Impulsos da Reforma Luterana para a Atuação da IECLB na Área da Educação (1)
Lothar C. Hoch
A memória de minha mãe e educadora Amália Joana Tatsch Hoch * 17-05-1903 t 12-02-1983
¨A IECLB é missionária na medida em que advoga os princípios da justiça social e da liberdade do indivíduo como membro da sociedade, e a participação adequada de todos nos frutos da produtividade da Nação e uma instrução condizente com as necessidades atuais¨. (2).
Ao optar pela abordagem do tema ¨educação¨ estou ciente de que me aventuro em um campo que não é diretamente de minha competência. Faço-o, portanto, mais na qualidade de teólogo prático que de educador, uma vez que, de acordo com a compreensão da IECLB, ¨a função específica da teologia é orientar a Igreja na realização de sua missão, levá-la à clareza sobre sua incumbência e chamá-la sempre de nova à fonte do seu testemunho e do seu serviço¨ (3).
Quando aqui falo sobre educação, faço-o igualmente imbuído de uma atitude de reconhecimento e de respeito a todos os pastores e educadores que, ao longo da história da IECLB, deram o melhor de si na difícil batalha pela formação de nossa gente. Não lembrar isso seria uma atitude de ingratidão de minha parte, pois não só eu pessoalmente devo a maior parte da minha formação a esta Igreja, também meus pais já aprenderam a ler, a escrever e a articular os rudimentos da fé evangélica luterana graças às escolas mantidas pelo antigo Sínodo Riograndense em longínquos recantos desse Estado onde a rede escolar oficial nem sequer havia penetrado.
Quero nesta oportunidade também me congratular com o papel que o Conselho de Educação da IECLB vem desempenhando no curto espaço de tempo desde sua criação em 1981. Eu gostaria que minhas reflexões fossem entendidas como uma contribuição para a realização de um dos propósitos desse Conselho que é a de ¨analisar questões de educação, procurando interpretar e posicionar-se diante da realidade educacional brasileira¨ (4).
A — A CRISE DA EDUCAÇÃO
Creio que no atual momento histórico estamos vivendo uma crise muito séria no que diz respeito à educação. Essa crise se verifica nos mais diferentes níveis. Eu irei me reportar aqui a três desses níveis.
1. Nível Global
Já houve momentos na história em que se acreditava que através de um processo educativo bem planejado e com suficiente injeção de recursos financeiros e humanos se pudesse resolver a grande maioria dos problemas que afligem a humanidade. Essa expectativa, estribada num humanismo idealista, confiava exageradamente na capacidade transformadora de indivíduos, bastando que tivessem uma boa dose de espírito de sacrifício e de boa vontade. Além disso, esse modelo educativo entendia que a tarefa primordial do educador era a de recapitular as descobertas seguras da cultura e a de colocar o educando a par de toda a verdade que as ‘gerações anteriores tivessem encontrado (5).
O modelo descrito se evidenciou não só como ineficiente na medida em que é de caráter paternalista, como também altamente ingênuo, uma vez que não levava em consideração os aspectos político-ideológicos que estão presentes em todo e qualquer processo educativo. Parece que a nossa geração está acordando para o fato de que os destinos da humanidade não estão sendo traçados primordialmente por um pequeno exército de destemidos e altruístas educadores, por mais humanitários ou cristãos que sejam os seus propósitos. Os destinos da humanidade são regidos por interesses econômicos e ideológicos, cujo alcance se mede pelo volume financeiro investido e cuja eficiência depende do controle ou não dos meios de comunicação de massas e da capacidade de endoutrinamento pacífico ou violento, dependendo do grau de ameaça dos interesses em jogo.
As ideias dominantes duma época sempre foram as ideias da classe dominante, já dizia Marx. Levou tempo para que acordássemos para esse fato.
A crise pela qual passa a educação tradicional a nível global poderá se evidenciar como extremamente benéfica na medida em que ela servir para nos mostrar que ¨o homem não pode participar ativamente da história …, da transformação da realidade a não ser que seja ajudado a tomar consciência da realidade e de sua capacidade de transformá-la¨ (6).
