Prédica: Hebreus 5.1-6 (7-10)
Leituras: Jeremias 31.7-9 e Marcos 10.46-52
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: 23º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/10/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Apresentação
No 23° Domingo após Pentecostes, somos agraciados com um texto de IH> 5.1-10. Esse vem assessorado por Jr 31.7-9, no qual os exilados e deserdados são conclamados a ouvir e passar a viver na expectativa do retorno imediato à sua terra natal, numa ação gloriosa de Deus. Ser deserdado não é motivo de desolação, mas de expectativa e esperança no Deus de seus pais. Estar deserdado e exilado é motivo de ação conforme o profeta. Cantai…; exultai…; proclamai…. Mesmo no exílio, em meio às privações, Deus ouve os gritos de seu povo e os atende como um pai. Jeremias não se conforma com a passividade do povo e com a descrença desse povo na demora da ação de Deus. O mensageiro de Deus quer ação. Aí o retorno à pátria é questão de tempo. Nessa mesma linha da fé no amor de Deus para com os deserdados e sua ação na história, nos é ofertado um segundo assessor, o relato do cego Bartimeu em Mc 10.46-52. Em Mc 10, ocorre a última ação pública de Jesus em prol de um indivíduo deserdado. Esse relato nos conta a participação de muitos na vida do mendigo excluído (v. 48). A grande maioria agiu conforme o ensino da ideologia do templo e do ritual levita. Contra sua vida. Na sequência, mostra a ação e reação de Jesus diante dos gritos de socorro. Bartimeu e Jesus quebram o esquema oficial do ritual da caminhada. Reagindo à cura, Bartimeu segue-o.
Esses textos nos mostram um Deus em ação, fora das ordens constituídas e concebidas como normais. Apenas dentro do prometido e daquilo que a religião oficial camuflava. Um Deus ocupado mais com a vida do que com os ritos e instituições. Essa ação quebra ordens e movimentos considerados intocáveis e últimos pelos que detêm o poder aparente, na criação de Deus. Surge uma nova perspectiva de vida. Quando essa nova perspectiva de vida demora, não é motivo de descrédito. Mas de ação e aprofundamento da fé. Nessa sintonia rumamos para o texto de Hb 5.1-10.
2. O texto de Hb 5.1-10
Em Jeremias, há uma promessa em virtude da dureza do coração. Em Marcos, uma ação contra a ordem normal dos fatos. Em Hebreus, uma expectativa que-convida para a continuidade do crer em Deus, pelo menos até a parusia.
A dinâmica da parusia estava sendo contestada e abandonada por uma parle da comunidade cristã primitiva. O longo caminho e a pressão contrária à fé cristã geraram enfado e fuga para outras crenças. Não se via mais na figura de Cristo o autor dos prazeres e da salvação eterna neste mundo. Presenciando essa situação, o autor de Hebreus afirma que este é o último grito em termos de oferta e fato salvífico. O passado foi promessa. O presente em Cristo é a realidade última. Para tanto elabora uma descrição acerca da mediação e do mediador, entre Deus e os homens, chamado Sumo Sacerdote. Para justificar o abandono, a comunidade colo-cou sob suspeita a mediação de Cristo. Ela tenta voltar a uma antiga prática ritual. Já o autor de Hebreus vê em Cristo a existência de traços sacerdotais diferenciados e únicos. Esses traços desqualificam o modelo sacerdotal da mediação, que estava completamente desvirtuado e imperfeito. Alega e mostra a imperfeição do sacrifício e do sacerdócio levítico comparado ao de Cristo. O sacerdote levita chega ao cargo via rito. Esse rito não é transmissível aos crentes. A humanidade permanecia distante de Deus. A fraqueza do sacerdote e outros detalhes opressores permaneciam escondidos.
