O escandaloso amor de Deus
Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Gênesis 18.20-32
Leituras: Lucas 11.1-13 e Colossenses 2.6-15 (16-19)
Autoria: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 24/07/2022
1. Introdução
O texto da prédica e as demais leituras foram objeto de auxílio homilético publicado na série Proclamar Libertação uma única vez, no volume 20, de 1995, para o 10º Domingo após Pentecostes. Naquela oportunidade, Carlos A. Dreher foi o autor do brilhante texto publicado, cuja leitura recomendamos.
O texto da prédica chega a ser muito estranho. Começa apresentando um Deus em dúvida a respeito de como agir em relação à destruição de Sodoma e Gomorra. Deus não sabe se deve ou não contar a Abraão que estava para destruir aquelas cidades por causa das suas injustiças. Estamos acostumados a nos referir ao Deus onisciente, que sabe tudo. Como é que ele é apresentado como alguém que não sabe bem o que tem de fazer?
Frente à dúvida, Deus se dispõe a conversar com Abraão. Ousada e atrevidamente, Abraão questiona Deus. Partindo do pressuposto de que nem todas as pessoas seriam injustas naquelas cidades, Abraão pergunta se Deus não estaria cometendo injustiça destruindo todas elas? A partir desse questionamento,
estabelece-se um diálogo entre Abraão e Deus, no qual o Senhor chega ao ponto de afirmar que não as destruiria se nelas houvesse no mínimo dez pessoas justas.
Partindo da pressuposição de que o diálogo de Abraão com Deus foi uma oração, estabelece-se a conexão com o texto de Lucas, no qual Jesus ensina sua oração a seus discípulos e os estimula a orar, contando uma parábola a respeito de uma pessoa que importuna um amigo a fim de obter dele um favor. Com ela, Jesus ensina seus discípulos que devem pedir, buscar e bater a fim de que Deus atenda suas súplicas, pois Deus ama o ser humano e responde às suas orações.
No texto de Colossenses, por sua vez, Paulo critica as pessoas cristãs daquela igreja que se deixaram influenciar por ensinamentos que apregoavam a prática de determinadas obras para a conquista da salvação. Contra isso, o apóstolo proclama a gratuidade do amor de Deus.
O foco deste auxílio, portanto, será ressaltar o amor escandaloso de Deus.
2. Exegese
Os pecados de Sodoma
O capítulo 18 do livro do Gênesis começa contando a história de que, certo dia, Abraão recebeu a visita de três homens. Ao longo da história da igreja, teólogos têm usado esse texto como argumento em favor da doutrina da Trindade. Esse assunto não nos interessa aqui. Abraão foi hospitaleiro. Acolheu os visitantes e alimentou-os. Depois, caminhou com eles em direção a Sodoma.
Na caminhada, sem maiores explicações, um dos homens é apresentado como sendo o Senhor, que entra em confabulação com as outras pessoas. Ele não é onisciente. Tem uma dúvida. Pergunta se deve ou não contar a Abraão o seu propósito de destruir a cidade de Sodoma.
A dúvida divina tinha uma razão de ser. Deus havia se manifestado a Abraão (Gn 12), convidando-o a deixar a sua terra e a sua parentela e a partir para um lugar que iria lhe mostrar, se ele se dispusesse a sair sem saber para onde iria. Abraão teve fé e partiu, confiando na promessa divina de que ele se tornaria pai de uma grande nação.
Portanto, pela fé, Abraão estabeleceu uma parceria com Deus. Por causa dessa parceria, Deus estava em dúvida se deveria ou não contar a ele o seu projeto de destruição das duas cidades injustas.
Na atualidade, muita gente entende que o pecado de Sodoma era a prática da sodomia, ou seja, a prática do sexo entre os homens. Por conta disso, para muitas igrejas e líderes religiosos, nenhum pecado é mais grave do que a sodomia. Por causa dela, Deus é intolerante e a castiga com furor.
No entanto, nosso texto não faz nenhuma referência a isso. Ao contrário, na confabulação de Deus aparecem dois termos hebraicos que fazem referência à justiça e ao juízo (Gn 18.19). Logo a seguir, Deus diz: O clamor contra Sodoma e Gomorra tem aumentado, e o seu pecado é gravíssimo (Gn 18.20).
