Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: 1 Coríntios 1.10-18
Leituras: Isaías 9.1-4 e Mateus 4.12-23
Autoria: Nilton Giese
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 22/01/2017
A reflexão sobre o contexto de 1 Coríntios 1.10-18 vai ajudar-nos a entender que, desde o início da história do cristianismo, havia divergências entre as comunidades cristãs. A afirmação que todos eram um e tinham tido em comum (At 4.32) era mais um apelo do que uma realidade. A diversidade de opiniões, aparentemente inofensiva, produziu um forte enfrentamento interno entre as comunidades. Portanto a igreja cristã jamais existiu no singular. Desde o seu nascimento até os dias de hoje, deveríamos falar em igrejas cristãs, no plural. E, nessa pluralidade, o maior desafio nem sempre foi unificar a mensagem, mas muito mais unir os mensageiros.
Qual era o centro do debate? A maior divergência era em torno da Lei judaica. Nas primeiras comunidades cristãs, o maior conflito ocorria entre os que pensavam que os cristãos deveriam continuar cumprindo a Lei judaica (chamados, portanto, de judeu-cristãos) e os que pensavam que a Lei judaica era coisa do passado e não era necessária para o cristianismo (esses foram chamados de gentio-cristãos). O apóstolo Paulo, embora fosse judeu, pertencia ao segundo grupo – dos gentio-cristãos –, enquanto Pedro e Tiago eram os líderes dos judeu–cristãos.
Para os judeu-cristãos, era uma exigência que os cristãos cumprissem a Lei de Moisés. Eles defendiam a necessidade da circuncisão, a abstinência aos alimentos impuros e a observância do sábado. Os gentio-cristãos não consideravam nada disso importante. O apóstolo Paulo argumenta que a lei somente tem a função de revelar a incapacidade humana de cumprir a lei. E por isso estabelece uma íntima relação entre lei e pecado. A lei não salva, ela somente revela o pecado (Rm 5.20; 7.8). A salvação somente é possível pela fé em Cristo (Gl 2.16). A grande prova de fidelidade a Deus já não é mais a obediência à lei, mas o reconhecimento do ato salvador de Cristo na cruz. Portanto a teologia paulina afirma que a força salvadora da lei caducou com a teologia da cruz. A lei é água passada, que não move mais o moinho da salvação.
Outro ponto de divergência era em relação à divindade de Cristo, ou seja, se Jesus era mesmo o Filho de Deus. Nas comunidades judaico-cristãs, Jesus era considerado o “Eleito”, o “Ungido”, o “Messias” ou “Cristo”. Para Paulo, Jesus Cristo é o Filho de Deus.
Essas questões fizeram de Paulo um herói para os gentio-cristãos e um traidor para os judeu-cristãos (At 13.45-46). A tensão entre os dois grupos parece ter levado Saulo a mudar de nome (At 13.4-12). Ele troca seu nome hebraico Saulo para Paulo (nome greco-romano), numa clara identificação com os gentios e não com os judeus.
O livro de Atos dos Apóstolos, mostra em vários momentos, que essas duas comunidades se criticavam e desprezavam mutuamente. Havia uma divergência aberta e declarada entre eles. Podemos ler essas notícias em Atos 15.2 e Gálatas 2.11ss. O apóstolo Paulo procurou, várias vezes, mediar os conflitos e colocar um pouco de paz entre eles (Rm 14.3; 14.10,13; 15.7; 1Co 1.10s etc.). Mas seus apelos foram recebidos com suspeita por causa da sua clara identificação com os gentio-cristãos (Rm 14.14; 15.1).
Conta o livro de Atos dos Apóstolos que, no final de sua vida, Paulo foi denunciado pelos judeu-cristãos e preso em Jerusalém sob a acusação de ser um agitador social (At 21.27-40). Ficou dois anos preso na Palestina e depois foi trasladado a Roma para ser julgado pelo imperador.