Para introduzir a mediação sacerdotal de Cristo, o autor faz uso de uma leitura escatológica do AT. Vê Deus falando diretamente das Escrituras, sem o ritual aarônico. Esse havia extrapolado suas funções, servindo à opressão. O texto mostra que o sacerdócio de Cristo é diferente na origem e na prática (Gn 14). Jesus é sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. Ele não tem início nem fim, igual ao Filho de Deus. O autor recorre ao Sl 110 para caracterizar o chamado de Cristo, em comparação ao chamado de Aarão. Afirma a ausência da genealogia sacerdotal em Cristo. Não é sacerdote por herança. Mas por serviço ao próximo. De outro lado, constata a perpetuidade de seu ministério sacerdotal. Assim, desloca o sacerdócio levítico, colocando-o abaixo do de Melquisedeque, conforme Gn 14. Com essa sua leitura do AT, mexe no ensino, na crença e na prática dos cargos e instituições religiosas de então. Instituições e poderes que mantêm a vida distante de Deus são falíveis, opressores e ineficazes para a salvação. Em Cristo acontece a unidade de culto e vida. Essa é a nova prática introduzida pelo sacerdócio de Cristo, que em seu sacrifício alterou também o resultado obtido junto a Deus. Agora, o perdão dos pecados é de uma eficácia perfeita, e a santificação dos crentes é algo vivenciável. Diferentemente do ritual levita, Cristo, mediante sua submissão e obediência, transforma nossa situação de miséria em salvação. Esse Sumo Sacerdote, que é Cristo, partilha de nossos fracassos, não nos exclui. Deus acolhe sua prece, sua ação obediente no sofrimento em favor da humanidade. Cristo chega ao sacerdócio por um acontecimento prometido e transmissível aos fiéis. Um acontecimento dinâmico e unificador, que quebrou o ritual. Agora todos(as) estão aptos(as) a chegar até Deus. Essa é a essência da unidade de culto e vida que dinamita toda a antiga mediação sacerdotal e seu sagrado ritual. Hebreus atesta que Cristo quebrou o ritual afastado da vida. O ritual levita alimentava os poderes e os detentores da opressão. Agora é servir a Deus em misericórdia, acolhendo os outros em reconciliação. Pois já temos o princípio da salvação. Conforme Albert Vanhoye, podemos esquematizar da seguinte maneira a antiga mediação sacerdotal, que, em seguida, é comparada à de Cristo, onde a parte determinante não é a cerimónia, o rito, mas sim o laço com os outros seres humanos e o seu contato direto com Deus.
[Veja anexo 01 ]
Elemento central. O sacerdote é admitido na morada de Deus; acreditado em relação a Deus; misericordioso para com os homens. Devido à imperfeição dos sacerdotes e ao seu constante estado de impureza, essa etapa perdeu seu valor, ficando apenas com o caráter místico c transcendental excludente, transformando a mediação, o acesso a Deus, em podei de controle e condenação da humanidade deserdada.
Elementos descendentes. O sacerdote transmite ao povo os dons de Deus (perdão — instruções — bênção — milagres — curas — sinais — leitura da sorte — controle sanitário — leis e poder). Em cada momento da vida, o ritual é repetido e a perfeição não acontece. A fé no Deus libertador é substituída por interesses e leis que favorecem a dominação.
Elementos ascendentes. Série ascendente de separações rituais (sacerdote é chamado — animal separado — povo distante), cujo ponto culminante é a oferenda a Deus (sangue = vida), por um sacerdote, de um animal imolado. O ritual, a cerimónia é que vale. Essa precisa ser pura e perfeita. Isso acabou gerando e dando poder ao cargo e à instituição religiosa. E nem todos podiam ofertar. Alguns já estavam excluídos por princípio.
De acordo com os vv. 5-10, chegamos ao seguinte esquema comparativo:
[Veja anexo 2]
Acreditado em relação a Deus: misericordioso para com os seres humanos; foi atendido por Deus, pondo fim às separações; Cristo Filho de Deus; Cristo irmão dos seres humanos; o serviço de Cristo não ocorre no santuário sagrado e nem no celestial, mas no calvário que exigiu a liturgia da paixão e glória de Deus.
