A vida e os caminhos de morte
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Gênesis 45.3-11, 15
Leituras: Lucas 6.27-38 e 1 Coríntios 15.35-38, 42-50
Autoria: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 7º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 24 de fevereiro de 2019
1. Introdução
Duas experiências perpassam as leituras bíblicas deste domingo: “Deus escreve reto por linhas tortas” e o apelo para que nos tornemos semelhantes ao próprio Deus.
A primeira experiência poderia ser chamada com outro nome. Ela expressa a convicção bíblica, judaica e cristã, de que “há males que vêm para o bem” e de que Deus pode transformar pecados humanos em fonte de vida, podendo inclusive transfigurar nossa condição humana pela ressurreição. Que nome daríamos a essa experiência?
Receba o nome que receber, essa experiência está no centro da leitura do Gênesis, que tomamos como referência para a prédica de hoje: o pecado ou o crime dos irmãos de José de vendê-lo a mercadores que o levaram para o Egito, Deus o transforma em fonte de salvação e de vida para o pai deles e para suas famílias. Por outro lado, na Primeira Carta aos Coríntios Paulo reflete sobre a experiência da ressurreição pela qual Deus transforma nossa pobre condição humana, transfigurando-a a maneira da semente que morre como tal, mas se transforma em planta.
A experiência que está no centro do culto de hoje recebe um complemento importante com outra. No Evangelho de Lucas, Jesus propõe o desafio de nos tornarmos generosos, misericordiosos ou perfeitos como é nosso Pai celestial. Esse desafio já se encontra no relato de Gênesis: José supera os sentimentos de vingança e vê no mal que os irmãos lhe fizeram uma misteriosa ação de Deus para tornar-se, posteriormente, salvador daqueles que, de certa forma, o mataram.
2. Exegese
O texto de Gênesis 45.3-11,15 é uma pérola encontrada numa mina de pedras preciosas. O livro de Gênesis, com seus 50 capítulos, apresenta riquezas amadurecidas ao longo de séculos, integrando contribuições de diversas tendências teológicas e sedimentando experiências vividas ao longo da caminhada. Não pretende ser um livro científico ou de história contada objetivamente, mas uma espécie de coletânea organizada de relatos que sustentariam a fé e a vida das pessoas, das famílias e do povo inteiro.
Na coletânea de relatos, encontram-se inicialmente os capítulos 1 a 11, que fixam seu olhar para aquém do início do povo da Bíblia. Ao narrarem as origens do universo e da humanidade, projetam para trás a riqueza da luz que a fé no Deus da libertação produzia nos seus olhos, na sua inteligência e no seu coração. A seguir, o livro evoca os personagens que marcaram as origens do povo que se considera eleito: Abraão (cap. 12 a 25), depois Isaque, Esaú e Jacó (26 a 36) e José (37 a 50). É nesse último bloco que se encontra o texto da meditação de hoje (45.3-11,15).
José era um dos doze filhos de Jacó (também chamado Israel, o que é um dos indícios de que o relato integra tradições diferentes). Ele e Benjamim eram filhos de Jacó com Raquel, os demais tinham por mães outras mulheres de Jacó. José contava com uma especial predileção de seu pai, o que gerou a rejeição por parte de seus irmãos. Enquanto os outros filhos de Jacó pastoreavam em terras distantes, o pai lhes enviou José a fim de obter notícias. Para se livrar do incômodo irmão, jogaram-no numa cisterna e só não o mataram porque Rubem os convenceu a terem bom senso. Porém, sem o conhecimento e sob posterior protesto de Rubem, venderam José a uma caravana de comerciantes midianitas, que o levaram ao Egito.
No Egito, José conquistou logo a confiança da corte do Faraó e passou a ocupar alto cargo. Teve de passar, no entanto, um tempo na prisão, por falsas acusações. Foi libertado por ter interpretado corretamente os sonhos do Faraó, por meio dos quais Deus revelava a chegada de dois períodos de sete anos, um de grande abundância (representado por vacas gordas) e outro de extrema carestia (vacas magras). Com essa revelação, o Egito poderia preparar-se durante os primeiros sete anos para enfrentar os posteriores, que seriam de extremas dificuldades. E José foi constituído administrador da política adequada para essa situação.
O período das sete “vacas magras” atingiu também a terra onde vivia Jacó. Tendo sabido que no Egito havia provisões, o pai enviou seus filhos para comprarem mantimentos. No encontro com os irmãos, José os reconheceu, mas eles não perceberam que estavam diante daquele que tinham vendido. José inicialmente foi duro e exigente com os irmãos. Exigiu, inclusive, que buscassem Benjamim, que havia ficado com o pai. No retorno, com a presença de Benjamim, a “novela” cresce em dramaticidade. José faz de conta que vai reter e prender Benjamim, o que provoca um longo e desesperado apelo de Judá, que culmina com a oferta de si mesmo como escravo no lugar de Benjamim.
