Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Gênesis 2.4b-15
Leituras: Mateus 5.13-16 e Colossenses 1.15-20
Autor: Erní Walter Seibert
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 05/06/2011
1. Introdução
Dentro do ano da igreja, o natural seria falar, neste domingo, sobre os textos do 7º Domingo da Páscoa. Mas, como se celebra no dia 5 de junho o Dia da Consciência Ecológica, vamos tratar desse tema no estudo em questão.
Na tarefa da pregação, há certos temas que se impõem. A pregação é o diálogo entre a palavra de Deus, conforme registrada na Bíblia Sagrada, e a realidade. Normalmente, vai-se primeiro ao texto e então se procura a relação com a realidade. Essa é a proposta regular das séries de leituras conforme o ano litúrgico. No entanto, há situações (sepultamentos, casamentos e outras) em que a realidade se apresenta e, depois dela, busca-se um texto adequado para dar resposta às perguntas que a realidade faz. É o caso deste domingo.
O tema da ecologia poderia ser proposto pela agenda da igreja. No entanto, fundamentalmente não foi. As mudanças climáticas, as catástrofes naturais e os estudos da ecologia levaram as pessoas a refletir e falar mais sobre os cuidados com o planeta. A igreja já falava sobre a criação, especialmente vinculada ao primeiro artigo do Credo. Com o despertar da consciência ecológica, esse tema passou a ser mais visitado dentro dos círculos eclesiásticos. É o que sugerimos que seja feito neste domingo.
Os textos bíblicos sugeridos têm a ver com a história da criação (texto do Antigo Testamento), com uma palavra de Jesus no Sermão do Monte (evangelho) e com a centralidade de Cristo, tanto na obra da criação como na da redenção (epístola). O texto da epístola liga de forma magistral a questão da criação e redenção do universo. O texto do evangelho é tradicionalmente mais utilizado para enfatizar a responsabilidade evangelizadora dos cristãos e da igreja. Mas ele utiliza figuras que podem ser consideradas bastante ecológicas: sal e luz.
2. Exegese
Esse é um dos textos bíblicos mais ricos em significados de nomes e em imagens. Dentro do livro de Gênesis, ele traz uma nova narrativa da criação, em que a ordem dos fatos é um pouco diferente da ordem do primeiro capítulo de Gênesis. Também é empregado um nome diferente para referir-se a Deus. Embora esses detalhes sejam importantes para a discussão exegética do texto, eles não alteram alguns fatos que aparecem ao longo de todo o texto bíblico: “Deus fez o céu e a terra” (v. 4), “o Senhor soprou no nariz dele uma respiração de vida” (v. 7), “o Senhor Deus plantou um jardim na região do Éden” (v. 8), “o Senhor Deus pôs o homem no jardim do Éden para cuidar dele e nele fazer plantações” (v. 15).
Em resumo, o texto diz que Deus criou todas as coisas, que o ser humano foi criado no contexto da natureza – ele é parte da natureza – e ele deveria cuidar e cultivar a natureza. Salienta-se, por um lado, a ação de Deus. Por outro lado, é expresso o que se espera da ação humana.
Entre as palavras que aparecem no texto e merecem especial atenção escolhemos as seguintes para comentar:
1. “Senhor Deus” – o hebraico utiliza pela primeira vez o tetragrama YHWH, em geral traduzido por “Senhor” ou transliterado por “Jeová” ou “Javé”, ao lado de Deus (Elohim). Elohim é um nome genérico para Deus. Essa palavra também é usada no Antigo Testamento para referir-se a outros deuses. No entanto, a palavra “Senhor” refere-se somente ao Deus da aliança do povo de Israel. Ou seja, não foram deuses ou um Deus qualquer que criou o mundo. O criador do universo é o mesmo Deus que fez a aliança com seu povo e o mesmo Deus que enviou seu filho Jesus Cristo para salvá-lo.
2. “Corrente de água” (v. 6) – algumas traduções utilizam a palavra “neblina”. A expressão pode ser traduzida por “água que brota da terra” ou manancial. Salienta a importância da água na criação.