Cristo prometido (Jr 31, Sl 110) e segundo a ordem de Melquisedeque (Gn 14). Em humildade, obediência e solidariedade, apresentou-se a Deus, doando-se a si mesmo no lugar de um animal. Assim transforma sua existência e morte em oferenda perfeita e única. Fim do ritual da purificação. Não é consagrado. Nem ordenado, mas aperfeiçoado no sofrimento e em obediência.
Cristo mediador anuncia: todos podem entrar, não só o sacerdote; entrada no santuário para sempre, não só uma vez; salvação não via esforço e sacrifício, mas sim via fé que adere a Cristo; perdão dos pecados; santificação dos crentes; amor fraternal transmitido aos seres humanos. Aceitação e socorro aos deserdados. Fim da opressão. Nova vida!
3. Meditação
Os textos de Jr 31 e Mc 10 mostram uma população abandonada pelo ritual oficial, mas aceita e procurada pelo Deus de seus pais. E esse Deus acolhedor estava sendo abandonado pela comunidade cristã primitiva. Nos momentos de desânimo, indiferença, perseguição e do ataque de doutrinas estranhas, era mais prático e aceitável optar por algo semelhante ao ritual mosaico, tolerado pelo estado romano. A vida em sofrimento nos coloca pelo menos diante de duas possibilidades: ser solidário com a dor alheia e lutar por vida ou buscar a exclusividade individualista, fazendo oferendas e sacrifícios que dão poder às forças ideológicas que sustentam os autores do sofrimento, da dor e da exclusão do próximo. Assim, os poderes do mundo que não aceitam Deus ser Deus exigem sacrifício e exclusão das pessoas marginalizadas. Enquanto o Deus dos pais exige misericórdia, busca a aceitação do outro. Essa é a afinidade dos textos de assessoria para o texto central. Nessa direção, o autor de Hebreus tenta estruturar a vida dos fiéis, criticando a opção buscada por eles no antigo ritual levita, que facilitava uma vida descomprometida com o todo da sociedade. De outro lado, conserva a esperança mística de dias melhores, já aqui, afirmando que em Cristo já perdemos a culpa. Não precisamos mais de sacrifícios, mas exercitar a misericórdia, o amor. E isso fica mais evidente quando compararmos os dois modelos de mediação descritos em Hb 5.1-10.
O primeiro esquema de mediação sacerdotal mostra a eterna dependência ritual dos seres humanos daqueles que abocanharam esse esquema. A oferenda do primeiro esquema não apaga a culpa do pecador e nem estrutura a vida de fé dos fiéis numa perspectiva libertadora. Leva ao vício da repetição excludente e controladora dos deserdados, que ficavam convidados a perder a dimensão histórica de sua libertação. Expressa no sentido de abandono, externado pelos exilados; incorporada nos seguidores de Jesus, que proibiam Bartimeu de expressar sua fé e esperança, e na comunidade cristã primitiva, que sentia o sofrimento e a demora da parusia como negação da vitória de Cristo sobre a morte. Para o autor de Hebreus, voltar para esse esquema é renovar o poder de opressão e descompromisso para com a vida. É perder a última oportunidade de salvação. Para reforçar sua crença, a fé em Cristo cita toda uma gama de experiências de fé contidas na tradição religiosa do povo de Deus. Culmina com o resumo comparativo da mediação de Cristo: é prometido, derrama seu sangue — que não é de animal — fora do templo, no caminho, no calvário. No mundo, é aperfeiçoado com a ressurreição, surgindo em nova vida, que é o sonho de todos(as). Se o ritual levita era básico para a purificação, o de Cristo é ainda mais completo, por acontecer fora do controle, mas dentro do prometido por Deus. É o shopping center da fé. Não se pode comprá-lo. Fora desse é só opressão, exploração, engano e perdição. Para a salvação e a paz é o único. Onde não pesa o rito, mas a figura da pessoa reconciliada com Deus e com o próximo. A santificação dos crentes é vivenciável onde acontece o perdão dos pecados. O cargo de cristão é passado adiante em responsabilidade. Todos têm a tarefa de zelar pela vida. Essa deve ser pura e aceitável diante de Deus. Hebreus mostra que é possível viver sem o suporte ideológico do Estado, ou seja, a religião institucionalizada. É o fim das instituições religiosas, que engordam o poder opressor, expresso no Estado, li o início do exercício prático da obediência a Deus no amor ao próximo. Caminhando rumo às nossas instituições e seus rituais, perguntamo-nos: Onde as instituições religiosas e seus rituais apoiam e dão suporte ao poder opressor? Onde dão poder em excesso aos religiosos? Onde afastam o povo deserdado de Deus’? Onde tentam prender Deus, tornando a cabeça dos deserdados em cabeça de opressores? Onde a beleza ou fraqueza das instituições e seus rituais estão acima das pessoas? Onde induzimos ao sacrifício ao invés de ao amor, à misericórdia ao próximo? Onde as instituições e seus rituais separam culto e vida? São questões que mexem com o nosso jeito de ser e praticar a fé cristã no seio das igrejas.
