Chega de sacrifícios!
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Hebreus 10.11-25
Leituras: Salmo 16 e Marcos 13.1-8
Autor: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 25º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 15/11/2015
1. Introdução
Agradar a Deus para receber favores dele. Essa é a grande tentação humana e a grande tentação presente no discurso religioso de nossos dias. Práticas de abstenção de alimentos, de abstenção temporária de opções de lazer, estabelecimento de propósitos e intenções marcam a tentativa de receber de Deus as bênçãos desejadas. São práticas com características de sacrifício, que tornam mais atual o desafio apontado pelo livro de Hebreus. Em uma realidade em que práticas com características sacrificiais apresentam-se tão fortemente, somos desafiados a buscar caminhos que ajudem a superar o desejo sacrificial do ser humano.
O escrito de Hebreus é texto fundante para essa discussão. Esse escrito surge no mundo romano, marcado pela presença de diversas religiões que per- meavam o vasto território dominado. Práticas sacrificiais e uma religiosidade determinada pela correta observância de ritos eram constantes.
Diante disso, a necessidade, ou não, do sacrifício era tema fundamental para o posicionamento religioso. Esse desafio foi colocado também para a fé cristã. Esse questionamento era colocado nos diversos espaços permeados pelos cristianismos originários. O cristianismo judaico perguntava pela necessidade da continuidade do sacrifício (agravado pela destruição do Templo de Jerusalém). O cristianismo gentílico perguntava pela ruptura com os diversos cultos e os sacrifícios que caracterizavam os ritos dessas religiões. Em meio a esses questionamentos, a teologia paulina ganhou corpo, em especial pela teologia da graça, que colocava os esforços humanos como insuficientes para merecer a salvação de Deus. Por isso a insuficiência do sacrifício para provocar o olhar favorável das divindades aos desafios do cotidiano é pedra de toque nessa teologia.
O problema é que o imaginário sacrificialista estava presente no cotidiano dos habitantes do império. É nesse ponto que o ensino de Hebreus se soma ao ensinamento paulino. Diferentemente de Paulo, que apontou a insuficiência do sacrifício, Hebreus aponta a morte de Cristo como um sacrifício perpetuamente suficiente. Por caminhos diferentes, ambos os ensinamentos chegam ao mesmo resultado: o fim da necessidade do sacrifício. Foi por isso que, desde as primeiras coleções, compilações de cartas paulinas, Hebreus foi agregado a elas. A graça de Deus e a não mais necessidade de sacrifício somam-se às coleções e à memória dos seguidores do pensamento paulino. É nesse contexto que nossa perícope se encontra. Ensinos sobre a superação do Templo, do sacrifício e a exaltação do papel de Cristo nesse processo. O escrito de Hebreus é um texto surpreendente.
2. Exegese
2.1 – Pressupostos
Para abordar a perícope, precisamos assumir alguns pressupostos.
1 – Sobre o gênero literário: assumimos que Hebreus é um tratado. Isso significa que não é uma carta, mas uma orientação teológica para nortear a vida de uma comunidade. Seus escritos apresentam, portanto, uma forma de discussão em torno de temas com o objetivo de apontar caminhos para a comunidade de fé.
2 – Sobre a realidade da comunidade: uma das discussões sobre a comunidade cristã para a qual Hebreus é destinada é se ela seria judaico-cristã ou gentílica. Outra discussão é se ela sofria perseguição ou passava situações de conflito. Entendemos que a comunidade é uma comunidade típica do cristianismo primitivo extrapalestinense, marcada pelo encontro entre as diversas etnias e as diversas culturas da época. Não defendemos que havia perseguição, mas que havia conflitos que provocavam o arrefecimento da fé e, inclusive, o abandono das reuniões comunitárias (2.1-4;5.11-6.12;10.23-27,32-39; 12.1-29). Em face desse arrefecimento, o tratado busca motivar e desafiar os participantes da comunidade
a recuperar a confiança e a motivação na vivência da vida de fé.
3 – Sobre o lugar da perícope na estrutura de Hebreus: assumimos que a nossa perícope é parte da conclusão da discussão central de Hebreus: a superioridade de Cristo em relação ao Templo, ao sacerdócio e ao sacrifício. Essa discussão tem início no capítulo 7.1 e encerra-se em 10.39. Nesse aspecto, ela aponta desafios à fé da comunidade no chamado a Cristo, rompendo com a lógica sacrificial.
2.2 – O texto
Nossa perícope pode ser entendida da seguinte forma:
* Comparação entre a ação dos sacerdotes e a de Cristo (v. 11-14);
* Embasamento dessa comparação através da citação de Jeremias (v. 15-18);
* Consequências disso para a prática da comunidade (v. 19-24).
Essa estrutura mostra-nos a lógica do tratado: uma conclusão, seu embasamento bíblico (nos profetas) e a consequência disso para o cotidiano da comunidade.
* Comparação entre a ação dos sacerdotes e a de Cristo (v. 11-14)
Na comparação entre a ação de Cristo e a ação dos sacerdotes, a conclusão, após longo debate dos capítulos 7 a 10, é que o exercício do sacerdócio do Templo é uma repetição sem fim, que “em tempo algum podem remover pecados”. Ou seja, é uma repetição ineficaz.
