Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Hebreus 9.11-14
Leituras: Deuteronômio 6.1-9 e Marcos 12.28-34
Autor: Nilton Giese
Data Litúrgica: 23º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 01/11/2015
1. Introdução
O texto de Deuteronômio é a alma, o guia, a linha de ação que Israel não pode descuidar nem mudar por outra coisa sob o risco de se perder e perecer como nação. Em hebraico, a conotação do verbo shemá tem implícito o imperativo de obedecer, pôr em prática, e isso era o que o povo deveria ter feito: escutar obedecendo, escutar pondo em prática.
A redação dessa passagem, embora pareça ser de uma época anterior à conquista e posse da terra, na realidade é de uma época na qual Israel provou e experimentou na própria carne o que significa não escutar e pôr em prática os mandatos e preceitos do Senhor. Estamos na chamada época do pós-exílio. Israel passou pelas experiências históricas mais difíceis: desaparecimento do sistema solidário tribal, aparecimento da monarquia (ponto de partida de todos os seus pecados), divisão do reino, destruição de ambos os reinos, deportação… Em todos os momentos, Israel foi instruído através dos profetas, que sempre o convidavam a reorientar seu caminho. Mas a queixa de Deus sempre foi constante: Não atende a ninguém, não aceita disciplina, não confia no Senhor, nem se aproxima do seu Deus (Sf 3.2).
As experiências históricas obrigam Israel a aprender o que significa escutar seu Deus e pôr em prática a sua Palavra, sua instrução. Baseado em tudo o que lhe aconteceu, Israel descobre que os mandatos do Senhor não querem amarrá-lo, estreitar horizontes nem pôr todo um povo sob a direção de um Deus caprichoso. Não é um Deus qualquer que de livre e espontânea vontade optou por esse povo, e sim um Deus de vida que quer apenas orientar o povo por sendas de vida. Assim, depois de sobreviver às mais duras experiências no exílio, Israel volta a lembrar qual era, desde o princípio, a proposta de seu Deus: amar somente a ele, procurar somente a ele e não confiar em nenhuma outra proposta, por mais chamativa que fosse, para não voltar a cair num fracasso pior.
No evangelho, Jesus depara-se com uma norma de vários séculos cumprida por seu povo. Todos os dias, três vezes por dia, todos os homens israelitas recitam o “Escuta Israel… o Senhor nosso Deus é um só, a ele amarás…”, o shemá. Mas Jesus denuncia que esse shemá ficou apenas no campo auditivo, não se vê no campo da prática, e é isso o que Jesus denuncia ao longo do seu ministério. Muitas palavras, muitas normas e preceitos, muito apelo a Deus para tudo, muitas frases da lei nas bordas dos mantos, no batente das portas, no braço, na testa, mas nada no coração ou, menos ainda, na vida ordinária, na prática cotidiana.
Na comunidade de Marcos apresentam-se situações similares às do judaísmo. As normas e preceitos que os primeiros cristãos conhecem são necessariamente aqueles que vêm do mundo judeu. Agora serão de cumprimento obrigatório todos esses preceitos nessa nova experiência de vida supostamente animada pela presença viva do Senhor ressuscitado? A primeira coisa e mais importante que os cristãos devem levar em consideração é que não se trata de uma adesão a uma divindade diferente do judaísmo. É o mesmo Deus revelado ao povo de Israel, e na Escritura, é o mesmo Deus de Jesus; portanto, o que o cristão tem que fazer primeiro é professar sua fé, amor e adesão a esse Único Deus, “escutar” sua Palavra e obedecê-la. Esse é o projeto de vida de Jesus. Toda a sua vida e sua obra moveram-se em função disso, e é isso que tem que manter o cristianismo vivo: sua adesão a esse único e verdadeiro Deus, a quem não interessa outra coisa a não ser o amor e adesão a ele, que os fiéis vivam no amor mútuo e fraterno. Para Jesus, não tem sentido falar do amor a Deus sem levar em consideração a ÚNICA porta de acesso a ele: o próximo.
2. Exegese
O tema central da Epístola aos Hebreus é o sacerdócio de Cristo, apresentado como o novo sacerdócio, isto é, o sacerdócio da nova aliança, que vai substituir e aperfeiçoar o antigo sacerdócio, ou seja, o sacerdócio da antiga aliança.
2.1 – A violência e o sagrado
Historicamente, verifica-se que a estruturação do sistema de culto levítico, elaborado pela casta sacerdotal pós-exílica, assume os ritos que já eram realizados no período pré-levítico, em que cada pessoa (e não somente o sacerdote) manipulava a sua oferta e apresentava seu sacrifício. Exemplos disso pode-se ver nas ofertas de Caim, Abel, Noé, Abraão.
