Prédica: 1 Reis 19.9-13a
Leituras: Mateus 14.22-33 e Romanos 9.1-5
Autor: Acyr Raymann
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 07/08/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1. As leituras do dia
Rm 9.1-5 – O apóstolo Paulo é fascinado por seu amor a Cristo e também por seu amor para com os irmãos judeus. Não há maior amor do que este, ou seja, de alguém dar a sua própria vida em favor de outro. Os israelitas receberam essa grande dádiva de Deus, essa privilegiada herança divina de ser povo de Deus e, entretanto, rejeitaram Cristo. Paulo fala de Israel, mas fala sem rancor, apesar de trazer no corpo as marcas da maldade de Israel (cf. 2Co 11.24) e, em breve, seria novamente exposto ao ódio fanático “dos rebeldes que vivem na Judéia” (15.31). O apóstolo fala não com a malícia de alguém que se alegra com o destino fatal de um povo que o lançou fora, uma espécie de Schadenfreude. Não, Paulo fala com afeto, mas com grande tristeza, dor no coração, desejando até separar-se de Cristo por amor a seus irmãos separados. Não é a grandeza anterior de Israel, mas a grandeza dos dons e dádivas de Deus a Israel, dissipados agora pela desobediência de Israel, que leva Paulo a prantear por esse povo. O desvio é incompreensível. A começar pelo nome “israelita”, nome sagrado, que os distingue como receptores da graça e promessa de Deus, até ser um povo a quem Deus se revelara de forma exclusiva por meio da manifestação da sua glória no culto, na palavra, nas promessas, começando nos patriarcas e estendendo-se até a manifestação visível, na plenitude dos tempos, na pessoa e obra do Messias, o Cristo, Deus bendito para sempre.
Somos povo de Deus, que conhece as promessas de Deus, que se cumpriram. Sem dúvida, temos fascínio e entusiasmo pela mensagem da redenção em Cristo. Apesar disso, muitos são os que se afastam, abandonando e até mesmo rejeitando essa fé. Não poucos pastores, pais e amigos ecoam hoje o sentimento do apóstolo: “Eu mesmo desejaria ser anátema, ser separado de Cristo por amor de meus irmãos, minha filha, meu amigo”.
Mt 14.22-33 – A única criatura que pode andar sobre as águas é a aranha aquática. O ser humano não pode. Jesus pode. O milagre é fenomenal. Jesus não apenas pode andar sobre as águas, como as ondas se encrespam ao seu andar. Este é um milagre composto de dois atos, cada um de seis versículos: um centrado em Jesus (v. 22-27), o outro centrado na dicotômica espiritualidade de Pedro (v. 28-33). O texto é um retrato de Cristo e sua igreja. No primeiro ato, Cristo aborda a sua aflita e perturbada igreja e lhe diz: “Tende bom ânimo! Sou eu! Não temais!”. No segundo ato, um confiante discípulo e um poderoso Senhor fazem o impossível: dominam os elementos e, por um breve instante, dão à igreja um vislumbre das suas possibilidades não-terrenas sobre a terra. Mas, na segunda cena do segundo ato, o confiante torna-se desconfiante, afunda e se exaspera. Só lhe resta clamar ao Senhor. A salvação vem das mãos estendidas de Jesus. O Deus que cria é o mesmo Deus que tem controle sobre a natureza criada. O centro absoluto desse episódio é a palavra de Jesus “Sou eu!”. Nesse milagre, essas palavras de Jesus são o centro exato da narrativa. A expressão de identificação de Jesus “Sou eu!” liga os dois atos, ou seja, Ele é a conexão entre Deus e igreja no mundo.