Por outro lado, o sacrifício de Jesus é único “para todos os tempos”, “perpetuamente”. Aqui há um jogo com uma formulação igual de frases entre o sacerdote que oferece de forma repetitiva sacrifícios que “em tempo algum podem remover pecados” com Cristo que oferece “único sacrifício para todos os tempos”. A partir desse sacrifício para todos os tempos, Jesus assenta-se à destra de Deus, aguardando o julgamento final, uma vez que com um único oferecimento tornou “os santificados” da comunidade perfeitos “para todos os tempos”.
A estrutura é interessante:
* Sacrifício único de Cristo “para todos os tempos”;
* Destra de Deus aguardando o julgamento final;
* Oferta única de Cristo “para todos os tempos”.
Nesse ponto percebemos duas ênfases. A primeira, na eficácia do sacrifício de Cristo. A segunda, é que esse sacrifício habilita Jesus a assentar à destra de Deus para aguardar o julgamento quando todo inimigo estará “debaixo dos pés dele”. Há uma vinculação entre o sacrifício único e o julgamento final. Isso trará consequências para a vida da comunidade. Isso será tema da terceira parte da estrutura dessa perícope.
* Embasamento dessa comparação através da citação de Jeremias (v. 15-18)
Na segunda parte de nossa perícope, encontramos uma citação de Jeremias 31.33-34.
Hebreus 10.15-18
E a nós, dá testemunho o Espírito Santo, pois após dizer:
Esta é a aliança a qual firmarei com eles, depois daqueles dias, diz o Senhor,
Dando minhas Leis sobre o coração deles
E na mente deles gravarei as mesmas
E dos pecados e das iniquidades deles
De modo algum me lembrarei mais
Pois, onde há remissão destes Não há mais oferta pelo pecado.
Jeremias 31.33-34
Para esta aliança que eu farei com a casa de Israel.
Depois daqueles dias, diz o Senhor,
Eu darei minha Lei em suas entranhas
E em seu coração escreverei
E serei para eles Deus E eles serão meu povo
E não ensinará jamais cada um ao seu vizinho, nem cada um ao seu irmão, dizendo:
Conhece ao Senhor, Eis!
Todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles,
diz o Senhor. Eis!
Percebemos algumas ênfases quando comparamos a citação com o texto completo de Jeremias.
A primeira ênfase é que a citação só é usada na parte do gravar a Lei e de não se lembrar dos pecados e das iniquidades. A perspectiva em torno “daqueles dias” que Jeremias enfatiza, quando todos conhecerão a Deus, desaparece. A não lembrança dos pecados e das iniquidades é o centro da atenção.
A segunda é que essa citação é atribuída ao Espírito Santo (v. 15). A autoridade do Espírito é colocada pela comunidade nos textos que compõem o cânone veterotestamentário desse tempo (a Lei e os profetas e, talvez, os escritos). A fala não é mais do profeta (como encontramos, por exemplo, em Mc 1.2-3). É a voz do Espírito que ensina a comunidade.
Por fim, percebemos o acréscimo da conclusão que essa citação reforça: quando há remissão de pecados, não há mais a necessidade de ofertas.
O embasamento bíblico reforça a argumentação inicial de que o sacrifício de Jesus foi suficiente para todo o tempo. Não há necessidade de repetições, como acontecia com o sacrifício dos sacerdotes. Isso é comprovado através da tradição bíblica na voz do Espírito Santo.
* Consequências disso para a prática da comunidade (v. 19-24)
Essa argumentação, agora embasada na autoridade das Escrituras (que já são palavras do Espírito Santo), tem consequência para a vida das comunidades.
Ela aparece em uma estrutura interessante:
* O acesso aos santos dos santos através de Jesus (v. 19-21);
* O convite à aproximação e o catálogo de virtudes esperadas (v. 22-24);
* Desafios à continuidade das reuniões comunitárias (v. 25).
Na primeira parte dessa apresentação do efeito que o sacrifício único de Jesus tem para a comunidade, há uma releitura do acesso ao santo dos santos no Templo. Antes era restrito ao sumo sacerdote, e agora todos têm a possibilidade de adentrar. Isso pelo sangue de Jesus e pela sua carne (que é comparada com o véu). Ele, o sumo sacerdote, ao ter sua carne/véu rasgada e seu sangue derramado, convida a comunidade a entrar nesse espaço.
Na segunda parte, encontramos um catálogo de atributos esperados daqueles que são convidados a entrar nos santos dos santos. O desafio é:
* aproximar-se com: coração genuíno; convicção de fé; coração purificado da consciência do mal; corpo lavado com água pura;
* conservar/reter: convicção da esperança firme (pois Fiel é o que promete)
* observar: uns aos outros para encorajamento ao amor e às boas obras.
Nesse catálogo, as experiências de fé daqueles que ingressam nos santos dos santos pedem que se conserve a esperança e culmine em uma prática comunitária de encorajamento ao amor e à prática do bem. A experiência pessoal deságua na vida comunitária.