2. Nível Nacional
Muito se poderia dizer sobre a situação educacional no Brasil. Quero, todavia, me limitar a algumas breves considerações de ordem geral. Nós todos sabemos que estamos saindo de um período escuro de nossa história político-institucional. O período de arbítrio, na medida em que se atenua, está colocando a descoberto um quadro sombrio de consequências econômicas e sociais que são de profunda relevância para a análise da problemática educacional de nosso país.
Questões como a falta de liberdade de pensamento crítico, centralização do ensino, via Mobral e Educação Moral e Cívica, crescentes índices de analfabetismo, diminuição gradativa de verbas para a educação, discriminação de classes de baixa renda, formação profissionalizante, para citar apenas algumas, desafiam a criatividade de nós como brasileiros e como cristãos luteranos.
Uma coisa é clara: as autoridades responsáveis pela educação nesse país reconheceram o papel político da educação e por isso fazem todo o possível para centralizar e padronizar o ensino no Brasil, adequando-o aos interesses ideológicos vigentes. É evidente que há setores nesse país que têm interesse em que uma grande parcela da sociedade brasileira permaneça mais ou menos ignorante, passiva e alienada. Pois urna educação que tem como objetivo ajudar a pessoa a tornar-se sujeito da sua história, que a ajude a lutar pelos seus direitos e a exigir mais justiça e igualdade, representa uma ameaça para setores privilegiados que se beneficiam daquilo que chamam de ¨ignorância¨. Fruto disso é a chamada ¨educação bancária¨ que, segundo Paulo Freire, leva o educando a uma atitude passiva de armazenar conhecimentos, memorizá-los para depois repeti-los. Aqui se marginaliza o educando do processo criativo e do raciocínio crítico. Desse modo, a classe dominante procura guiar as camadas populares para tarefas históricas que julga que a elas cabe desempenhar.
Também os intelectuais brasileiros não estão isentados de crítica. Segundo Francisco Weffort, eles representam o povo nas suas críticas, mas não obstante estão longe do povo. A vida da cultura e da intelectualidade e a vida do povo brasileiro correm por faixas muito diferentes (7).
3. Nível da IECLB
A IECLB tem tradição como Igreja voltada à educação. Desde os seus primórdios, pregação e educação, inclusive religiosa, andaram de mãos dadas. Ela prestou relevantes serviços justamente entre os teuto-brasileiros numa época em que estes estejam ameaçados de total esquecimento, para não dizer de marginalização, por parte do Estado. Falar em crise da educação dentro do âmbito da IECLB não significa, portanto, questionar ou criticar o que foi feito, mas significa perguntar criticamente, se o projeto educativo que hoje está em vigor na IECLB está adequado aos desafios que a realidade brasileira de injustiça e desigualdade social nos impõe.
Na esfera das escolas evangélicas, o próprio Conselho de Educação da IECLB se pergunta, se o atual projeto educativo luterano está dando resposta aos problemas e desníveis sócio-econômicos brasileiros. E chega à conclusão de que ¨as escalas luteranas de hoje, por mais comunitárias que sejam as suas intenções… são escolas elitizantes… que atendem ao establishment, a elite do momento¨ (8). Constata, outrossim, que ¨salvo algumas poucas exceções, as tradicionais escolas particulares estão correndo o perigo de se colocar num atrelamento ideológico, político partidário, via dependência econômica. ..¨ (9).
De fato, parece que hoje estamos muito distantes da prática inicialmente vigente nos antigos sínodos e paróquias, onde a própria comunidade administrava a sua escola e zelava para que todos, mesmo os menos abastados, tivessem acesso à educação. É uma triste ironia que essas mesmas escolas, devido a dificuldades financeiras e devido à política centralizadora do governo, fossem colocadas diante da lamentável alternativa de ou, fecharem suas portas ou então de atenderem preferencialmente uma camada privilegiada da população. Mesmo reconhecendo a complexidade da questão, temos de perguntar se estamos aqui diante de uma inevitável fatalidade ou, quem sabe, nos faltou como Igreja de Jesus Cristo no Brasil uma orientação evangélica luterana mais firme e ousada no sentido de preservar a herança reformatória de propiciar educação a todos, especialmente aos mais negligenciados e esquecidos? Mas com isso já estamos nos encaminhando para a segunda parte de nossa exposição.
