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Viver a fé na verdade

 

Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: 2 Tessalonicenses 2.1-5, 13-17
Leituras: Jó 19.23-27a e Lucas 20.27-38
Autoria: Clarise Ilani Wagner Holzschuh
Data Litúrgica: 25º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 06/11/2016

 

1. Introdução

Vigésimo Quinto Domingo após Pentecostes, fim do Ano Litúrgico. É tempo de refletir sobre as últimas coisas, sobre o fim. Os textos bíblicos indicados para este tempo falam de ressurreição, de nova vida e fazem indicações de como viver para alcançar a ressurreição.

O texto da pregação, 2 Tessalonicenses 2.1-5,13-17, chama a atenção das pessoas da comunidade cristã de Tessalônica para que não se deixem levar por doutrinas falsas e conclama-as para lembrar-se dos ensinamentos dos apóstolos, que são verdadeiros.

A leitura complementar do Antigo Testamento lembra a saga de Jó 19.2327a. A perícope indicada revela a profunda esperança de Jó no Deus vivo e a certeza de que o verá pessoalmente.

O evangelho do dia é de Lucas 20.27-38, no qual os saduceus interrogam Jesus acerca da ressurreição. A resposta de Jesus é amplamente desenvolvida, e o desfecho declara: Deus é Deus de vivos, pois para ele todos vivem.

O tema comum das três leituras é a esperança que vai além desta vida. E essa esperança se fortalece e se mantém pela fé no Deus da Vida, que atua através de seus filhos e filhas já agora em ações de justiça e amor.

 

2. Exegese

A delimitação do texto indicado contém o objetivo central da carta: “Quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, não vos perturbeis como se o dia do Senhor já estivesse próximo. Não vos deixeis enganar!” (cf. 2Ts 2.1-2).

2 Tessalonicenses 2.1-12 apresenta um cenário apocalíptico. Havia muitas interrogações e preocupações na comunidade, que estranhava a demora da chegada do dia do Senhor, conforme foi escrito na primeira carta (cf. 1Ts 4.13-5.11).

Essa diferença entre a temática da parusia nas cartas (1Ts e 2Ts) é uma das justificativas para suspeitar que 2 Tessalonicenses não foi escrita por Paulo. 1 Tessalonicenses 4.13-5.11 anuncia a súbita e imprevisível vinda do Senhor. 2 Tessalonicenses 2.1-12 declara que sinais devem acontecer (apostasia) antes da vinda do Senhor (parusia). Paulo nunca fez referência a esses sinais ali descritos.

Seja como for, o contexto da Segunda Carta aos Tessalonicenses reflete uma situação posterior à primeira, principalmente no que se refere à expectativa da parusia. (…) É para esclarecer dúvidas sobre a demora da parusia que se escreve essa segunda carta. Seus autores querem ajudar as comunidades a sobreviver e a se manter firmes na esperança (Curso de Bíblia, p. 28).

Tessalônica era uma cidade marcada pelo tumulto e conchavos políticos. Também foi assolada por guerras. Por sua situação geográfica privilegiada, com um grande porto, sempre foi alvo da cobiça imperial. Em 268 a.C. foi tomada pelos romanos, que a urbanizaram, e em 146 a.C., tornou-se capital da Macedônia. Sua fidelidade a Roma impedia qualquer insubordinação. Era reconhecida como “cidade livre”. Não tinha guarnição militar, mas prestava culto a César e a Roma, que eram divinizados. Quem se submetia ao sistema era premiado com postos como funcionários públicos, comerciantes, industriais. Os demais eram escravizados ou simplesmente deixados à margem.

A comunidade de 2 Tessalonicenses é composta por pessoas que resistem a esse sistema e sofrem perseguição (1.4), opressão (1.6) e injustiça (2.12); mas permanecem esperançosas, perseverando na fé e na prática do bem. Uma característica importante da comunidade vemos a partir de 2 Tessalonicenses 3.6-15, onde se tematizam o trabalho e o sistema alternativo de economia. A comunidade é composta … de uma maioria de pessoas de baixo nível econômico, pois devem trabalhar para viver. São pobres sem muita pretensão para subir na vida, ganhando o pão com esforço. Seriam diaristas, artesãos, num sistema de colaboração familiar e sem acúmulo, numa relação direta entre produtores e consumidores. Enfim, é um grupo experimentando uma nova alternativa, num grande centro urbano, sob a exploração e a injustiça (SILVA, p. 34).