Finalmente, após essa discussão, surge a exortação à participação na comunidade. Não congregar tornava-se uma prática cotidiana. O argumento do “dia que se aproxima” é fundamental. Jesus, que pelo sacrifício único senta-se à destra de Deus aguardando o julgamento, desafia todos a adentrar nesse espaço de fé, trazendo esses atributos encontrados no catálogo visto acima.
3. Meditação
O ser humano tem, em suas expressões religiosas, a tentação de querer controlar a relação com o transcendente. O sacrifício, bem como festas e ritos constituem-se nas mais diversas religiões em formas de agradar as divindades. Em comum com um grande conjunto de religiões antigas e modernas está essa tentativa de garantir, mediante esforço humano, os favores da divindade. Essa garantia é a grande tentação.
Os ritos sacrificiais, por mais que forjem uma imagem e uma relação extremamente pesada com o transcendente, em que a divindade não tem possibilidade de atos de gratuidade, apenas responde aos agrados propiciados pelos seguidores. Esses ritos oferecem também uma segurança ao seguidor, baseada nas realizações dele. O oferecimento correto do sacrifício e o esforço para merecer os favores servem para dar a segurança de se ter feito todo o necessário, transferindo à divindade a responsabilidade de cumprir o esperado, oferecer a contrapartida.
No cristianismo moderno, isso não é diferente. Encontramos diversas expressões, gestos e práticas utilizadas com a intenção de merecer o favor de Deus. Práticas sacrificiais do corpo, dos bens e de abstenção de coisas consideradas pelo proponente como prazerosas (um alimento, um doce, televisão, futebol, teatro), com o objetivo de receber alguma ação direta de Deus (um emprego, uma cura, um relacionamento etc.), abundam no discurso religioso moderno. É para esse mundo que Hebreus se torna um desafio.
O texto de Hebreus utiliza uma linguagem sacrificial para encerrar o sacrifício. As práticas religiosas sacrificiais têm na repetição a sua garantia. É na continuidade incansável dessas práticas que o fiel garante os favores da divindade. Quando Hebreus anuncia que o sacrifício de Jesus é único e para todo o tempo, encerra-se o ciclo das repetições. Não se pode negociar com Deus para alcançar favores! Agora temos que viver na perspectiva da graça. Porém, a partir do caminho criado por Jesus, os seus seguidores devem adentrar em um novo espaço sagrado – um novo “santo dos santos”. Esse novo espaço é o espaço em que a vida é transformada, o coração, a fé e o corpo são purificados. Onde a esperança é firme. Onde o resultado disso é um profundo compromisso com o outro, estimulando a fé e a prática.
A proposta de Hebreus rompe com o sacrificialismo egoísta, que busca agradar a Deus para obter favores pessoais, e apresenta o compromisso comunitário como aquilo que Deus espera de seus seguidores. Essa proposta alinha-se com os outros textos de nosso calendário litúrgico. O Salmo 16 apresenta a confiança do salmista em Deus, que é o protetor, e por isso ele se recusa a oferecer libações de sangue e a cultuar outros deuses. Mais do que o problema do politeísmo, a lógica é que a prática sacrificial é libação feita a um deus que não é o Deus da Bíblia. Em Marcos 13, o desafio é não confiar em edificações e na obra das mãos humanas. Tudo o que fazemos (inclusive os sacrifícios) é passageiro, sem eficácia. Por isso a necessidade de repetição sem fim e sem resultado.
4. Imagens para a prédica
Para ilustrar essa tendência a atos de privação a fim de alcançar favores divinos, sugerimos pesquisar notícias de igrejas e grupos religiosos, bem como letras de canções amplamente difundidas propondo essas atitudes. Não apresentamos uma lista aqui, pois há uma constante renovação dessas ações e dessas canções nas diversas expressões religiosas de nosso país. É importante ilustrar essas práticas com exemplos tirados de espaços próximos à vida da comunidade para marcar que essa tendência está presente no cotidiano de todas as comunidades.
5. Subsídios litúrgicos
O presente credo, do Prof. Dr. Luiz Carlos Ramos, pode ser inserido na liturgia como um desafio ao compromisso com Deus.
Credo da solidariedade:
Creio em Deus, Criador de tudo o que é bom, que me ama com amor maior que o de pai
e cuida de mim com ternura maior que a de mãe.
Creio em Jesus Cristo, amigo mais chegado que irmão, que pagou por mim a grande dívida
e convidou-me para ser-lhe companheiro no cálice e no pão, na cruz e na ressurreição.
Creio no Espírito Santo, terno consolador, que me enxuga as lágrimas dos olhos
e me inspira nos lábios o sorriso.
Creio na comunidade de fé, mutirão de fiéis, operários de um novo tempo,
gestantes do novo céu e da nova terra.
Creio no reino pleno da vida abundante, na ressurreição dos corpos oprimidos, na eternidade do amor
e na solidariedade divino-humana. Amém!
(http://www.luizcarlosramos.net/credo-da-solidariedade/)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).