Mas, curiosamente, ao chegar na capital do império, o livro de Atos dos Apóstolos termina e deixa os leitores sem saber o que aconteceu com o apóstolo Paulo em Roma. É surpreendente que Atos dos Apóstolos, que narrou o martírio de Estevão (At 7.55-60) e Tiago (At 12.1-2), não diga nada sobre a morte de Paulo, que é o único apóstolo que teve seus escritos incluídos no cânone do Novo Testamento. O que sabemos da morte de Paulo vem de textos escritos muito tempo depois. Somente no ano 170 d.C., o bispo de Corinto chamado Dionísio escreveu que Pedro e Paulo foram executados juntos em Roma. Em seguida, no ano 180 d.C., aparece um escrito apócrifo chamado Os Atos de Paulo, no qual consta que o imperador Nero mandou cortar a cabeça de Paulo. Mas não diz do que ele foi acusado.
Em julho do ano 64, um incêndio de grandes proporções atingiu quase toda a cidade de Roma. Dos catorze bairros, somente quatro ficaram intactos. O imperador Nero foi o mandante, mas a propaganda imperial culpou os cristãos, o que desatou uma forte perseguição e assassinatos dos cristãos. O historiador Tácito escreveu uma obra no ano 117 intitulada Os Anais do Império Romano, na qual menciona que os soldados romanos prenderam grupos de judeu-cristãos, mas eles negaram a responsabilidade pelo incêndio. No entanto, eles denunciaram outro grupo, chamado de gentio-cristãos.
Também o historiador romano Plínio (o Jovem) conta – numa carta enviada ao imperador Trajano no ano 112 d.C. – que os cristãos se delatavam uns aos outros durante a perseguição romana.
Os próprios evangelhos (Mt 24.3-14; Mc 13.3-13 e Lc 21.7-19) dão a entender que os cristãos traíam-se mutuamente e denunciavam uns aos outros às autoridades durante o conflito com os romanos.
A partir disso, podemos suspeitar de que a morte de Paulo não tenha sido nenhuma execução heroica, mas que ele morreu junto com outros cristãos que foram vergonhosamente denunciados pelo grupo de judeu-cristãos em Roma.
Além desse conflito visceral entre judeu-cristãos e gentio-cristãos, havia ainda outras comunidades cristãs que não chegaram a esse nível de oposição e agressividade, mas que também marcaram sua diferença e independência uns dos outros.
O grupo galileu, centrado na Galileia, era liderado por Pedro e por Maria Madalena. Do grupo galileu vem o Evangelho de Maria Madalena. As referências à Galileia são muito evidentes nos evangelhos de Marcos e Mateus. No entanto, esse grupo logo foi dominado pelo apóstolo Tiago, do grupo de Jerusalém, por volta do ano 44 d.C.
Outro grupo importante foi o sírio, muito vinculado ao grupo galileu e mencionado em Marcos 7.26, Mateus 15.21 e Atos 21.4. Esse grupo sírio tinha seu centro em Damasco, onde Paulo foi convertido ao cristianismo (At 9.3-22; Gl 1.17; 2Co 11.32) e também na cidade de Antioquia, onde os seguidores de Jesus foram chamados pela primeira vez de cristãos (At 11.26). Do grupo sírio provêm o Catecismo de Didaqué e o Evangelho de Tomé.
O grupo asiático tinha sua sede em Éfeso e era fortemente gentio-cristão. Ele se estendeu por grande parte da atual Turquia. Está representado na Carta aos Colossenses e na Carta aos Efésios, no Evangelho de Lucas e em grande parte do livro de Apocalipse, assim como nas cartas às sete igrejas da Ásia: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia.
Os cristãos gregos expressavam-se nas igrejas da Macedônia (Filipos, Tessalônica) e Acaia (Atenas e Corinto).
E, por fim, ainda devemos mencionar o grupo alexandrino ou egípcio. Judeus alexandrinos, liderados por pessoas como Apolo (Atos 18.24), viriam a ser conhecidos como gnóstico-cristãos, que defendiam que Jesus é a encarnação do Ser Supremo para trazer conhecimento à terra. O estudo do gnosticismo e do cristianismo primitivo de Alexandria recebeu um forte impulso a partir da descoberta da biblioteca de Nag Hammadi em 1945.