B — IMPULSOS DA REFORMA LUTERANA
Na carteira de estudantes do ano de 1983, confeccionada pelo Centro Acadêmico Dr. Ernesto Schlieper de nossa Faculdade de Teologia, está impressa uma frase de Lutero que diz o seguinte: ¨Seria bom e justo, de qualquer forma, que sempre que se dê um florim para a luta contra os turcos se dêem cem para a educação.¨ Em seguida lê-se um slogan que demonstra a atualidade dessa frase do reformador: ¨Verbas para educação e não para a guerra¨.
Para mim este citado é sintomático para o fato de que nós estamos, em meio às celebrações dos 500 anos do nascimento de Lutero, redescobrindo, junto com o Lutero-Teólogo, o Lutero-Educador.
Em dois escritos do ano de 1530, Lutero se posiciona sobre a questão da educação. O primeiro se dirige às autoridades civis e se chama ¨Aos Conselheiros de todas as Cidades da Nação Alemã para que mandem construir e manter Escolas Cristãs¨. O segundo escrito é dirigido aos pais de família e se intitula ¨Uma Prédica para que se mandem as Crianças à Escola¨ (10).
Já os títulos desses escritos são por si só muito elucidativos. Levando em consideração tanto o autor como os destinatários desses escritos, pode-se reconhecer que Lutero defende uma tríplice responsabilidade pela tarefa educativa, a saber: as autoridades civis, a Igreja e os pais. A educação é tarefa comum dessas três instâncias (11). Claro está que se Lutero pretendesse excluir a Igreja dessa responsabilidade ele, como homem da Igreja, não teria sequer se pronunciado sobre o assunto.
Uma vez constatada a co-responsabilidade da Igreja pela tarefa educativa, cabe-nos perguntar pela contribuição da reforma luterana para o assunto em pauta. Numa apreciação rápida dos dois escritos de Lutero acima mencionados, chego às seguintes conclusões:
1. Cabe à Igreja lembrar as autoridades civis da sua tarefa educadora. No início da sua admoestação aos conselheiros de todas as cidades da nação alemã, Lutero cita um provérbio popular que ele conhece desde a infância e que diz o seguinte: ¨Não é menos grave negligenciar um aluno do que corromper uma virgem.¨ No seu comentário a respeito, Lutero diz que apesar de toda a brutalidade que representa a violentação duma virgem, não há nada que se compare à negligência em relação à educação de uma criança. Literalmente ele afirma: ¨Diariamente nascem crianças e crescem entre nós e infelizmente não há ninguém que aceite e encaminhe esses inocentes.¨ (12) Por isso, ele apela com veemência profética às autoridades constituídas para que essas se desincumbam da tarefa que Deus lhes confiou, no sentido de providenciar educação adequada para todos. Já foi frisado que esse apelo não isenta os pais da responsabilidade de educar seus filhos. Ele se coloca na defesa daquelas crianças que não têm pais e daquelas cujos pais não têm condições de proporcionar uma educação adequada aos seus filhos.