2. 1 Rs 19.9-13a: Contexto e texto
Este capítulo narra mais um ciclo dos encontros e desencontros do profeta Elias com o frágil rei Acabe e a despótica esposa desse, Jezabel. O contexto inicia no capítulo 18 com o confronto entre o profeta e os líderes políticos de Israel na questão do culto a Baal. A grande “dieta” acontece no monte Carmelo, uma cadeia de montanhas que se estende de leste a oeste por cerca de 32 km, beirando o vale de Jezreel e terminando num promontório, com larga vista para o mar Mediterrâneo. A assistência é variada, envolvendo “todo o Israel”, “os 450 profetas de Baal” e “os 400 profetas do poste-ídolo [a deusa Asherah], que comem da mesa de Jezabel” (18.19). A narrativa, repleta de ironia e cinismo, culmina com a manifestação epifânica de que o “Senhor é o Deus”. O culto é restaurado e os profetas ateus são aniquilados, no cumprimento de Dt 13.12-18 e 20.12-13. O episódio, vivenciado por Acabe, tem conseqüências para Elias. O profeta não teme o rei; mas teme a rainha. Foge dela e vai para Berseba, cerca de 500 km ao sul, dali para o deserto e, então, mais 40 dias e noites até chegar a Horebe, o monte de Deus (v. 8). Nosso texto é a seqüência desse episódio.
3. Texto
v. 9: O estado emocional, físico e espiritual de Elias é comovente. Não soube conviver com a vitória no monte Carmelo. O profeta-herói entra em depressão. Pensamentos negativos sobre todo o episódio o abatem. A idéia da perseguição o amedronta. A ameaça de morte o apavora. A onda parece maior do que a fé (cf. o evangelho). O que fazer? O que faz o pastor quando isso lhe acontece no ministério? O que faz o congregado cristão quando enfrenta situações similares de perigo para si e para sua fé? Elias foge, mas foge para um refúgio seguro. Horebe é o “monte de Deus”. É lá que tudo começou. Elias precisa de ajuda e vai à fonte certa. Foi ali que as coisas aconteceram para o grande líder Moisés. Para Elias, Moisés é o arquétipo do sucesso da missão de Deus.
Ao chegar no Horebe, Elias vai à caverna (com artigo definido), o que estabelece a conexão com o aparecimento de Deus a Moisés, descrito em Êx 33.3 ss. Ali lhe vem a palavra do Senhor: “Que fazes aqui, Elias?”. Quando Deus pergunta, Ele não espera resposta. Deus sabe, conhece. Foi assim desde o começo (Gn 3.9; 4.6, 9,10). O objetivo é levar o ser humano à análise e reflexão. Que sentido tem um profeta no deserto? Na caverna? É ali o seu lugar?
v. 10: A reação de Elias à palavra de Deus é de autopiedade. Tem pena de si mesmo. “Tenho sido zeloso”, diz Elias. “Fiz tudo o que pude”; “Tenho sido fiel”; “Escrevo os melhores sermões” – mas ninguém reconhece… O zelo de Elias relembra o zelo de Finéias em Nm 25.11, pondo fim à prostituição dos filhos de Israel com as filhas de Moabe. Mas o zelo de Finéias estava em harmonia com o zelo de Deus (v. 13). Enquanto Finéias recebera a promessa de um sacerdócio permanente por seu zelo, Elias vira muito pouco fruto no seu zelo contra os adoradores de Baal, que até mesmo procuravam tirar-lhe a vida. O fato é que Elias se sente só e sua autopiedade o cega, impedindo-o de lembrar-se até do mordomo de Acabe, Obadias, e seu zelo para com os cem profetas do Senhor (18.3 ss.).
v. 11-12: Embora Elias se compare aos grandes homens de Deus (e tal fato não precisa ser negado), a sua missão é diferente da de Finéias ou Moisés. A substância e o estilo são parecidos, mas as circunstâncias históricas são diferentes e o motivo dos servos de Deus é outro. No caso de Moisés, foi seu ardente e descomprometido amor para com o bem-estar do povo. O apóstolo Paulo está pronto a sujeitar-se à separação de Cristo para o bem-estar espiritual de Israel. Mas Elias quer ver resultados de seu próprio trabalho. Quer ver conversões em massa. Quer ver números. Estatística é o que importa? Mas a estatística de Deus é muito diferente da estatística dos homens. O verdadeiro Israel não é visto pelos olhos; a igreja de Deus é invisível.