Como vimos, todos esses grupos tinham seus escritos. Os escritos que, por volta de 200 d.C., foram considerados no cânone do Novo Testamento, em sua maioria, obedeceram a dois critérios: 1) Quase todos os textos do Novo Testamento foram escritos no século 1 (a única exceção é a Carta de 2 Pedro, que foi escrita no ano 120 d.C.) e 2) Com exceção das cartas de Tiago e de Judas (puramente judeu-cristãs), todos os outros escritos do Novo testamento têm como pano de fundo a teologia paulina da salvação, centrada na teologia da cruz.
Os livros que ficaram de fora do cânone neotestamentário inicialmente não foram proibidos nem queimados. Apenas foram considerados apócrifos, isto é, textos que não eram lidos em público. Foi somente o decreto gelasiano (referente ao papa Gelásio – falecido em 496) que divulgou uma lista de 60 livros apócrifos do Segundo Testamento, ocasião em que se proibiu a leitura, e muitos desses livros apócrifos foram para a fogueira.
Dentro desse contexto está inserida a discussão apresentada em 1 Coríntios 1.10-18. Pela experiência, Paulo chama a atenção para as divergências que têm causado muitos problemas entre as comunidades cristãs. Paulo procura destacar dois fatores importantes para a unidade: o batismo (não a circuncisão) e a teologia da cruz (não a obediência à Lei judaica). Com essas duas questões o apóstolo Paulo prova seus ouvintes, pois eram os pontos de conflito mais visíveis com os judeu-cristãos.
Portanto as divisões entre os cristãos, as rivalidades e os ciúmes internos na igreja não são uma característica de nossos dias. Já desde o começo da história do cristianismo, eles causaram muito sofrimento. Os conflitos internos sempre foram mais prejudiciais para as comunidades do que os conflitos externos. As lutas e as divisões entre os cristãos ao longo da história enfraqueceram mais as igrejas do que qualquer perseguição externa, denunciando a credibilidade de sua pregação.
O apóstolo Paulo menciona em todas as suas cartas a necessidade de conciliar posturas opostas nas comunidades (Rm 14.3). Mas ele não teve muito êxito nessa missão. O principal conflito entre as comunidades judaico-cristãs e gentílico-cristãs nunca se resolveu.
O texto de 1 Coríntios 1.10-18, assim como as duas leituras de Isaías 9.1-4 e Mateus 4.12-23, lembram que, mais do que falar de paz, temos um grande desafio como comunidades cristãs: ajudar as pessoas para que consigam ver que pequenas divergências podem transformar-se em grandes problemas em nossas comunidades. Esse assunto deveria ser parte da formação contínua de lideranças. Pois uma das atribuições da liderança é estabelecer um ambiente de harmonia na comunidade. Isso não significa uniformizar opiniões, e sim zelar para que as diferentes opiniões não venham a cultivar o ódio de uns pelos outros.
Lamentavelmente, o espetáculo de denúncias, acusações e censuras em nossas igrejas ainda não acabou. Exercitar a tolerância e o respeito nos momentos de conflito, ajudar as pessoas a negociar seus problemas, aprender a conviver com quem pensa diferente, sem pretender eliminar uns aos outros, continua sendo uma grande necessidade interna.
Das ciências sociais nós aprendemos que a violência e o ódio não têm vida própria. Eles sempre estão relacionados com algum fator que os alimenta. A violência e o ódio não crescem por si só. Por isso é importante descobrir as causas que geram e alimentam a violência e o ódio.
Não precisamos começar do zero. Esse é um desafio que não podemos realizar sozinhos. Precisamos convidar profissionais da psicologia e recursos humanos para ajudar-nos a prestar atenção aos seus sinais não verbais. A maioria dos conflitos é mediada pela linguagem, mas os gestos não verbais, a postura, o tom de voz, o contato com os olhos são coisas que comunicam e podem nos dizer se as pessoas têm vontade para resolver o conflito ou não. Outro tema é aconselhar as pessoas a dialogar sobre seus problemas sem generalizar. A generalização é perigosa, porque ela acaba atacando todo o indivíduo em vez de algo que ele faz de vez em quando. Um terceiro tema é ajudar as pessoas a administrar a forma de reagir às palavras de outra pessoa. Reagir da maneira correta garante uma troca amigável em vez de uma explosão acalorada.