É nesse contexto de dolorosas emoções que José não se conteve mais e se revelou a seus irmãos. Nosso texto apresenta justamente o momento dessa revelação dramática. Para manifestar-se, José pediu que todos os seus servos egípcios se retirassem e, em seguida, em meio a copioso pranto que podia ser ouvido de longe, deu-se a conhecer (45.1-2).
Os v. 3-4 apresentam as palavras iniciais dessa revelação: Eu sou José. Meu pai ainda vive? Chegai perto de mim. Eu sou José, vosso irmão, que vós vendestes no Egito. As palavras de José causam total perplexidade nos irmãos. Até aqui, eles poderiam imaginar uma tremenda vingança do irmão. Por isso “tremiam diante dele” e não conseguiam responder nada.
A surpresa começa com as palavras que José pronunciou em seguida. Ele pediu a seus irmãos que não se afligissem e não se atormentassem por aquilo que haviam feito com ele no passado. E disse o motivo dessa postura estranha: por contraditório que pudesse parecer, foi Deus quem o havia enviado ao Egito antes deles para preparar-lhes o sustento na carestia e salvar-lhes a vida: […] não fostes vós que me enviastes aqui, mas Deus. Mesmo lembrando aos irmãos que foram eles que o venderam no Egito, não lhes levou em conta o seu pecado ou crime, porque viu a mão de Deus agindo misteriosamente nesse fato do passado. Por linhas tortas Deus havia escrito reto. Deus havia transformado o pecado em fonte de graça.
Essa “teologia de José” trazia consigo também a superação da violência ou da vingança, ou seja, gerou nele o perdão aos irmãos pelo crime cometido. Ele até ajudou os irmãos a superarem o sentimento de culpa, pedindo que não se afligissem nem se atormentassem pelo fato de o terem vendido. O que terá provocado em José esse perdão e essa exortação para superarem o sentimento de culpa? O texto não tematiza isso, mas dá a entender que foi justamente a percepção de que Deus havia transformado o pecado em graça, a morte em vida e o crime em caminho de sobrevivência.
Passo seguinte foi encarregar os irmãos de buscarem apressadamente o pai com toda a sua família e seus rebanhos. O filho, agora poderoso administrador no Egito, garantiria um espaço de vida para todos eles, não lhes deixando faltar nada.
A perícope que nos ocupa termina com a comovente cena de José beijando e cobrindo de lágrimas todos os irmãos. E os apresenta, agora, conversando com ele. A reconciliação havia prevalecido, no contexto dos misteriosos desígnios de Deus.
3. Meditação
O bom senso e a sabedoria que nos vêm do Espírito de Deus nos recomendam prudência no falar, principalmente quando se trata de Deus, de sua vontade ou de seus projetos. Não convém atribuir a Deus tudo o que acontece em nossa vida pessoal e na sociedade. Muitas vezes, é mais sábio calar do que falar. Outras vezes, é preciso abrir a boca e denunciar maquinações e práticas que prejudicam e até destroem a vida de irmãos e irmãs. Crimes, irresponsabilidades e violências não podem ser contabilizados como vontade de Deus.
No entanto, a mesma sabedoria e o mesmo bom senso que procedem de nossa fé cristã não põem limites à ação divina em nossa vida e na história da humanidade. Embora habitualmente Deus aja por meio da coerência humana com as sábias orientações de sua palavra, ele pode transformar males em fontes de vida. Ele pode tirar vida nova da morte. Ele pode “escrever reto por linhas tortas”.
É o que vemos no episódio bíblico de José, vítima de um horrendo crime de seus irmãos. Pela lógica da teologia da retribuição, os irmãos só teriam castigos divinos a esperar. Porém as más intenções e os atos violentos se converteram nas mãos de Deus em caminho de salvação para eles mesmos e para toda a parentela.
Esse não é único caso do gênero que a Bíblia apresenta. O exílio na Babilônia é talvez o grande evento da história do povo de Israel no qual Deus transforma uma enorme tragédia em momento de grande crescimento. Com efeito, o exílio foi um período de intensa reflexão e produção teológica, que originou muitos textos novos e proporcionou amplas releituras daqueles que já faziam parte do patrimônio cultural do povo.
A cruz de Jesus é o exemplo mais contundente: o crime da prisão injusta, da tortura e da morte violenta numa cruz escandaliza qualquer pessoa de bom senso. Como poderia haver positividade nisso? Como poderia Deus fazer desse pecado uma fonte de graça, inclusive para quem praticou o crime?
Paulo é outro personagem que entra nessa lista de surpresas: seu zelo, que chega ao fanatismo, o faz perseguir, prender e consentir com a morte de seguidores de Jesus. Como poderia Deus se valer de uma pessoa desse quilate para transformá-lo em missionário ardoroso de Jesus e do seu evangelho?