Uma comunidade assim só podia representar um grupo de oposição dentro do sistema econômico e social. Esse é acometido por injustiça, sofrimento e opressão; mas é uma resistência ativa de quem se fortalece no amor (1.3), no trabalho (1.11) e nas realizações em vista do bem (2.17; 3.4).

Por volta do ano 51 d.C., as assembleias (convocação do povo) perderam espaço e poder. Agora, por volta do ano 80 d.C. (estimativa de data em que a carta foi escrita), elas retomam força entre o povo e representam uma ameaça inquietante aos esquemas sociais. A comunidade fortalece-se em relacionamentos de igualdade, chamando-se de irmãos, alicerçados na confiança (3.4) e no amor (1.10), revelando força profética (2.2), propondo um novo jeito de viver.

Em meio ao sofrimento, a linguagem apocalíptica revela-se como meio mais seguro de comunicação e força para quem sofre. Diante da realidade social em Tessalônica, facilmente podemos identificar os personagens. É o imperador de Roma que passava por deus na cidade. A impiedade é a desordem causada pela falta de uma lei que organize as coisas. Nessa situação, a injustiça impera.

A luta política aparece forte no início do capítulo 2. O termo parusia no mundo grego significava a volta vitoriosa do rei de uma batalha, trazendo os despojos da guerra, aclamado por seus súditos. Aqui é aclamada a vinda (parusia) de Jesus, o Senhor (título também conferido ao rei).

A estrutura dominante do império romano era mantida por uma ideologia que unificava religião, política, cultura, artes e tudo mais. Era chamada de pax deorum (a paz dos deuses). A comunidade cristã desmascara essa ideologia como obra de Satanás. O sistema deve ser destruído porque é injusto e opressor, só levando à morte. A falta de fé (3.2) leva-os à perversidade, pois não creram na verdade (2.10,12). Venerando tantos deuses, vivem uma farsa, já que de fato não conhecem a Deus e não creem no Evangelho (1.8). O imperador quer passar por Deus, mas é um adversário, e seus portentos, milagres e prodígios são mentirosos (2.9) porque difundem a fé na mentira (2.11). Com toda a sua ideologia seduz o povo (2.11), mas para a prática da injustiça (2.10) (SILVA, p. 43).

A igreja dos tessalonicenses é uma comunidade de fé. Essa fé é que mantém sua resistência e a luta pela vida. É a fé na verdade (2.13), portanto esclarecida, segura e inabalável em sua fonte, que é o Senhor. É a fé que dá sentido às atividades. Suas ações espelham-se em Deus, que os amou (2.6) e provoca o amor mútuo. A fé na verdade leva ao amor de verdade.

A comunidade cristã de Tessalônica tem consciência clara de sua nova missão para formar um novo jeito de viver. É uma vocação dada por Deus, que os escolheu desde o princípio (2.13). A ideologia romana com sua força militar cairá. As novas comunidades, com sua intenção divina desde o começo, durarão para sempre com a eterna consolação de Deus (2.16). A derrota de todo poder será no dia do Senhor (2.2). A apocalíptica cria uma ideia de força e entusiasmo que supera todos os limites. Proporciona aos cristãos uma nova e verdadeira paz na graça de Deus e um ambiente de esperança e perseverança diante de qualquer dificuldade.

 

3. Meditação

Hoje em dia, a maioria das pessoas não está mais preocupada com a salvação. Elas também não se preocupam em ter um objetivo na vida. Vão levando “de barriga”. Vai-se atrás do que dá mais vantagem pessoal, até que apareça algo melhor. Vai-se pulando de galho em galho, sem saber para onde vai ou aonde quer chegar. Esses são comentários que ouvimos em muitas conversas em grupos de família e rodas de amigos. Como diz o dito popular: “Para quem não sabe aonde quer chegar, qualquer caminho serve”.

Que prato cheio para a ideologia do império romano e para a “ideologia capitalista” dos dias de hoje! Tem muita gente vestindo-se com autoridade da palavra de Deus, mas trabalhando pela ideologia que oprime, subjuga e persegue, separando entre abençoados e malditos, entre quem tem fé para receber dos milagres de Deus e quem não tem, entre quem merece e quem não é digno. Funcionários públicos da fé, comércio e indústria que promovem a fé; por outro lado, escravos que fazem o sistema prevalecer. Quem não se submete não tem nenhuma chance de usufruir de qualquer direito. E temos aí a “bancada evangélica” no Congresso Nacional – em defesa da família e da moral. Você já se perguntou que tipo de família constitui? Que moral defende?