2. Cabe à Igreja dar prioridade absoluta à educação dos necessitados e marginalizados na sociedade. No primeiro dos escritos acima mencionados, Lutero roga a Deus que ele na sua graça amoleça e inflame o coração das autoridades responsáveis para que essas se voltem ¨aos pobres, aos miseráveis e abandonados dentre os jovens¨ com especial seriedade e dedicação (13). No outro escrito, dirigido aos pais, ele se torna mais claro ainda, quando diz: ¨Certamente ficará nisso que o teu e o meu filho, isto é, filhos de gente humilde, terão que reger o mundo tanto na esfera espiritual como na esfera mundana.¨ Pois nem os ricos avarentos nem tampouco os nobres e senhores o farão. E Lutero conclui:
¨Assim certamente ambos os regimentos nesta terra terão que ficar nas mãos das pessoas pobres, medianas e humildes e dos seus respectivos filhos¨. (14)
3. Cabe à Igreja valorizar a tarefa do educador. Sabendo medir e avaliar o alcance e a importância da tarefa educativa, Lutero soube igualmente valorizar a tarefa do educador. Ele chegou a colocar o papel do educador no mesmo nível da do pastor ou pregador. Para ilustrar isso, cito uma passagem da sua ¨Prédica para que se mandem as Crianças à Escola¨: ¨Não há forma de compensar, nem dinheiro algum que possa pagar um laborioso e piedoso professor ou mestre de escola que educa e ensina fielmente as crianças, como já disse o pagão Aristóteles. Apesar disso, essa tarefa entre nós é vergonhosamente desprezada como se não fosse nada, e isso apesar de querermos ser cristãos! Quanto a mim, se eu pudesse ou tivesse que deixar do ministério da pregação, em nenhuma outra atividade eu teria mais prazer do que em ser mestre de escola e professor. Pois eu sei que esta atividade, ao lado do ministério da pregação, é a maior, a melhor e a mais construtiva de todas ao ponto de nem mesmo saber qual das duas seja a melhor. Pois é difícil endireitar cachorros velhos e tornar piedosos velhos espertalhões, tarefa essa na qual o ministério da pregação investe muito trabalho e não raro em vão. Árvores novas, no entanto, é mais fácil de dobrar e fazer crescer, mesmo que algumas venham a se quebrar.¨ (15)
Esta palavra de Lutero é de uma atualidade incrível em uma Igreja como a nossa que centraliza tanto suas atividades no ministério pastoral e é tão hesitante em definir claramente o lugar do educador ou do professor catequista no quadro dos seus obreiros.
4. Cabe à Igreja lutar para que todos tenham acesso à educação. Como uma síntese do que até agora foi dito sobre a reforma luterana, convém dizer que ela foi um movimento que contribuiu decididamente para abrir espaço para que amplos setores da sociedade de então tivessem acesso a uma formação, quer religiosa, quer secular. Até então, tanto o estudo da Bíblia como o das ciências era o privilégio de poucos e não raro o seu ensino se constituía em monopólio da Igreja ou das ordens religiosas. A tradução da Bíblia para a linguagem do povo, a elaboração de um catecismo acessível para o homem simples da rua, a valorização do leigo, o questionamento de toda e qualquer forma de academicismo eclesiástico ou não, o estímulo para o desenvolvimento da capacidade crítica da pessoa, a ofensiva contra poderes escravizadores e arbitrários tanto civis como eclesiásticos, tudo isso fez da reforma luterana um movimento de democratização em um sentido amplo, que permitiu a que camadas marginalizadas do processo educativo fossem valorizadas e alcançassem uma maior maturidade, tanto em questões de fé como em questões seculares.
Para não idealizar Lutero e a Reforma é necessário manter presente que em alguns momentos cruciais do processo de solidificação do movimento reformatório, como por exemplo na luta dos camponeses e na entrega de certos poderes aos príncipes, houve alguns posicionamentos que merecem ser questionados. Isso, no entanto, não invalida que os impulsos que dela recebemos como um todo sejam de alta relevância quando tentamos refletir sobre a nossa responsabilidade educativa no contexto brasileiro.
C — NOVOS CAMINHOS PARA A EDUCAÇÃO NA IECLB
Diante do quadro de crise no setor educacional em nossa Igreja e em nosso país de um lado e do legado reformatório esboçado acima, por outro lado, que perspectivas se nos apresentam na procura por novos caminhos duma atuação educadora para a IECLB? Estou ciente de que essa é uma pergunta grande demais para ser respondida nesta oportunidade. Sei também que ela só pode ser respondida através de um esforço comum de todos aqueles que buscam por uma caminhada mais autêntica de nossa Igreja em meio à realidade brasileira. O que segue pretende tão somente ser uma modesta contribuição, sem a menor pretensão de querer abranger a dimensão global do assunto. Vislumbro as seguintes pistas:
1. A tarefa educadora da IECLB deve ser entendida como uma tarefa missionária. Não podemos pretender nos envolver em qualquer tipo de atividade educadora que não esteja em sintonia com a nossa responsabilidade específica de sermos Igreja de Jesus Cristo no Brasil. Em consequência disso não podemos, por um lado, querer centralizar em nossas mãos aquilo que cabe ao Estado fazer. A nossa proposta deve ser mais ampla e deve direcionar a tarefa educativa para um objetivo maior, qual seja, a salvação integral da pessoa humana. Isto significa que a educação que nós almejamos e praticamos deve ter em vista a pessoa toda em todas as esferas da sua existência, inclusive a esfera espiritual. Por outro lado, o nosso projeto educativo deve, por isso mesmo, estar orientado para a edificação (oikodomé) de comunidades cristãs, seja para a edificação das comunidades que já existem, como para a edificação de novas comunidades em áreas onde até agora estivemos ausentes. Na medida em que a educação promovida pela IECLB for de caráter missionário, ela terá também uma finalidade específica, crítica e distinta da educação não raro alienante e de cunho ideológico mantida pelo Estado.
