Prédica: 1 Pedro 1.3-9
Autor: Edson Edilio Streck
Data Litúrgica: Domingo Quasimodogeniti
Data da Pregação: 06/04/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — Localização da comunidade
Certas pessoas vivem dias e situações tão desesperadores, que não conseguimos compreender de onde tiram forças para sobreviver e esperança para encarar o futuro. Dias e situações amargos todos nós conhecemos: em nossa vida pessoal, na história de nosso país, no relacionamento entre as pessoas de uma mesma comunidade.
A Igreja Cristã também tem conhecido inúmeros momentos marcados pelo sofrimento: situações em que cristãos sofreram perseguição acompanham a vida de comunidades cristãs em todos os tempos e lugares. Hoje, em alguns países do mundo, grupos de cristãos sofrem por expressarem claramente sua fé. Os anos recentes que vivemos em nosso país não se caracterizam por grandes perseguições a cristãos por parte de autoridades governamentais ou pela sociedade. É importante lembrar que não é necessário que todas as comunidades cristãs, em todos os tempos e lugares, tenham que sofrer para testemunhar sua fé. Quando vivem em tempos de calmarias, entretanto, as comunidades devem estar dispostas a examinar-se e a procurar respostas a perguntas — seriam atrevidas? — como estas: se a Igreja não está encontrando dificuldades para atuar, é porque ela concorda com os planos de quem governa ou porque os governantes procuram cumprir o que a Igreja prega? Se a Igreja vive em paz e harmonia na sociedade em que está inserida, é porque ela se adaptou confortavelmente ao seu meio ou porque a sociedade está organizada de tal forma que vai ao encontro dos anseios por justiça e direito que a Igreja prega?
Se a harmonia de sua vida e pregação é por demais acentuada, a Igreja deve preocupar-se seriamente em questionar sua vida, porque a acomodação é sinal evidente de que algo errado está acontecendo. É sabido que a nossa sociedade, em sua forma de estruturar-se atual-mente, promove uma série imensa de pecados que contradizem a mensagem do Reino de Deus que compete à Igreja pregar. A perícope prevista para o domingo Quasimodogeniti dirige-se a comunidades cristãs que formulam sérias perguntas em relação ao momento que vivem: como viver o presente em seus desafios? Como suportar suas dores? Como enfrentar os problemas que ele nos apresenta?
Tais perguntas estavam presentes no início da Igreja Cristã. Houve pessoas que tentaram respondê-las. Este texto é uma destas tentativas. A 1a Carta de Pedro é dirigida a comunidades cristãs na Ásia Menor. Parte dos cristãos da primeira geração de convertidos já havia morrido. As comunidades passam por dificuldades. Não se trata propriamente de uma perseguição generalizada aos cristãos, mas de discriminação devido ao seu comportamento na sociedade: (…) as perseguições não são promovidas pelas autoridades estatais, mas pela população pagã. Os cristãos são caluniados, insultados e levados aos tribunais (…). São criticados por não participar mais na conduta pagã (E. Lohse, p. 227). Tal situação, caracterizada por provações, motiva a redação desta carta às comunidades atingidas.
II — Localização do texto
As palavras contidas em 1 Pe 1.3-9 lançam luz sobre o presente. Interpretam-no a partir de um fato que marcou o passado e, como tal, determina o presente: a ressurreição de Jesus, obra de Deus. Deus o ressuscitou dentre os mortos. Deus tem, pois, o poder para nos fazer renascer. A partir deste fato do passado — a ressurreição de Jesus — nosso presente é visto numa nova dimensão.
Esta perícope lança luz sobre o presente. Interpreta-o a partir de um fato que marca o futuro e, como tal, determina o presente: a herança que Deus reserva aos seus já está preparada. Deus tem, pois, o poder para nos fazer herdar seu Reino. A partir deste futuro — a herança nos céus — nosso presente é visto sob nova perspectiva.
O presente é alterado por Deus. Nele vivemos em tensão: entre promessa e seu cumprimento. Quem vive nesta tensão não vê o presente apenas como se fosse uma catástrofe final, mas como provação passageira. À luz desta promessa e de seu cumprimento, os problemas do presente são colocados em seus devidos lugares e são enfocados nas suas reais dimensões. Quem continua preso aos problemas que vive no presente, ainda não se alimentou deste texto. Não o compreendeu. Não pode pregá-lo. Quem jamais foi contestado em suas palavras e ações, como cristão, deve examinar-se à luz deste texto para localizar-se no plano de Deus.