A partir daí podemos ter uma compreensão diferente a respeito do pecado de Sodoma. Daquela cidade elevava-se um clamor contra as injustiças que chegava até o Senhor. Essa compreensão tem forte base bíblica, pois, ao longo de toda a Escritura, Deus se manifesta em favor da justiça.
No texto da prédica, Deus também diz: Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que veio até mim (Gn 18.21). Isso indica que, sempre que há clamor contra a injustiça, Deus se dispõe a ouvir e, mais do que isso, a descer e a ver se, realmente, o clamor corresponde à realidade. Esse seria, pois, o pecado de Sodoma e Gomorra. Eram duas cidades onde a injustiça prevalecia.
Levando em conta o contexto do nosso texto, outro pecado poderia ser apontado contra as duas cidades. Antes do nosso texto (Gn 18.1-15), a narrativa bíblica destaca a hospitalidade de Abraão. Ele estava do lado de fora da sua tenda, no calor mais intenso do dia, quando aparecem três visitantes desconhecidos. Sem saber quem são, corre ao encontro deles, prostra-se e convida-os a ficarem com ele. Oferece-lhes água e alimento.
Depois do nosso texto (Gn 19.1-3), a narrativa bíblica volta a destacar a importância da hospitalidade. Dois anjos chegaram a Sodoma. Junto ao portão da cidade estava Ló. Seu procedimento foi semelhante ao de Abraão. Convidou-os a ficar em sua casa. Ofereceu-lhes um banquete.
Uma das virtudes valorizadas na Bíblia é a hospitalidade. Ela foi uma das virtudes recomendadas pelo apóstolo Paulo aos cristãos de Roma: Ajudem a suprir as necessidades dos santos. Pratiquem a hospitalidade (Rm 12.13). No entanto, o que faltou a Sodoma foi exatamente a hospitalidade (Gn 19.4-9). Aliás, poder-se-ia dizer que Sodoma era uma cidade preconceituosa contra os imigrantes. É isso que se depreende do que disseram seus moradores contra Ló: Ele é estrangeiro, veio morar entre nós e pretende ser juiz em tudo? (Gn 19.9).
A justiça de Deus
Estabelecido que o pecado de Sodoma era a injustiça e a falta de hospitalidade, podemos, agora, examinar mais de perto o diálogo de Deus com Abraão. O primeiro ponto a destacar é que a iniciativa do diálogo é de Deus. Destaco o texto de Dreher:
Trata-se de uma confidência, de uma conversa particular entre o Senhor e o seu escolhido […] E não deixa de ser bonita essa atitude de Deus: parar para conversar com Abraão. Alegra-me encontrar um Deus que tenha tempo para parar e bater um papinho. E, especialmente, um Deus disposto a dialogar sobre seus planos com as pessoas que nele confiam.
O segundo ponto é a pergunta que Abraão faz, logo de início, ao Senhor: Será que vais destruir o justo com o injusto?[…] Será que o juiz de toda a terra não faria justiça? (Gn 18.23). O diálogo apresenta um Deus condescendente. Ele não se coloca numa posição superior à de Abraão. Manifesta-se aqui aquilo que Calvino chamada de “acomodação”: Deus se comunica com o ser humano como se ser humano fosse.
A pergunta de Abraão diz respeito à justiça de Deus, um tema muito caro em toda a Escritura. Muito antes do profetismo clássico, Abraão seguia a linha do que Deus proclamaria por meio dos profetas: Deem uma volta pelas ruas de Jerusalém, olhem, investiguem, procurem nas suas praças para ver se acham alguém, se há uma só pessoa que pratica a justiça ou busque a verdade. Se acharem, eu perdoarei a cidade (Jr 5.1). Vocês pensam que eu tenho prazer na morte do ímpio? – diz o Senhor Deus. Não desejo eu muito mais que ele se converta dos seus caminhos e viva? (Ez 18.23).