2. A tarefa educativa da IECLB deve estar solidamente alicerçada na teologia. Como Igreja, as nossas palavras e os nossos atos, inclusive a nossa práxis educativa, devem estar baseadas numa sólida concepção teológica. Nós não podemos assumir tarefas, ainda que sejam de caráter educativo, que estejam desvinculadas da nossa tarefa precípua de testemunhar o Evangelho de Jesus Cristo. Isto é, nós não podemos ter uma teologia no púlpito e outra teologia ou, o que seria pior ainda, teologia nenhuma na sala de aula. Isso não significa, porém, que nós tenhamos um grupo de teólogos, professores e pastores, que assumam e monopolizem a tarefa da reflexão teológica e prescrevam os seus resultados aos educadores e aos educandos. A reflexão teológica deve acompanhar a práxis educativa e acontecer em permanente diálogo com todas as partes envolvidas com a educação. O estímulo da capacidade de refletir teologicamente faz parte do próprio projeto educativo da Igreja. A reflexão sobre o que significa ter ¨Cristo como ponto referencial central¨ (16) de nossa educação é tarefa de todos, tanto mais se quisermos ser fiéis ao postulado reformatório do sacerdócio real de todos os crentes.
3. A tarefa educativa da IECLB deve ter consciência do seu papel político. Paulo Freire nos adverte de que é preciso ¨estarmos vigilantes com relação às insinuações feitas, às vezes, ingenuamente, às vezes, astutamente, no sentido de nos convencer de que a alfabetização é um problema técnico e pedagógico, não devendo, por isso, ser misturada com política¨ (17). O que vale para a alfabetização vale também para a educação no sentido mais amplo, inclusive para a educação cristã. Não existe prática educativa que não tenha implicações políticas, na medida em que a educação não tem outra alternativa a não ser contribuir para a legitimação do sistema de valores vigentes na sociedade brasileira, ou, então, contribuir para a formação de uma mentalidade crítica que questiona a realidade vigente e busca transformá-la. Nós professores, pastores e educadores no âmbito da IECLB temos que ter consciência de que a nossa tarefa educativa não acontece num campo neutro, ahistórico. Tudo o que fazemos ou deixamos de fazer tem consequências e implicações políticas. Não saber disso constitui-se numa ingenuidade deplorável pois, sem querer, nos torna cúmplices da injustiça vigente.
4. A tarefa educadora da IECLB precisa ser crítica. Nós vivemos numa sociedade em que mais e mais se priva a pessoa humana do seu direito de participar ativamente nas decisões que afetam a sua vida e a sua existência. Sem nos apercebermos, estamos sendo cada vez mais aprisionados na fina malha da rede manipulativa que dirige nosso comportamento e nosso pensamento. Educação evangélica luterana no Brasil precisa contribuir para a desmistificação de poderes manipuladores, de ideologias escravizantes, de falsos deuses e ídolos, sujeitando tudo ao senhorio único e exclusivo de Deus, como preconizava o lema da IECLB de 1983. O Deus da Bíblia e o Deus de Lutero não criou um homem fantoche, massificado, mas um ser dotado de faculdade crítica, em condições de refletir sobre o mundo e os valores que o cercam e capacitado a participar na transformação da realidade. Educação na IECLB deve criar espaços onde uma tal reflexão e atuação críticas possam ter lugar.