O texto mostra que o cristão não só tem força para suportar a dor, mas também tem motivo para louvar a Deus. É evidente a tensão entre viver em provação e louvar a Deus.
1. Porque Deus age… nós louvamos (v. 3a)
O convite ao louvor é formulado no início desta carta. Quem louva a Deus não o faz por não levar a sério o momento presente. Quem louva a Deus não o faz por estar cego aos problemas que o cercam ou por ter nas vistas somente um futuro glorioso e triunfante. Estas são formas deturpadas de louvor. Deus não quer que sua igreja fuja dos problemas, que viva no mundo da lua. Deseja que ela veja com outros olhos os conflitos do presente.
O mundo, por si só, não dá motivo para o louvor. A fé, por mais piedosa que possa parecer, não consegue criar, por si só, motivo para louvar a Deus. O louvor, do qual a Bíblia fala, tem sempre um motivo concreto. A igreja, por estar fundamentada em ações concretas de Deus, tem o louvor a Deus como algo que lhe é inerente. Comunidade cristã que não louva a Deus deve examinar seu fundamento e sua meta. O mesmo vale para todo o cristão.
2. Porque Deus age… nós vivemos (v. 3b)
Um bebê tem participação mínima no sucesso do seu nascimento. O mesmo vale para o nosso renascer: consegui-lo não se resume à nossa vontade e à nossa força. Não somos nós que temos que nos fazer renascer. Deus o faz, Deus o fez: antes de nosso próprio nascimento, o fundamento para uma vida nova já estava lançado, na ressurreição de Jesus.
A nova vida que Deus cria não surge como por um passe de mágica, não se localiza num mundo sobrenatural, não garante a imortalidade. Dor e provação permanecem. Mas tudo que antes era marcado pela morte passa a ser encarado sob outra ótica: com esperança, pela vitória alcançada por Deus em Cristo. Ser renascido por Deus é poder descobrir que o decisivo não está em transformar-se a si, mas em permitir que Deus transforme as pessoas: por amor, em proteção, ele as toma como parceiros de diálogo e companheiros de luta. Declarando-as seus herdeiros, garante-lhes a vitória final e lhes dá futuro. Importante é descobrir que Deus não nos exclui de seus planos. Ele não passa ao largo por nós, mas nos atinge e direciona. É dele a nossa conver-são.
A morte não é o limite para o poder de Deus. Ao fazer romper o túmulo que segurava Jesus, Deus rompe todos os túmulos. Este é o momento mais claro que aponta para a total impossibilidade de nos salvarmos a nós mesmos e que indica para a ação de Deus a nosso fa-vor. A mão de Deus, que se estendeu contra o túmulo de Jesus, estende-se para nós. Possibilita nova vida.
3. Porque Deus age… nós temos esperança (v. 3c)
Onde não há esperança, reina a morte. Por isso a esperança é parte essencial da vida. A esperança do cristão não depende do próprio esforço e piedade, mas nasce a partir da ação e da promessa de Deus. Faz com que se cantem hinos de páscoa em meio ao sofrimento. Não permite, contudo, que o medo seja ignorado: ele apenas é colocado em seu devido lugar. A esperança impulsiona: não nos leva à terra prometida, mas dá forças para suportar e enfrentar o deserto (cf. R. Müller, p. 204).
Convém que pensemos sobre nossas esperanças: seu conteúdo, sua duração, seu fundamento. Convém lembrar que como cristãos não só temos esperança, mas somos esperança para outros. Repartir com outras pessoas a esperança que Deus nos dá nos compromete a uma vida coerente ao que confessamos e pregamos.
4. Porque Deus age… somos seus herdeiros (v. 4)
Uma herança, como nós a conhecemos, geralmente é colocada em testamento, ainda não se encontra totalmente disponível ao futuro herdeiro. Não surge por grandes méritos do herdeiro, mas depende exclusivamente da graça de quem a dá. Não surge ao acaso: alguém torna-se herdeiro por pertencer, através de nascimento ou adoção, a uma família ou a um círculo de relacionamento. Tal é a herança que Deus promete a nós: nós lhe pertencemos, pelo batismo, como filhos nas mãos do pai. Não somos dignos e merecedores da herança que ele reserva para nós. Ainda não a possuímos, mas somos atraídos e alimentados por ela. Vivemos da esperança de que se cumpra esta promessa de uma herança que é impossível descrever com palavras humanas. Esta herança nos compromete a vivermos como seus filhos.