No Sinai, no tempo de Moisés, Deus estabelecera a aliança com seu povo e o momento foi marcado pelo testemunho de fenômenos naturais. Biblicamente, o vento, o terremoto e o fogo (cf. 2Sm 15.1) são anúncios da aproximação da teofania (Êx 19.16, 18; Sl 18.7-15). Foram um dramático prelúdio para o “cicio tranqüilo e suave” – um silêncio tão intenso que poderia ser ouvido.
v. 13: Assim como Moisés cobrira seu rosto por temer olhar para Deus na sarça ardente (Êx 3.6), e como fizeram os serafins em Is 6, da mesma forma Elias envolve o rosto no seu manto. A presença do Santo amedronta o ser humano. Mas quando Deus chama, é porque Ele se humaniza, torna-se como um de nós e nos aceita como nós somos. Elias não precisa cobrir o rosto para sair da caverna para ver Deus.
4. Sugestões homiléticas
a) A grandeza da tarefa e a responsabilidade exigida em relação a ela podem levar o líder do povo de Deus a um sentimento de impotência e fracasso. Quem dos servos de Deus não se identifica, vez por outra, com Elias, procurando por refúgio, fugindo de ameaças e perigos? A exaustão física, a solidão e o sentimento de fracasso atingem níveis maiores quando agregados à experiência de culpa por fugir da missão de Deus.
b) Na tarefa da sua missão no mundo por parte dos seus filhos, Deus não os isenta do confronto com toda sorte de situações, inclusive ameaças e desafios. Jesus envia seus discípulos sozinhos ao mar, mas não impede que se defrontem com ameaças e perigos. A igreja, pastores, líderes e leigos cristãos nunca estão longe da aflição, da turbulência e eventual perseguição. Se for necessário ir em busca de ajuda, que vamos à fonte correta onde Deus está.
c) Tempestade, terremotos, fogo são fenômenos da natureza que estão no controle de Deus. O Criador é maior do que a criatura. Embora pudesse aniquilar os inimigos e pulverizar o seu poderio, Deus permite que eles persigam os cristãos e criem obstáculos à marcha do evangelho. Muitas vezes, somos tentados a aplicar métodos enérgicos no trabalho das congregações, no que somos secundados, não raramente, por membros bem-intencionados que, a seu modo, dizem: só com boas maneiras não se consegue muito; o povo deve ser obrigado a sujeitar-se, deve sentir mão forte, caso contrário, o trabalho não terá êxito. Se for assim, estaremos dando ao evangelho muletas de lei.
d) Deus quer falar pelo cicio tranqüilo e suave. Esta voz se ouviu através do Antigo Testamento. Era a voz da promessa da vinda de Jesus Cristo. Nesta promessa, o povo de Deus se alegrou, vivendo na esperança da sua redenção em Cristo. O “cicio tranqüilo e suave” apontava para aquele que é “maior do que Elias”. Sobre ele o Deus trovejou a sua ira para que nós, livres dela, pudéssemos recorrer ao abraço de Cristo, que diz: “Tem bom ânimo! Sou eu! Não temas!”. Com estas palavras os fantasmas que imaginamos desaparecem, Deus é real e está presente. Em Cristo Deus nos estende a sua mão e nos revela o seu bondoso rosto.
Bibliografia
COGAN, Mordecai. 1 Kings: A New Translation with Introduction and Commentary. In: The Anchor Bible. New York: Doubleday, 2001.
HUMMEL, Horace D. The Word Becoming Flesh: an Introduction to the Origin, Purpose, and Meaning of the Old Testament. St. Louis: Concordia, 1979.
KEIL, C. F. e DELITZSCH, F. Biblical Commentary on the Old Testament: the Books of the Kings. Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Company, 1950.
RICE, Gene. Nations Under God: A Commentary on the Book of 1 Kings. Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans Publishing Company, 1990.