5. A educação na IECLB precisa ser educação popular. Se a reforma luterana deu oportunidade a que amplos segmentos da sociedade antes marginalizados tivessem acesso à educação, então cabe a nós como Igreja Luterana no Brasil redirecionar a nossa tarefa educativa dirigindo-a prioritariamente àqueles dentre nossos membros e, na medida do possível, fora do nosso quadro de membros que mais necessitam. Os próprios professores de escolas evangélicas, no documento acima citado, reconhecem ser necessário que um projeto educativo luterano se volte no sentido de ser ¨escola para o povo¨ (18). O primeiro passo para isso é admitirmos que nos falta experiência em educação popular. Precisamos igualmente aprender a valorizar e reforçar o saber que já existe entre as classes populares. Isso significa que, ao invés de trazermos métodos e soluções pré-elaborados, precisamos ajudar a que as próprias camadas populares, seja de periferias urbanas, seja do campesinato, articulem e definam eles mesmos os seus interesses e prioridades (19).
6. A educação na IECLB deve partir de baixo para cima. Intimamente ligada à anterior está a pergunta: por onde começar a desenvolver uma atividade educativa em moldes populares. Frequentemente tem acontecido que nós na IECLB temos elaborado e decidido projetos em comissões, em círculos pastorais ou em concílios, os quais tiveram poucos resultados práticos entre aqueles a quem eram destinados. Uma das questões mais importantes me parece ser, por isso, que nos perguntemos como Igreja com quem queremos trabalhar, junto a quem queremos desenvolver um projeto educativo. Uma vez definido isso, então nos cabe ter uma atitude de escuta, uma postura aberta, que cria espaço para que o saber popular possa se expressar. Essa atitude de escuta não implica de nenhum modo em querer idealizar o povo e o saber popular, uma tendência que se mostra em slogans do tipo: ¨A voz do povo é a voz de Deus.¨ Educação luterana sabe que também o povo está sob o signo do ¨simultaneamente justo e pecador¨. Um projeto educativo luterano precisa, pois, ter consciência de que ao lado da aspiração popular de se tornar agente de sua própria história, existe entre esse mesmo povo uma tendência de esperar por socorro de fora, uma tendência historicamente explicável de se tornar dependente. Consciente do perigo de se tornar paternalista, cabe à Igreja reforçar a tendência emancipadora do povo, pois só assim acontece libertação. Só se consegue mudança com quem anseia por mudança. A IECLB no seu projeto educativo popular precisa aproveitar o potencial de insatisfação das classes e dos grupos oprimidos como fermento para mudanças, canalizando-as segundo o Evangelho. Se ela não o fizer, outras seitas e ideologias entrarão nessa brecha e tentarão conduzir o povo para outras direções. A tarefa de um projeto educativo popular da Igreja é dar um rumo e um conteúdo evangélicos ao processo libertador em andamento entre as classes oprimidas.
É necessário sabermos também que não iremos popularizar o ensino na IECLB simplesmente dando acesso a um maior número de pessoas pobres em instituições de ensino existentes na IECLB. Pois em persistindo a elitização nas escolas evangélicas existentes, o acesso a mais alunos pobres — e na hipótese de eles conseguirem acompanhar o nível do estudo — só contribuirá para que mais pessoas estejam sendo preparadas para vencer dentro da estrutura opressora vigente na sociedade, mas pouco se fará para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
7. A tarefa educadora da IECLB precisa se orientar no modelo grupal. O nosso método de ensino na IECLB continua em grande parte a ser um ensino vertical e frontal, onde o educador é considerado um ser superior que ¨ensina¨ seres num nível inferior. Aliás, esse modelo não só se encontra em nossas escolas, ele frequentemente determina também o ensino religioso e o próprio ensino confirmatório. Parece que nós entendemos a Igreja como uma instituição que administra um depositário de verdades mais ou menos prontas e imutáveis, as quais nos compete transmitir a nossos membros. Não é por acaso que se distingue na Igreja e também aqui na Faculdade de Teologia entre função docente e função discente. Isso se torna perigoso na medida em que se delega a uma parte do corpo de Cristo, no caso aos professores ou pastores, a capacidade de serem os detentores do saber legítimo (20).