5. Porque Deus age… nós somos guardados, temos fé (v. 5)
Deus é quem nos guarda, pelo seu poder. Quem tem fé, está nas mãos dele. Nem mesmo a fé torna-se nossa ação isolada, mas é uma resposta à proteção que Deus nos dá. Quem tem fé, vê o mundo em que vive com a distância necessária: não sucumbe nele, não se perde nele, não se ilude por ele, nele não fica aprisionado. Quem tem fé, mantém a distância necessária do tempo presente — não para afastar-se ou fugir — mas para, conhecendo-o em suas reais dimensões, enfrentá-lo como pessoa liberta por Deus.
6. Porque Deus age… nós resistimos (v. 6)
O texto não se refere às nossas provações particulares, mas às provações que passamos por Cristo. Fala a nós como membros da comunidade que sofre. Convém perguntar: quando e por quais motivos sofremos, no presente, como cristãos em meio à sociedade?
Pessoas e comunidades que sofrem por assumir uma postura baseada na Palavra de Deus conseguem enfrentar sofrimento, medo e morte. Ao longo de sua história, a igreja conseguiu provar a veracidade desta afirmação. Deus não embeleza o sofrimento, não o anula nem lhe tira a dor. Mas dá a fé, para que o sofrimento seja vencido. Deus não promete poupar sua Igreja de crises, mas abre caminhos para que nestes momentos ela encontre saída. O sofrimento, do qual fala o texto, não é encarado como atitude a ser assumida passivamente. Assim costumamos vê-lo e acabamos sofrendo de cabeça baixa. O sofrimento por Cristo, entretanto, é aceito conscientemente. E Deus nos levanta a cabeça para a resistência ativa.
7. Porque Deus age… nós vencemos (v. 7)
O ouro que passa pelo fogo é purificado. Percebe-se, então, o que é ouro puro e o que não passa de barro ou outro metal. Este exemplo é muito usado em épocas de perseguição para falar da pureza da fé.
O texto não diz que a fé, para ser pura, tenha que passar e se desenvolver pelo fogo. Lembra que na provação se constata o que é fé e o que parecia ser fé. Que o ouro é ouro, percebe-se pela ação do fogo. Que a fé é fé, percebe-se na hora da crise. A partir desta compreensão, o cristão que enfrenta provações na sociedade, por causa de sua fé, não as encara como destino, mas como forma consciente de engajar-se no presente para transformá-lo. Sabe que, também em crises e dor, tudo está sob o controle e o domínio de Deus. Ter tal fé — mais preciosa que o ouro — não é motivo para vanglória e autoglorificaçâo, mas força para continuar a serviço do Reino de Deus, para a sua glória.
8. Porque Deus age… nós amamos e cremos (v. 8a, b)
A fé dos cristãos, a quem originalmente se dirigiu esta carta, estava ameaçada não só por provações, mas pela distância que crescia entre eles e Jesus. A distância, em tempo e espaço, coloca a fé a perigo. Neste sentido a nossa distância em relação a Jesus é infinitamente maior. Ao comentar este distanciamento, o autor destas palavras nos presta auxílio inestimável.
Sabemos que não basta vivermos do ensino de Jesus: é necessário termos comunhão com ele. E nós a temos — em seu Espírito e de forma concreta — quando vivemos em comunhão com as pessoas visíveis e palpáveis que, pelo viver e pregar de Jesus, passamos a identificar e a amar como irmãs e irmãos.
9. Porque Deus age … nós nos alegramos, somos salvos (v. 8c, 9)
O texto não fala só de sofrimento. Nele se destaca a alegria. Ela está presente, apesar da dor. Ser alegre é assumir a postura e a expressão de quem se sente renascido por Deus. É sentir brotar a certeza de uma alegria final e total que se antecipa em pequenos detalhes. Do futuro, ela determina o presente.
A salvação das almas, da qual o texto fala, não deve ser vista na compreensão grega dualista: trata-se da salvação da pessoa toda e não apenas de uma parte. Esta é a compreensão bíblica da salvação das almas. Salvação atinge, além disso, a totalidade da criação. O aspecto universal da salvação também deve ser observado, pois a meta da fé não é a bem-aventurança de alguns indivíduos, de raros eleitos.
