanto Torá fundamental para todos os povos. Os capítulos 10-50 desdobram em três círculos narrativos (Gn 10.1-25,11; 25.12-36; 37-50) a história de três gerações de famílias dos patriarcas de Israel: Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, Jacó e Lia/Raquel.
No texto de hoje, o destaque é para Abraão e Sara. Aqui se oferecem visitação e promessa. O encontro ao meio-dia nesse capítulo contrasta significativamente com a cena noturna do capítulo 19 em Sodoma. Sob os carvalhais de Manre se dá uma cena íntima e impregnada de promessa.
O contexto sugere a manifestação divina (teofania). O autor da Carta aos Hebreus afirma: “Não negligencieis a hospitalidade, pois alguns, praticando-a, sem o saber acolheram anjos” (13.2). Aqui se dá a ligação com os textos de Lucas e Colossenses. Em Lucas (10.38-42), a cena é também de hospitalidade. As irmãs Marta e Maria recebem em sua casa Jesus de Nazaré. Como Abraão e Sara, as duas irmãs não sabiam bem a identidade daquele homem e, no entanto, receberam-no como amigo. O texto de Paulo (Cl 1.15-28) oferece a resposta: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação” (15). Essa carta foi escrita justamente para combater certas doutrinas que estavam sendo apresentadas em Colossos, contrárias ao que Paulo havia ensinado. Alguns comentaristas afirmam que aqui se denuncia um ensino que pode ser chamado de protognóstico. Daí o caráter cristológico da carta. O Deus absconditus (incognoscível) do Antigo Testamento torna-se plenamente conhecido na pessoa de Jesus Cristo. A Carta aos Colossenses marca essa apresentação definitiva de Jesus Cristo como o Deus que se fez Homem. Por isso os três textos se inter-relacionam de forma crescente na apresentação do Deus Trino.
2. Exegese
A promessa do capítulo anterior (17.15s) é renovada no capítulo 18. O que há de novo é o ambiente em que a promessa se renova e o desafio à fé pessoal de Sara. O texto, de tradição javista (Fonte J), apresenta Abraão na hora do descanso e da sesta por causa da intensidade do calor. Milton Schwantes descreve a cena como “exuberante”. O primeiro verso afirma que o Senhor aparece a Abraão. Outro comentarista (Frederico Sattler) afirma que o anonimato da visita é puramente literário, já que Abraão não hesita em nenhum momento quanto a se tratar do próprio Senhor.
O autor caracteriza o local do encontro. Ali estão Abraão e Sara sob os carvalhos de Manre, nas proximidades de Hebrom. Aqui ele também ergueu um altar ao Senhor (Gn 13.18), assim como fizera no anúncio da promessa da terra (Gn 12.7-8).
O que sucede aqui, ou seja, a ação é mais importante do que o local. Os carvalhos de Manre tornar-se-iam lugares sagrados, competindo com outros espaços como Hebrom e Jerusalém. No entanto, a presença de Deus sublinha a solidariedade com o ser humano. “Javé é o Deus da companhia nos passos da vida, aqui na presença de árvores magníficas” (Schwantes).
Duas questões, como já mencionado, estão presentes nesse texto. Primeiro, a hospitalidade de Abraão. A partir do momento da chegada do(s) visitante(s), seu comportamento altera-se visivelmente. O homem sentado à entrada da tenda agora se coloca em pé para servir a seu hóspede. No v. 3, Abraão é quem se coloca como alguém que busca acolhida diante de Deus. Sua fala “meu Senhor (Adonai), se achei mercê em tua presença, rogo-te que não passes do teu servo” mostra a consciência que ele tinha da especificidade divina do encontro.
O visitante é convidado de forma enfática a permanecer com ele e Sara. Seus gestos são grandiosos. São expressões de plena acolhida. O pai da parábola do filho pródigo foi descrito sobre o modelo de Abraão desse episódio. A partir do momento em que o visitante aceita o convite (v. 5), ele e Sara apressam-se a atender da melhor forma possível.
A consciência do divino despertada em Abraão fá-lo “correr”, a fim de que Deus não passe de sua presença. Ele tem muito pouco a oferecer. Ele pensa logo no que é mais prático. Primeiro a água, para lavar os pés e descansar na proteção das árvores. O sertanejo de nosso país sabe bem o que significa a água para o retirante, o homem e a mulher fugitivos das grandes secas que assolam o sertão do Nordeste brasileiro. Para conhecer melhor essa situação, basta ler o romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “O Quinze”, de Raquel de Queiroz. Após uma longa caminhada por terras poeirentas, a água na bacia era um bálsamo para o viajante.
Segundo, a oferta de um pouco de comida. Quem não tem em casa um pouco de trigo, um bocado de pão ainda que velho? Por isso ele propõe: “Trarei um bocado de pão” (5a) para refazer as forças. A Bíblia de Jerusalém assim traduz esse verso 5b: “e vos reconfortareis o coração antes de irdes…” Portanto a afirmação de que aquele pão reporia as forças não passa de um exagero de Abraão em sua afobação. Não daria para isso. No máximo, daria para animar o coração desfalecido. Servia também para segurar os visitantes enquanto se podia servir coisa melhor e mais apropriada. Era a porção de entrada de alimentos mais nutritivos, porque aquilo não era nem mesmo um “lanche”.