A função do sacrifício violento é assegurar a possibilidade da vida com os outros. O ato do sacrifício violento era visto como a possibilidade de um restabelecimento da ordem. Com o sacrifício violento, o que se queria era afastar a violência da comunidade. No entanto, tratava-se de uma solução enganosa e ilusória, porque a violência recíproca voltava a imperar, a sociedade desintegrava-se e necessitava de um novo sacrifício. É um processo de repetição sem fim.
Encontramos a justificação sacrificial do Antigo Testamento no livro de Levíticos (capítulos 1 a 7 e 16). Lv 1-7 trata da lei dos sacrifícios: holocausto (1.3-7) é o sacrifício com animais; oblação (2.1-16) é um sacrifício com primícias dos produtos agrícolas; sacrifício pacífico (3.1-17) é o sacrifício cruento, no qual apenas uma parte da vítima estava sobre o altar, enquanto outra parte servia para o característico convívio sagrado, o que “se comia e bebia diante de Deus”. O sacrifício de expiação (4.1-5,15) é o que se fazia para reparar as impurezas levíticas e os pecados cometidos inadvertidamente por parte de toda a comunidade, do seu chefe ou de um simples fiel. O sacrifício de reparação (5.14-16) era a restituição por uma culpa. O sacrifício de louvor (Lv 7.12) pode ser exemplificado
pelo Sl 51: “minha boca anunciará teus louvores (v. 15), pois não te comprazem os sacrifícios (v. 16)”. Lv 16 fala do grande rito de expiação e do “Grande Dia” no qual anualmente esse é realizado. Trata-se do Yom Kippur, celebrado até hoje pelos judeus.
2.2 – A centralização do lugar do sacrifício
O sistema levítico centraliza o lugar do sacrifício, o qual não será mais realizado em qualquer lugar – debaixo de uma árvore ou sobre uma pedra – e sim no templo. Junto com isso há uma centralização da mediação nas mãos dos sacerdotes e do sumo sacerdote. E o que era oferecido não era a carne, mas o sangue, pois esse representa a vida.
O Levítico, ao propor toda essa organização do sacrifício e do sacerdócio, tem em mente a estrutura de mediação que obtenha o perdão dos pecados, a purificação ritual (de um leproso, de uma mulher depois do parto, de quem teve contato com um cadáver, por exemplo), a cura e a manifestação da glória de Javé (Lv 9.6).
2.3 – O sacerdócio de Cristo
A Epístola aos Hebreus é o único escrito do Novo Testamento que constitui uma obra sistemática de teologia do sacerdócio e em que o termo sumo sacerdote é aplicado a Cristo. Igualmente o termo sacerdote (hiereus) não é aplicado nos evangelhos e em Atos a Jesus ou aos apóstolos. Só a Epístola aos Hebreus aplica a Cristo os títulos de sacerdote e sumo sacerdote, atribuindo-lhe qualidades sacerdotais e tratando o ponto fundamental das relações entre Cristo e o sacerdócio. A Epístola aos Hebreus, na verdade, não é uma carta, mas um sermão.
É assim que se define o gênero literário dessa obra cuidadosamente elaborada, feita de exposições entrecortadas por exortações, numa sucessão lógica de temas e com uma estrutura concêntrica que permite evidenciar o ponto alto: Jesus é o mediador e o sumo sacerdote (8.1-9,28).
O capítulo 9 trata da superioridade do culto e pode ser dividido em três partes: v. 1-10: o culto antigo; v. 11-14: a oferta de Cristo; v. 15-22. 23: a questão do sangue. O culto antigo era marcado por normas rituais e um santuário terrestre (v. 1), com sangue de bois e novilhos, e cinza espalhada sobre seres ritualmente impuros (v. 13), com o altar para o incenso (v. 4) e o propiciatório (v. 5); tudo isso era apenas cópia e sombra (8.5), figura (parabolē: 9.9) do verdadeiro e eterno santuário.
Cristo, ao contrário, é sumo sacerdote através do seu próprio sangue, obtendo uma redenção eterna (v. 11-12), numa clara alusão ao sangue da aliança (haima tēs diathēkēs) de Êx 24.8 (Hb 9.20). Segundo Hb 9. 14: … muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará (kathariei) a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo!