10. Porque Deus age… nós agimos (vv. 3-9)
Esta perícope é um convite ao louvor. Temos motivos! Deus é o Pai (1.3). Seu é o poder (1.5; 5.11),Nosso louvor fundamenta-se na ação de Deus. Porque ele age… nós agimos. Como cristãos, temos chão firme para pisar. Não somos joguete no desenrolar dos fatos. Não somos como bola que é chutada para todos os lados pelo destino ou por circunstâncias. Temos Deus: nele podemos confiar. Olhando para trás, vemos o túmulo vazio de Jesus determinando a nossa vida. Olhando para a frente, vemos o amor com que Deus nos acolhe e espera. E assim ganhamos força para viver o presente. Por termos uma meta, sabemos que estamos a caminho e encaramos as dificuldades que surgirem como obstáculos passageiros que são.
O Deus da páscoa não é Deus de acomodados, resignados, amedrontados e de gente sem perspectiva. Com seu poder enfrentamos tudo o que causa dor e provoca a morte. Pela força que vem dele e nos impulsiona, ele merece nosso louvor e nossa ação.
III — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Deus e Pai, estamos saindo da primeira semana após a páscoa. Ouvimos, há tão poucos dias, que tu destruíste o poder da morte, que tu estás conosco para nos fortalecer. Temos nos alimentado destas palavras que dão vida. Mas, com o correr das horas e com o passar dos dias, temos retornado, em momentos, a agir como se a páscoa não fosse promessa de vida nova. Nosso louvor tem sido choroso. Nosso comportamento revela pouca esperança por um futuro ao teu lado. Nossa resistência nas provações tem sido fraca. Em vários momentos nossa alegria e fé sumiram. Nós te trazemos todos estes sinais de nosso fracasso, porque sabemos que tu tens o poder para nos reerguer. Na esperança de que teu perdão nos fortaleça para um novo início, em ti, oramos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, contigo está o amor e o poder. Nós te agradecemos por colocares tantos sinais de vida em nosso mundo. Alimenta continuamente a tua Igreja com a tua Palavra, para que em todos os lugares e momentos possamos ser portadores da mensagem do teu amor. Dá-nos a alegria que brota da páscoa, para que nossas palavras, pensamentos e ações refutam a certeza da tua vitória sobre a morte. Em Cristo. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Deus enche a nossa vida com motivos que deveriam nos trazer alegria e fazer brotar em nós o louvor. A palavra deste domingo aponta alguns: não dependemos de nós para viver, para ter fé, para vencer… O amor de Deus que nos resgata de uma vida sem esperança, triste e sem perspectiva, nos compromete a sermos agentes de seu amor: não escondendo nossa fé, dando sinais de nossa esperança, tornando concreto nosso amor, resistindo ao poder da morte que nos faz sofrer… Que Deus continue fortalecendo sua igreja, todos os cristãos, para levar uma vida engajada e comprometida apenas com o Reino de Deus, mesmo que assumi-lo cause dores momentâneas. Interceder pelos que governam: para que a Palavra de Deus guie seus atos para a promoção da justiça e do direito. Interceder por todas as comunidades e famílias cristãs: por uma vida ativa, em louvor e alegria, movida pela certeza da presença constante de Deus e pela garantia de sua vitória. Interceder por todos os que vivem sem perspectiva de vida, sem esperança por futuro (citar casos locais).
IV — Bibliografia
– DIETRICH, B. Meditação sobre 1 Pedro 1.3-9. In: Proclamar Libertação, v. 3, São Leopoldo, 1978.
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento, 3a ed., São Leopoldo, 1980.
– MÜLLER, R. Meditação sobre 1 Pedro 1.3-9. In: Für Arbeit und Besinnung, Stuttgart, 32(6): 198-204, 1978.
– RUTHSATZ, R. Meditação sobre 1 Pedro 1.3-9. In: Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, 67(2):181-4,1978.
– VOGELBUSCH, G. Prédica sobre 1 Pedro 1.3-9. In: Homiletische Monatshefte, Gottingen, 1980.
– VOIGT, G. Meditação sobre 1 Pedro 1.3-9. In: __. Die neue Kreatur, 3a ed., Gottingen, 1977.