O terceiro ponto é que, iniciado o diálogo, Abraão se atreve a ir reduzindo o número de pessoas justas por amor às quais Deus não destruiria a cidade. Começando com 50, Abraão chegou até dez e Deus lhe responde, terminando a conversa: Não a destruirei por amor às dez pessoas justas (Gn 18.32). Fica muito claro que a justiça de Deus não é meramente vingativa. Ao contrário, é uma justiça amorosa, cuja finalidade não é a destruição, e sim a restauração e a salvação. Assim é o escandaloso amor de Deus! Para se ter uma ideia melhor de quão escandaloso é esse amor, basta lembrar que chegou a provocar a raiva de Jonas, sedento por ver uma manifestação da justiça irada do Senhor sobre a cidade de Nínive (Jn 4.1-3).
3. Meditação
Neste momento (primeiro semestre de 2021), o Brasil e o mundo vivem um período histórico de extremismos. Há pouco tempo, os Estados Unidos, país que se orgulha de sua democracia, expuseram ao mundo o extremismo quando um grande grupo de pessoas promoveu um ato que jamais alguém poderia imaginar que fosse acontecer algum dia: a invasão do Capitólio, sede do poder legislativo nacional.
Enquanto isso, no Brasil, já estamos vivendo o período das eleições para a presidência da república, que só estão programadas para o final de 2022. E grupos de direita e de esquerda estão se agredindo mutuamente nas redes sociais, enquanto uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) trabalha em Brasília para descobrir os culpados pela morte muito elevada de vítimas da Covid-19. Ao mesmo tempo, o chefe do poder executivo atua insistentemente para facilitar o armamento da população.
Entre os extremos, não existe diálogo. Não há busca de um consenso em benefício de todos. Os extremos alimentam o ódio mútuo. Cada extremo considera-se justo e correto, ao mesmo tempo em que deseja a aniquilação do outro. As manifestações de extremismo contaminam todas as relações sociais, inclusive nas igrejas e nas famílias.
Com isso, vemos líderes religiosos invocando o nome de Deus em favor de seus posicionamentos extremados. Eles se apresentam como defensores da justiça de Deus, desejando que a ira divina caia sobre seus opositores. Diante disso, nosso texto bíblico apresenta um Deus que ama escandalosamente. E esse escandaloso amor de Deus é revelado em vários pontos.
Deus tem dúvida
Deus havia prometido a Abraão que abençoaria todas as nações da terra por intermédio dele. Este é o projeto de Deus: abençoar. No entanto, ele estava prestes a destruir Sodoma e Gomorra. Daí brotou a dúvida. Num diálogo íntimo consigo mesmo, Deus se pergunta se deve revelar sua maldição. Como é que Abraão reagiria se soubesse que o Deus da bênção também era o Deus da maldição?
Deus dialoga
Deus não toma nenhuma decisão final e irrevogável solitariamente. Ao contrário, em primeiro lugar, ele promete descer para ver se, realmente, o clamor de Sodoma contra a injustiça corresponde à verdade. E, em segundo lugar, Deus se dispõe a conversar com Abraão para ouvir a opinião dele a respeito de como deve proceder.
Sem dúvida alguma, a descida divina e sua abertura ao diálogo é uma manifestação de amor.
Deus é condescendente
No diálogo que se dispõe a travar com Abraão, Deus mostra-se extremamente condescendente. Abraão, primeiro, questiona se Deus poderia destruir o justo com o injusto. Deus responde que, se encontrar somente 50 justos, irá poupar a cidade toda por amor aos justos. A seguir, Abraão dá início a uma contagem regressiva a respeito do número de justos. Sem qualquer restrição, Deus vai concordando, seguidamente, que poupará toda a cidade por amor aos seus justos.
A contagem regressiva termina no número dez. Segundo Dreher, uma explicação plausível para isso é que, para o pensamento israelita, o menor grupo de pessoas é o de dez. Em todo caso, em toda a conversa fica patente a condescendência do escandaloso amor de Deus.
Por amor ao justo, Deus salva os injustos
Não havendo, entretanto, nem dez justos em Sodoma, ela foi destruída junto com Gomorra. Da destruição, escaparam somente três pessoas: Ló e suas duas filhas. Até sua mulher não escapou (Gn 19). Contudo, destruição de Sodoma e Gomorra não foi suficiente para eliminar a injustiça da face da terra. Ao contrário, espalhou-se cada vez mais por toda parte, a ponto de o salmista escrever: Do céu o Senhor olha para os filhos dos homens, para ver se há quem tenha entendimento, se há quem busque a Deus. Todos se desviaram e juntamente se corromperam; não há quem faça o bem, não há um sequer (Sl 14.2-3).