3. “Pó da terra” (adamah) e “ser humano” (Adam) (v. 7) – em hebraico as expressões “pó da terra” (adamah) e “ser humano” (Adam) são parecidas. No hebraico, na realidade, temos um jogo de palavras que na tradução se perde. Salienta a estreita vinculação entre o ser humano e a natureza. Isso está expresso em outros versículos como Gênesis 3.19 (“Terá de trabalhar no pesado e suar para fazer com que a terra produza algum alimento; isso até que você volte para a terra, pois dela você foi formado. Você foi feito de terra e vai virar terra outra vez.”). Se, de um lado, o texto, pelo jogo de palavras, vincula o ser humano com a terra, por outro lado, em nenhum momento, ele dá a entender que a vida humana depende sobretudo da terra. A terra é o contexto em que a vida humana se dá. No entanto, quem dá e preserva a vida é Deus.
No Salmo 104.29-30, isso é ressaltado, utilizando as imagens de Gênesis e mostrando a total dependência do ser humano de Deus: “Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra”. Pode-se ver, também nesse texto, a grande fragilidade da vida humana.
O v. 7 também mostra o extremo cuidado que Deus teve com a criação do ser humano. O ser humano é a única criatura cujo processo de criação é descrito com tantos detalhes. Deus envolveu-se na criação do ser humano de forma especial. O verbo utilizado para descrever isso é o mesmo que descreve a ação do oleiro ao confeccionar sua produção em barro.
1. “O Senhor Deus plantou um jardim na região do Éden” (v. 8) – A palavra jardim, na Septuaginta, é traduzida por “paraíso”. Paraíso, no Novo Testamento, é uma palavra empregada para designar o “céu” (Lc 23.43; 2Co 12.3). A palavra “Éden”, em hebraico, significa “delícia” ou “prazer”. A compreensão dos termos mostra que o lugar onde o ser humano foi colocado por Deus realmente era excepcionalmente bom. Pode-se dizer que Deus caprichou muito para colocar o ser humano num lugar especial. Tanto o ser humano foi criado de forma especial por Deus como o lugar onde ele foi colocado foi um lugar especial.
2. O lugar do Jardim do Éden é desconhecido. Embora, pela localização dos rios, o lugar descrito fi ca no Oriente Médio, sua localização exata, no entanto, não é conhecida.
3. As árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal são de difícil compreensão. Elas estavam ao alcance do ser humano. Logo depois da perícope escolhida para este domingo, no v. 17, aparece a restrição do uso do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Livre-arbítrio e perda dessa capacidade estavam, aparentemente, em jogo. Quanto disso se revela no relacionamento do ser humano com a criação após a queda em pecado é uma das questões a ser discutida.
3. Meditação
O texto bíblico, por assim dizer, coloca o cenário e os personagens de uma história. A perspectiva de história também está presente. O cenário é a criação, a boa obra da criação de Deus. Os personagens são o autor da criação e o ser humano. A história aqui está no seu começo. Ela começa a se desenvolver. Mas a história também terá meio e fim. Essa perspectiva de história com começo, meio e fim é fundamental para a cultura hebraica e permanece a mesma na fé cristã. O autor ou Senhor da história é Deus.
A preocupação ecológica com a natureza tem muitos aspectos, também numa perspectiva bíblica. Por um lado, está a destruição de um legado que Deus deu ao ser humano para cultivar. O ser humano é, muitas vezes, irresponsável no uso dos recursos que Deus lhe colocou à disposição (má mordomia). Poluição é uma evidência disso. Além disso, há o uso desregrado dos recursos naturais, visando apenas o lucro, sem levar em conta a dignidade humana e o amor ao próximo. No entanto, na preocupação ecológica aparecem certas perspectivas que demonstram o descompromisso do ser humano com Deus. Quando se quer preservar o mundo indefinidamente (como se isso fosse possível), pode parecer um empreendimento como o da Torre de Babel. Esse é o outro extremo a ser evitado.
Andar com equilíbrio nessa questão não é fácil. Mas o texto de Gênesis fornece alguns indicativos. Um indicativo dá-nos a percepção de história linear.
Houve um começo, há um meio e haverá um fim. A história não é cíclica, nem se repete. Nessa perspectiva bíblica de história, no entanto, não há mais a perfeição da criação. O pecado é uma realidade, e seus efeitos são perceptíveis até mesmo na natureza.