Esse conceito encontra a sua expressão pedagógica no já mencionado ensino vertical. Uma educação, por outro lado, que queira valorizar a pessoa do educando, que entende que também ele tenha uma contribuição importante a dar e uma experiência a partilhar, precisa escolher o círculo grupal e o diálogo não só como método de trabalho mas também como o modelo que melhor se adapta a uma educação libertadora. O círculo não dilui responsabilidades e competências específicas, mas dá oportunidade a que cada um aprenda a articular e a descobrir a contribuição especial que tem a dar. Nesse sentido, nossa tarefa educadora precisa vir acompanhada de um estudo teórico e prático sobre as potencialidades da pedagogia de grupos. Aliás, uma redefinição de nosso projeto educativo na IECLB deve acontecer em estreita relação com um redimensionamento das instituições de formação de nossos obreiros. Aqueles educadores e mesmo pastores, por exemplo, que estão dispostos a atuar em periferias populares com uma pedagogia grupai se ressentem de uma formação adequada para um tal propósito.
8. A tarefa educadora da IECLB precisa ter uma dimensão prática. Já vimos que uma educação evangélico-luterana deve ajudar as pessoas a pensar criticamente. Mas junto com esse ato racional ou intelectual, nossa educação deve oportunizar um aprendizado através da práxis comunitária que une a reflexão com a ação e com a experiência concreta. Segundo o testemunho bíblico, Deus educa o seu povo através da sua palavra e da sua ação concreta na história. Também a reforma luterana, apesar de toda ,a ênfase na pregação da palavra, não deixou de ser um movimento dinâmico que se impôs por uma nova prática da fé. O nosso ensino nas igrejas, escolas e grupos é por demais intelectualizado; a nossa práxis, por ser muito tímida, torna desacreditadas as nossas palavras (21). Educar pela vida, pela vivência que inclui palavra e ação — este é o grande desafio da fé. Celerino Corriconde, um homem que atua no movimento de base em Recife, faz uma afirmação sobre a qual vale a pena refletir: ¨Nós intelectuais somos treinados a pensar as ideias. O povo pensa a vida. As ideias mudam as ideias. Só a vida é capaz de mudar a vida¨.
(1) Palestra proferida a 27-04-83 na Faculdade de Teologia num Ciclo de Palestras sobre o tema ¨O Papel da Teologia Luterana na Realidade Brasileira¨.
(2) IECLB — Igreja Missionária no Brasil, Documentos da IECLB n.° 1, CEM, S. Leopoldo 1981, p. 5
(3) op. cit. p. 8
(4) A Educação que buscamos. Painel do XIV Congresso de Professores de Escolas Evangélicas, Teutônia 1982, p. 2.
(5) Cf. George H. Muedeking. Educando para o Século XXI, Polígrafo da Faculdade de Teologia, p. 1
(6) Pedagogia do Desenvolvimento, in: Educação Nova. Polígrafo do Centro de Formação Pastoral, Caxias do Sul, p. 12
(7) Cf. Pedro Benjamin Garcia. Educação Popular, in: A Questão Política da Educação Popular, p. 89
(8) A Educação que buscamos, p. 12
(9) op. cit. p. 14
(10) WA 15,33 e WA 30,2 aqui citados conforme Luther Deutsch, vol. 7 ed. por Kurt Aland, Berlin 1954, págs. 187ss.
(11) Como o posicionamento de Lutero no tocante à questão da educação se relaciona com a sua Doutrina dos Dois Reinos não nos cabe aqui examinar.
(12) op. cit. p. 187
(13) op. cit. p. 191
(14) op. cit. p. 217
(15) op. cit. p. 219
(16) M. Reusch, in: A Educação que buscamos, p. 9
(17) Quatro cartas aos animadores de Círculos de Cultura de S. Tomé e Príncipe, in: A questão política da educação popular, S. Paulo 1980, p. 137
(18) A Educação que buscamos, p. 13
(19) Pedro B. Garcia, op. cit. p. 91s.
(20) Cf. Clodovis Boff. Agente de Pastoral e Povo, in: REB, junho 1980, p, 216ss.
(21) O homem latino, a partir de sua experiência, não pode mais crer em palavras, mas somente em realidades vividas.
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