Em nossa realidade, marcada pela polarização social, econômica e política, surge o chamado para que as igrejas sejam santuários de paz. Isso significa insistir em celebrações como o Culto de Tomé; desenvolver celebrações e reflexões bíblicas sem o discurso bélico, mas que destaquem o Deus do amor apresentado por Jesus; proporcionar um espaço onde as pessoas se sintam seguras, governado por um princípio irrenunciável de jamais sacrificar o respeito e a dignidade do outro; ajudar as pessoas a identificar-se com aqueles a quem elas se opõem e tratar de entender o ponto de vista do outro e a partir daí ajudá-lo a mudar seu coração, conquistando-o para o bem.
Os objetivos de um tal programa de paz seriam:
a) criar referenciais não violentos;
b) fortalecer conexões comunitárias e renovar a esperança;
c) formar consensos para a paz;
d) promover a justiça e o fim das desigualdades sociais;
e) oportunizar vivências plurais para além dos preconceitos e estereótipos;
f) instrumentalizar a resolução não violenta de conflitos;
g) ajudar a lidar com a agressividade, canalizando-a construtivamente;
h) desenvolver uma crítica à cultura de violência;
i) celebrar o Deus da vida.
Existem várias propostas pedagógicas a esse respeito. O guia Aprender a educar para a paz: Instrumental para capacitação de educadores em educação para a paz, de Marcelo Rezende Guimarães, é um material que pode ser encontrado no Google.
A saudação usual de Francisco de Assis era desejar a todas as pessoas “paz e bem”. Pedia a seus seguidores: “Todo aquele que se aproximar, seja amigo ou inimigo, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade”.
Um bando de ladrões escondia-se nos bosques perto do convento de Francisco e saqueava a redondeza e os transeuntes. Movidos pela fome, os ladrões foram ao convento dos frades para pedir comida. Foram atendidos, mas não sem resistência: “Não é justo que demos esmola a essa casta de ladrões que tanto mal faz neste mundo”.
Os frades apresentam a questão a Francisco. Ele sugeriu a seguinte estratégia: levar ao bosque pão e vinho e gritar-lhes: “Irmãos ladrões, venham aqui; somos irmãos e trouxemos-lhes pão e vinho. Comam e bebam”. Digam que vocês vieram em nome de Deus, mas não lhes peçam que abandonem a vida que levam, porque seria pedir demais por um pouco de pão e de vinho; apenas peçam que, ao assaltar, não façam mal nem machuquem as pessoas.
Passadas algumas semanas, Francisco disse: Levem coisa melhor, além de pão e vinho. Levem também queijo e ovos. Eles ficarão ainda mais felizes. Deixem que comam, e bem. Depois de comer, aconselhem o seguinte: “Larguem esta vida de fome e sofrimento; deixem de roubar; convertam-se ao trabalho, e o bom Deus vai providenciar o necessário para o corpo e para a alma”. Os ladrões, comovidos por tanta bondade, deixam aquela vida, e alguns até viraram frades.
Aqui se renuncia ao dedo em riste, acusando e condenando, em nome da aproximação calorosa e da confiança. Francisco busca nos ladrões a energia es- condida neles de ser outra coisa do que ladrões. Supera-se todo maniqueísmo que distribui a bondade de um lado e a maldade do outro. Na verdade, em cada pessoa se escondem um possível ladrão e um possível frade. O afeto pode resgatar o frade escondido dentro do ladrão. Se você quer um mundo melhor, então “seja a mudança que você deseja para o mundo” (Gandhi).
RIBLA. Pablo de Tarso. Petrópolis: Vozes, 1995. v. 20.
RIBLA. Cristianismos Originários (30-70 d.C.). Petrópolis: Vozes, 1995. v. 22.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).