2.4 – A libertação da religião da violência
Conhecer a estrutura religioso-cultural-sacerdotal de Israel através da Escritura ajuda a entender a importância da atribuição que a Epístola aos Hebreus faz sobre o título de sumo sacerdote a Jesus. É verdade que a religião cristã, que iniciava, tinha necessidade do sacerdócio e do sacerdote. Também é aceitável que o sacerdócio antigo é válido na linha da intuição, ou seja, entendeu e explicitou a seu modo a necessidade de mediação. O autor de Hebreus percebeu que aquilo que o sacerdócio levítico realizara em nível simbólico Cristo realizou em sentido real. Jesus desempenhou uma missão profética e não sacerdotal, e no desempenho dessa missão não economizou críticas nem evitou conflitos com os representantes de tal casta. Mesmo assim, sua morte não se deu no lugar de culto nem se tratou de uma cerimônia religioso-cultural; antes tratou-se da execução de um condenado. O derramamento do sangue será o elemento comum com o sacrifício antigo e é a consequência da fidelidade irrestrita de Jesus à missão de revelador
do Pai (por isso ele é digno de fé).
A instituição sacerdotal da antiga aliança encontra seu cumprimento (sua realização) no mistério da morte de Cristo. É essa, em substância, a tese central da Epístola aos Hebreus. Os sacrifícios que os cristãos oferecem não pertencem mais à antiga economia: eles são de uma natureza completamente diferente, como revela a última parte da epístola (13.1-19 e, particularmente, 13.15-16).
2.5 – Paralelismo entre os sacrifícios antigos e o sacrifício de Cristo
Traçando um paralelismo entre os sacrifícios antigos e o sacrifício de Cristo, nota-se uma passagem:
• de uma dimensão exclusivamente ritual para uma dimensão existencial;
• da separação (não identificação) do ofertante com a oferta para a solidariedade;
• da oferta de animais e produtos para a oferta pessoal, isto é, a oferta real da existência;
• da pureza ritual (o termo grego para designar a purificação é katharismos) para a purificação dos pecados (Hb 1.3) e da má consciência (Hb 10.22; 9.14);
• da obediência à Lei para a docilidade ao Espírito Santo (1Ts 5.19), ou seja, à liberdade;
• de uma consagração (a palavra hebraica é male, e a grega, teleiōsis) que vale somente para o sacerdote para uma consagração que vale para todo o povo (Hb 10.14; 1Pe 2.4-10; Ap 5.10);
• das puras práticas exteriores para um culto espiritual (Rm 12.1; Hb 9.14: Cristo é capaz de realizar o culto espiritual perfeito; Hb 13.15: beneficência e comunhão (koinōnia);
• de um rito que tem uma finalidade em si e está separado da vida para o culto sacramental cristão, isto é, ao rito que é a expressão da vida e tem continuidade na mesma;
• do culto antigo, que é um jugo pesado para o pobre, o qual deve levar ofertas para o sacrifício para poder sentir-se justificado e agraciado por Deus, para o culto da comunidade cristã, que deve ser uma realidade que liberta.
3. Subsídios litúrgicos
A exigência fundamental que está na base de qualquer compromisso religioso é o amor a Deus, mas que deve estar mediatizado pelo amor aos irmãos. Essa é a base primordial da espiritualidade de Jesus, que permite aquela absoluta sintonia entre sua opção por Deus como Pai e sua consequente opção pelo reino do Pai, que na percepção é a preocupação pelos fracos e marginalizados. Neste sentido, a nossa espiritualidade não pode mudar de referente.
Oração de intercessão
– Pelas igrejas do mundo, para que sejam as primeiras a obedecer à Palavra, oremos.
– Pelos governantes, políticos e dirigentes sociais, para que também eles sintam que seus projetos devem estar alinhados com a Palavra de Deus, oremos.
– Pelos nossos grupos e nossas comunidades, para que seus programas e ações sejam a concreção obediente da Palavra que os convoca e os motiva, oremos.
– Por cada um de nós, para que no viver diário sejamos capazes de manter uma atitude de escuta obediente à Palavra de Deus, oremos.
Deus da vida, que cuidas de toda a criação, dá-nos a paz!
Que a nossa segurança não venha das armas, mas do respeito; que a nossa força não seja a violência, mas o amor;
que a nossa riqueza não seja o dinheiro, mas o compartilhar; que o nosso caminho não seja a ambição, mas a justiça;
que a nossa vitória não seja a vingança, mas o perdão.
Desarmados e confiantes, queremos defender a dignidade de toda a criação, compartilhando hoje e sempre o pão da solidariedade e da paz.
Por Jesus Cristo, teu divino Filho, nosso irmão, que, vítima da nossa violência, do alto da cruz deu a todos seu perdão.
Amém.
(Campanha da Fraternidade 2005)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).