Os exemplos poderiam ser multiplicados. Mais do que fazer isso, poderíamos relacionar agora esse tema com o da ressurreição e da misericórdia ou generosidade, propostos pelas outras leituras deste domingo.
A fé na nossa ressurreição também vai na contramão da lógica humana, pois a morte parece ser o mal maior, diante do qual não há o que fazer. Já não se trata do mal do pecado ou de algum crime, mas da barreira da limitação humana: somos mortais. Porém nossa fé afirma convictamente que Deus supera essa barreira, ele transforma esse mal em bem maior. Pela ressurreição, de sementes corruptíveis nos transformamos em seres incorruptíveis.
A generosidade e a misericórdia para com os que nos fazem mal – para não falar de inimigos – é outro tema da sabedoria, que é fruto do Espírito de Deus em nós. Sua prática também supera a cultura da retribuição baseada no mérito e na culpa. Para amar os inimigos e fazer o bem aos que nos prejudicam, é preciso estar em profunda sintonia com Deus, que é rico em misericórdia e “faz chover” sobre justos e injustos. José, vendido pelos irmãos, parece ter assimilado isso, pois não somente perdoou, como também pôs a serviço sua condição que Deus lhe proporcionou “escrevendo reto por linhas tortas”.
A reflexão nos conduz aos nossos tempos. Um exemplo de um “José” talvez tenha sido Nelson Mandela, que passou anos na prisão e depois se tornou um extraordinário estadista, promoveu políticas não de vinganças contra seus perseguidores, mas de integração nacional e de construção de uma pátria solidária.
Concluindo essa meditação, voltamos ao seu início: não podemos nos alegrar com injustiças, sob a alegação de que Deus vai transformar isso em fonte de vida. Ele pode até fazer isso, mas deixemos isso para ele… Deveremos continuar sendo profetas que anunciam e denunciam, missionários e missionárias que propõem práticas de justiça, solidariedade e fraternidade, e questionam a exploração e a exclusão. Mas precisamos também manter as portas e janelas abertas para que Deus transforme situações de pecado e de morte em fontes de vida. Isso permite que não desesperemos em meio aos graves problemas que nos envolvem na vida pessoal, comunitária e social.
4. Imagens para a prédica
Expressões como “Deus escreve reto por linhas tortas” e “há males que vêm para o bem” podem ser proveitosas na prédica. Mas precisam ser contextualizadas, para não induzirem a simplificações injustificáveis. O próprio relato bíblico de José no Egito é uma imagem dessa teologia.
Sementes, para se tornarem plantas, precisam passar pelo mal da morte. Essa imagem pode auxiliar na reflexão sobre Deus como misterioso condutor de nossa história, como também sobre nossa ressurreição.
Deus é providente, ele encaminha as coisas para o bem de seus filhos e suas filhas. Porém não podemos banalizar essa convicção com nossa irresponsabilidade.
Outra afirmação bíblica que pode servir de imagem é: “Para Deus nada é impossível”. Tentar a Deus, exigindo dele milagres ou provas, é certamente condenável. Mas desacreditar em sua força transformadora também não é coerente com nossa fé cristã. De males praticados por nós Deus pode tirar bens. Ele pode transformar o pecado em fonte de graça. Da morte ele pode tirar vida.
Quem é ou pode ser igual a Deus? Essa sábia interrogação também previne contra falsas ambições e contra prepotências humanas. No entanto, na “novela” de José no Egito, José revela ter assimilado o modo de ser de Deus. Manifestou ter aprendido aquilo que Jesus propõe no evangelho previsto para este domingo: Sede misericordiosos [ou generosos, perfeitos] como vosso Pai. Assimilar o modo de ser de Deus, eis o chamamento que nos é feito em nosso batismo!
5. Subsídios litúrgicos
No culto, pode-se fazer pedidos de perdão, tais como:
a) Nós confessamos, Senhor, nossas traições a nossos irmãos e nossas irmãs, jogando-os ou permitindo que sejam jogados na desgraça. Perdão, Senhor!
b) Nós confessamos, Senhor, nossa falta de confiança na tua amorosa providência, nos momentos de dificuldades e crises. Perdão, Senhor!
c) Nós confessamos, Senhor, nossa dificuldade em perdoar aqueles que nos prejudicam ou nos fazem o mal. Perdão, Senhor!
Pode ser aproveitada, também, a preciosa oração de Francisco de Assis, que pede para sermos transformados em instrumentos da paz e manifesta o desejo profundo de agirmos no espírito da misericórdia de Deus e de sua surpreendente providência.
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvida, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais: consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.
Um abraço fraterno entre os participantes do culto, em momento apropriado, pode ser motivado para evocar o abraço e o beijo de José a seus irmãos, na leitura bíblica de hoje.
Bibliografia
BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994.
BONORA, Antônio. A fraternidade que salva: Gênesis 37-50. São Paulo: Paulinas, 1987.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).