Diante disso, Deus teria todo o direito de promover não só a destruição de Sodoma e de Gomorra, mas também a destruição da terra toda. No entanto, com a corrupção geral de toda a humanidade, chegando ao ponto de não existir um justo sequer, Deus, em sua condescendência e amor, desenvolveu o seu plano de salvação de toda a humanidade.
Sua decisão foi enviar seu próprio filho, fazendo recair sobre ele a culpa de todos. Assim, por amor ao justo, Deus salva os injustos, como declara o Evangelho de João: Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele (Jo 3.16). Assim é o escandaloso amor de Deus! É um amor que faz com que Deus se torne humano!
4. Imagens para a prédica
Para reforçar ainda mais o escândalo do amor de Deus, transcrevemos o seguinte texto:
Jesus é, para nós cristãos, Deus feito homem […] Entrou em nossa história pela porta dos fundos: filho de um carpinteiro e de uma camponesa que apareceu grávida antes do casamento […] Na parábola do Filho Pródigo, comparou Deus a um pai que abraça e beija o filho devasso antes que ele se explique, pois o amor é a essência divina […] E ensinou-nos que, ao longo dos séculos, sempre haveremos de encontrá-lo na face daquele que “tem fome, sede, está nu, doente, oprimido” (Mt 25.35). Como afirma Leonardo Boff, “humano assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo” (Frei Betto, www.domtototal.com.br).
5. Subsídio litúrgico
Considerando que o escandaloso amor de Deus se revela de forma plena na pessoa de Jesus de Nazaré, sugerimos a utilização da afirmação de fé preparada por Frei Betto nos seguintes termos:
Não creio no deus dos magistrados, nem no deus dos generais ou das orações patrióticas. Não creio no deus dos hinos fúnebres, nem no deus das salas de audiências ou dos prólogos das constituições ou dos epílogos dos discursos eloquentes. Não creio no deus da sorte dos ricos, nem no deus do medo dos opulentos ou da alegria dos que roubam o povo. Não creio no deus da paz mentirosa, nem no deus da justiça impopular ou das venerandas tradições nacionais. Não creio no deus dos sermões vazios, nem no deus das saudações protocolares ou dos matrimônios sem amor. Não creio no deus construído à imagem e semelhança dos poderosos, nem no deus inventado para sedativo das misérias e sofrimentos dos pobres. Não creio no deus que dorme nas paredes ou se esconde nos cofres das igrejas. Não creio no deus dos natais comerciais nem no deus das propagandas coloridas. Não creio no deus feito de mentiras, tão frágil como o barro, nem no deus da ordem estabelecida sobre a desordem consentida. O Deus da minha fé nasceu numa gruta. Era judeu. Foi perseguido por um rei e caminhava errante pela Palestina. Fazia-se acompanhar por gente do povo. Dava pão aos que tinham fome, luz aos que viviam nas trevas, liberdades aos que jaziam acorrentados, paz aos que suplicavam por justiça. O Deus da minha fé colocava o ser humano acima da lei e o amor no lugar das velhas tradições. Ele não tinha uma pedra onde recostar a cabeça e confundia-se com os pobres. O Deus da minha fé não é outro senão o filho de Maria e de José, Jesus de Nazaré. Todos os dias ele morre crucificado pelo nosso egoísmo. Todos os dias ele ressuscita pela força do nosso amor (Frei Betto, in: LIMA, 1987).
Bibliografia
BORTOLINI, José. Roteiros Homiléticos. São Paulo: Paulus, 2006.
DREHER, Carlos A. 10. Domingo após Pentecostes: Gênesis 18.20-21(22),23-32. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1995. v. 20.
LIMA, Cyso (Org.). Salmos latino-americanos. 1987.
SPEISER, E. A. Genesis. The Anchor Bible. New York: Doubleday & Company, 1962.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).