As coisas melhoram nos versículos 6-8. Aquele bocado de pão inicial agora se transforma em três medidas de pão. Não precisamos nos preocupar com a quantidade real do que estava sendo oferecido. Josefo afirma que três medidas de farinha era uma expressão tradicional entre os hebreus. O que importa é que o alimento antes contado agora se torna transbordante. É pão suficiente para uma festa. Manifesta-se a abundância. Aqui surge a superação do impossível. O alimento em preparação é banquete para muita gente.
Agora a mesa é posta: após o preparo (v. 6-7), vem a apresentação dos alimentos (v. 8). É uma refeição com dois pratos: pão e carne. Ao se servir a mesa, são mencionados mais dois alimentos: coalhada e leite. Esses já estavam prontos à diferença dos outros dois pratos. Tudo isso feito com pressa, correndo mesmo para evitar a saída do visitante. Abraão divide a pressa com sua esposa Sara e com o ajudante (v. 7). A pressa é epifânica, porque Abraão tem consciência de estar diante de Deus. Não são as experiências culinárias que exigem a pressa, mas a certeza da experiência com Deus. Afinal de contas, a pressa é inimiga da perfeição. Uma comida feita às pressas tende a não ficar boa.
Afinal, a comida é servida no assoalho do chão. Abraão adiciona ao pão e à carne a coalhada e o leite. Ele permaneceu de pé enquanto eles comiam sob as árvores.
Em segundo lugar, transparece no texto a promessa. Nos v. 9-10, é prometido um filho a Sara. O v. 9 fala no plural, mas a promessa feita a Abraão e Sara é no singular. É um deles que fala e promete um filho no prazo de um ano. Sara, antes no interior da tenda (v. 9), já se encontra à porta da mesma (v. 10). Depois ela se chega atrás dele. A cena desloca-se de Abraão para Sara. Aos poucos, ela vai se incluindo. Ela agora é alvo direto da promessa de um filho. A expressão retornar ou certamente retornarei expressa certeza, veracidade. Ou seja, não deve haver dúvida de que a promessa se cumprirá. Sara inclui-se no relato como fazedora de bolo e termina diante de Javé.
3. Meditação
Abraão não é apenas o pai espiritual de Israel. É pai de todos os que creem. Coube a ele nos ensinar o que significa ter fé. Não é por acaso que o pensador dinamarquês Sören Kierkegaard dedicou a ele o texto “Temor e Tremor”. Em um dos capítulos – Elogio de Abraão – afirma: houve grandes homens por sua energia, sabedoria, esperança ou amor. Abraão, porém, foi o maior de todos. Grande pela energia cuja força é a fraqueza; grande pelo saber cujo significado é loucura. Abraão não nos deixou lamentos. Mesmo quando a esperança se tornou absurda, ele acreditou.
Por ele se viu no mundo o que é ter esperança. Ele era o eleito de Deus e herdeiro da promessa de que todas as nações seriam abençoadas em sua posteridade. Que significa ser o eleito de Deus? É ver recusado o desejo de juventude na primavera da vida, para só obter tal favor na velhice, depois de grande dificuldade. Abraão acreditou e por isso se manteve jovem, porque aquele que espera sempre o melhor envelhece na decepção e o que aguarda sempre o pior mais depressa se gasta; mas o que crê conserva a eterna juventude.
Nosso texto fala desse homem de fé chamado Abraão e sua mulher Sara. Ele é o homem que alcançou graça diante de Deus, sendo justificado por sua fé. Paul Tillich sugere que não se deve dizer justificação pela fé, mas justificação por meio da fé. Tillich escreveu um pequeno livro – “Dinâmica da Fé” – em parte para corrigir as terríveis deformações do conceito de fé. Segundo esse autor, a fé é distorcida quando passa a ser concebida antropologicamente como conhecimento (intelectualismo), como ato (moralismo) ou como sentimento (emocionalismo). Para ele, a fé é um estado a ser tomado pela preocupação suprema, ou seja, a fé envolve tanto as profundezas como a totalidade do ser.
Deus quer tratar direto com o ser humano. Esse Deus vem ao nosso encontro e se apresenta. E a teofania dos olhos transmuda-se numa teofania da palavra, pois é aqui que Deus revela o seu ser. É Ele, o Senhor que chama, desafia, tira do anonimato, da solidão, da alienação degradante, da tristeza e conduz o ser humano para enfrentar os desafios da vida. E o Nome é um só, ainda que três pessoas: Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo. Não são três nomes. São três pessoas e um só nome.
O texto realça a hospitalidade crescente, que irá culminar na abundância de alimentos, na oferta do pão e da carne. Abraão oferece uma maravilhosa acolhida a seus hóspedes inesperados. E, no entanto, ele se sai magnificamente bem. Quanto aos “homens”, o texto diz apenas que eles “comeram”, o que expressa a aceitação dos mesmos da oferta apresentada.