Outro indicativo é o plano que Deus tinha para a ação humana no cenário da criação. O ser humano deveria cuidar da natureza e fazer plantações. No aspecto do cuidado, a preservação da natureza fica bem evidente. Cuidar é preservar. Quem cuida não destrói. Mas há um segundo aspecto que implica uma ação criadora do ser humano na natureza. Trata-se do plantar. Há uma intervenção humana na natureza – plantar –, mas isso é feito com cuidado. A destruição do seu habitat não fazia parte do plano de Deus para a intervenção humana na natureza. A realidade do pecado fez com que o ser humano fizesse intervenções danosas na natureza. A própria natureza sofre por causa do pecado. Finalmente, o grande indicativo aponta para Deus. Deus é o Senhor da história. Ele planejou a criação, executou a criação e, em Cristo, planejou a redenção da criação. Deus, inclusive, pagou o preço dessa redenção em seu Filho Jesus Cristo.
Deixamos aqui duas sugestões de sequência de pensamento, que podem ser seguidas para apresentar a prédica sobre esse texto. A primeira seguiria uma linha mais histórica. Sob o tema “A história do jardim que Deus preparou para o ser humano viver”, poderiam ser mostradas, em primeiro lugar, a realidade da criação e a perfeição da criação. Logo a seguir, poderiam ser mostradas a queda em pecado e suas consequências, tanto no ser humano como na natureza. E, finalmente, a obra redentora de Cristo e o novo papel do ser humano redimido como sal e luz.
A outra sugestão seria colocar ênfase maior na ação humana prevista para o ser humano na natureza: a primeira seria a ação de preservar, e a segunda, a de cultivar.
4. Imagens para a prédica
Se a igreja dispuser de computador e data show, na hora da pregação é possível apresentar cenas, capturadas da internet, de locais paradisíacos do universo e cenas de desastres ambientais. Essas cenas podem muito bem ilustrar os dois aspectos que a Bíblia aponta e que são: a beleza da criação e o efeito nefasto do pecado sobre ela.
Dependendo do tamanho da congregação, poderá ser feito um pequeno exercício com jornais e revistas recentes, quando se fazem painéis com fotos e reportagens sobre as realidades da beleza da criação e da destruição da mesma.
O Brasil foi assolado, nos últimos anos, por muitas inundações, secas, vendavais, tornados e outros fenômenos da natureza. O que esses acontecimentos falam sobre a questão tratada no texto de Gênesis? Em muitas cidades, como São Paulo e outras, as várzeas dos rios foram ocupadas, o curso dos rios foi modificado e hoje essas cidades sofrem anualmente com enchentes. O rio São Francisco, no Nordeste brasileiro, está sendo transposto para que suas águas sejam levadas a uma região de secas. Essas ações podem ser consideradas como parte do trabalho criativo do ser humano na natureza ou elas podem ser, ao contrário, falta de cuidado com a natureza? Que pensa a igreja local sobre isso?
Que oportunidades a igreja tem de ser sal e luz e apontar para Cristo no meio da situação atual em que tanto se fala de mudanças climáticas e catástrofes naturais?
5. Subsídios litúrgicos
A obra da criação é mencionada na liturgia de todos os cultos regulares da igreja quando se utiliza qualquer um dos credos históricos de fé da igreja cristã. No primeiro artigo dos Credos Apostólico e Niceno, confessa-se que Deus Pai é o Criador dos céus e da terra.
No seu Catecismo Menor, na explicação do primeiro artigo, Martim Lutero faz uma bonita descrição da obra e de como ela se relaciona com a fé cristã. Lutero diz: “Creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas; e me deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os membros, razão e todos os sentidos, e ainda os conserva; além disso, me dá vestes, calçados, comida e bebida, casa e lar, esposa e filhos, campos, gado e todos os bens. Supre-me abundante e diariamente de todo o necessário para o corpo e a vida; protege-me contra todos os perigos e me guarda de todo mal. E tudo isso faz unicamente por sua paterna e divina bondade e misericórdia, sem nenhum mérito ou dignidade da minha parte. Por tudo isso devo dar-lhe graças e louvor, servi-lo e obedecer-lhe. Isso é certamente verdade”.
Essas palavras de Lutero certamente indicam vários aspectos da atitude do cristão diante da obra da criação de Deus.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).