4. Sugestões para a prática
4.1. Formular cartazes com os esquemas de mediação e fixá-los diante dos ouvintes, ressaltando a unidade entre culto e vida que Cristo restabeleceu.
4.2. Leitura do texto de Hb 5.1-10.
4.3. Recontar o texto de Hb 5.1-10.
4.4. Trabalhar com os cartazes e o texto recontado.
4.5. Comparar com a situação de cada comunidade e com o todo das igrejas Nossa tendência é optar pela mediação antiga, que separa vida e culto, recorrer a santos e milagreiros, que servem como mediadores. Conforme o autor de Hb, isso gera morte.
4.6. Se houver tempo, meios técnicos e financeiros, se as comunidades foi em pequenas, poder-se-á distribuir uma cópia do esquema das mediações para cada pessoa ou família presente. Isso auxiliará na compreensão e na memorização da reflexão
5. Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Com preocupação chegamos à tua presença, ó Deus da vida, neste 23° Domingo após Pentecostes, para falar dos nossos sacrifícios. São sacrifícios que não geram vida nem trazem alento aos deserdados. Desconsideramos toda a unidade de culto e vida que viveste. Não aprendemos neste ano todo com os exemplos de fé dos nossos antepassados. Negamos o seu testemunho, favorecendo as forças do mal, que exercitam o ritual do sacrifício de vidas inocentes. Deus, mediador e doador da vida, tenha compaixão de nós. Abre nossos olhos para que possa mós ver e te seguir dizendo: Tem piedade de nós Senhor!
2. Oração de coleta: Rezar o Sl 119.169-176.
3. Leituras bíblicas: Para uma maior clareza do texto da prédica, recomendo a leitura das duas outras perícopes indicadas: Jr 31.7-9 e Mc 10.46-52.
4. Oração final: Exercitar uma pequena motivação no sentido de que Deus acompanha os exilados; Deus acolhe Bartimeu, e esse segue-o. Deus realiza o sacrifício de Cristo, dando-nos a eterna salvação, e essa nos leva a segui-lo também hoje. Tanta dor, tanta morte e sacrifício indicam e acusam que não o estamos seguindo. Após alguns instantes de silêncio, clamar pela presença do Espírito Santo na vida da comunidade. Agradecer pelos exemplos de fé da e na Igreja. Interceder pelas mudanças que devem ocorrer nas igrejas e na pátria. Pela unidade dos cristãos. Pelos deserdados e exilados que ainda estão fora do ambiente das comunidades. E que o tempo de Advento, que se aproxima, seja diferente. Sem sacrifício e dor. Pai Nosso…
6. Bibliografia
GINLIANI, Matheus F. Meditação sobre Hb 5.1-6. In: REB, vol. 39, Fase. 154, p. 458, Vozes, Petrópolis, junho 1979.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento, Sinodal/Vozes, vol. II, pp. 494-521.
VANHOYE, Albert. A mensagem da epístola aos Hebreus. São Paulo, Paulinas, 1983 (Cadernos Bíblicos).