A hospitalidade gera a promessa. Este é o presente dos visitantes: o anúncio do nascimento de Isaque. O filho está vinculado a alegria. Sara riu em seu íntimo, mas não foi castigada por isso. Seu riso é fruto de sua incredulidade diante do peso inexorável dos anos. Abraão também achou graça (Gn 17.17) da promessa de um filho a um homem de cem anos. Somos assim: crentes/incrédulos. Somos chamados a crer que o poder é de Deus (Sl 61.11). O dito expresso em Gênesis 18.14 ecoa por toda a Bíblia: “Acaso para Deus há cousa demasiadamente difícil?”.
Não devemos ver o nome de Isaque ligado a um castigo por causa da incredulidade. Antes, está vinculado à alegria do cumprimento da promessa. Isaque significa “alegra-se”. Mas não parece que haja referência a culpa ou castigo. É antes a animação por receber um filho. Antes do que uma crítica a Sara, é a promessa do filho que vai fazer rir.
4. Imagens para a prédica
Vem à mente a história de Baucis e Filemon, contada por Ovídio em suas Metamorfoses (Livro VIII). Um dia, o deus Júpiter chegou às colinas da Frígia, acompanhado de seu filho Mercúrio, disfarçados de homens mortais. Eles bateram em milhares de portas em busca de um lugar para descansar e encontraram milhares de casas fechadas. Mas uma, afinal, se abriu. Era uma cabana humilde, coberta de palha e juncos. Uma velha bondosa, Baucis, e seu esposo igualmente bondoso, Filemon, viviam ali. Eles haviam se casado muito jovens e envelheceram juntos na mesma cabana.
Eram pessoas muito pobres, mas enfrentaram tudo com espírito elevado. Quando aqueles dois homens chegaram, Filemon montou um banco rústico para que eles sentassem, enquanto Baucis estendia um tecido grosso para cobri-lo. Depois ela foi cutucar as cinzas, ainda quentes do fogo da noite anterior. Refeito o fogo, colocou sobre ele uma panela de cobre e nela pôs o repolho que seu marido havia trazido da horta bem cuidada. Filemon cortou um pedaço de toucinho e pôs na panela. Enquanto esperavam, providenciaram um colchão de capim para que os dois homens descansassem.
Quando eles acordaram, encontraram sobre a mesa hortelã verde, azeitonas, verdes e pretas, cerejas conservadas em borra de vinho, endívia, rabanetes, queijo e ovos cozidos. O vinho foi servido em taças de madeira. Após terem saboreado essa comida, logo o casal de velhos preparou a mesa para uma segunda rodada: nozes e figos, tâmaras e pêssegos, uvas roxas fresquinhas e um favo de mel. Em volta da mesa, rostos bondosos, nada egoístas. Continuaram servindo os visitantes e perceberam que o vinho nunca acabava e deram-se conta do que estava acontecendo. Então, com voz trêmula, disseram: “Perdoem-nos, por favor, pela nossa falta de preparo, nossa comida escassa!”
Júpiter e Mercúrio revelaram-se e disseram para que fossem para o alto da montanha, de onde eles poderiam contemplar a destruição de toda aquela região onde não se sabia praticar a hospitalidade. Sua casa acabou se transformando em um templo, e os deuses lhes perguntaram qual o desejo que eles tinham. Eles responderam que queriam morrer juntos, que um não visse a morte do outro. E eles foram atendidos. Os camponeses daquela região passaram a mostrar aos visitantes um carvalho e uma tília cujos troncos se juntaram formando uma só árvore.
5. Subsídios litúrgicos
A liturgia do domingo pode celebrar a comunhão e a hospitalidade. Podem-se partilhar o pão, sustentação da vida, e a água, elemento vital para o bem-estar de todas as pessoas. Ainda estamos engatinhando quanto a uma teologia ecológica. Não fomos treinados para isso porque, no passado, falaram-nos do céu e nada da terra.
O pão, representado pelo trigo, pelas uvas, pelos frutos da terra, deve ser compartilhado, porque Deus oferece os bens da terra a todos os seus. Se isso não está sendo distribuído com justiça, é porque o ser humano tem promovido a injustiça.
A celebração é para nos fazer lembrar nossos deveres. Lembrar que, como povo de Deus, devemos ser os primeiros a viver a experiência da partilha e da solidariedade.
Nossa oração hoje é: Ajuda-nos, Senhor, a fugir do pecado de Sodoma, que não praticava a hospitalidade, antes preferia humilhar e demonstrar menosprezo para com os de fora. Deus em sua graça nos livre dessa injustiça. Dá-nos forças, Senhor, para superar o desinteresse com o próximo. Dá-nos a confiança e a fé de Abraão.
Bibliografia
DATTLER, Frederico. Gênesis. São Paulo: Paulinas, 1984.
SCHWANTES, Milton. Deus Vê, Deus Ouve! (Gênesis 12-25). São Leopoldo: Oikos, 2009.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).