2 Tessalonicenses 2.1-5,13-17 vem iluminar nosso caminho na busca pela verdade de Deus. Não se enganem ou não se deixem enganar (2.3), diz a palavra. Para que não haja engano, é preciso conhecimento, não só da palavra de Deus, mas também da realidade em que se vive, do objetivo de vida própria, da família, da comunidade na qual se vive a fé ativa.

Não nos cabe procurar e identificar apocalipticamente sinais dos tempos ou separar o bem e o mal, mas nos compete conhecer a Deus através da sua palavra e da convivência na comunidade. Quanto melhor o autoconhecimento e o reconhecer-se no evangelho, maior clareza haverá no seguimento a Jesus Cristo.

Se alguém te perguntasse: Qual é o teu objetivo na vida?, saberias dizer de imediato? E a comunidade onde buscas o fortalecimento da fé na verdade: qual o objetivo da tua comunidade de fé? Será que todas as pessoas que ali congregam têm o objetivo de proclamar o evangelho em palavra e ação de fato e verdade?

O que se percebe atualmente é uma inversão de valores. Essa inversão é sutil e não é percebida pelas pessoas escravizadas pelo sistema econômico, social e político de nosso país e, quiçá, do mundo. A ideologia do sistema sociopolítico-econômico é reproduzida dentro das comunidades em vez de a comunidade levar o novo jeito de viver a fé e a verdade para dentro da sociedade. Por isso, também dentro das comunidades, tem que ser identificado “o perverso” – quem é, ou quem são, na sociedade ou mesmo na comunidade, aquela pessoa ou aquele grupo que manda e desmanda, mas que impede a vivência real do evangelho de Jesus Cristo.

É hora de começar a se preocupar mais com o que se faz em nome da fé. É hora de buscar a fé na verdade que se revela no amor do Deus trino: nosso Pai (v. 16), identifi cado por seu amor à comunidade; nosso Senhor Jesus Cristo (v. 14 e 16); o Espírito, que age na santificação (v. 13).

Esta segunda parte do texto (2Ts 2.13-17) só pode ser pronunciada por quem ama de fato a sua comunidade. Três virtudes prevalecem: fé, esperança e boa obra. Encontra-se fé na verdade como predisposição básica para a salvação; a boa esperança pela graça como dom de Deus; e tudo o fazem e dizem em vista do bem, como confirmação da nova forma de viver.

A unidade da comunidade dá-se pela relação amorosa de Deus com os seus e desses entre si. O amor é agape – amor de Deus, amor divino, amor que se entrega verdadeiramente em ações de bem-querer ao próximo, amor eterno. Estabelece-se uma relação familiar na comunidade que busca uma vida nova na partilha, de fato e verdade, não só da fé, mas também do trabalho e dos bens materiais (o que será descrito pela carta no capítulo 3).

Para que se realize a obra da salvação, já iniciada, é necessário continuar firme e perseverar. Mesmo que esse novo jeito de viver cause opressão, sofrimento, injustiça, porque vai contra a ideologia reinante. A boa-nova torna-se efetiva e cumpre a sua função criando nova mentalidade, transformando ideologias e levando a ações diferentes com novas estruturas sociais.

É preciso ter bem claro aonde se quer chegar para poder enfrentar injustiça e dor, levando o amor de Deus.

 

4. Imagens para a prédica

Numa das paróquias onde atuamos, havia uma aparente dificuldade na compreensão do envio do dízimo por parte dos integrantes do presbitério de uma das comunidades. A questão foi abordada em reunião própria para o assunto, causando extenso diálogo, por vezes exacerbado. No fim da reunião, as despedidas foram amistosas. Poucos dias depois, um líder que não pôde estar na referida reunião veio até nossa casa e declarou: “Eu vim aqui dizer que os pastores têm que se preocupar com a parte espiritual da comunidade. Do dinheiro cuida a diretoria”.

Essa é uma ideia muito presente em muitas comunidades. Ela revela a transposição do sistema econômico, político e social para dentro da administração e planejamento das comunidades e que o evangelho não é acolhido para esclarecer a verdade.

 

5. Subsídios litúrgicos

Se a canção abaixo de Jaci Maraschin não for conhecida, ela pode ser apresentada como jogral ou lida em dois grupos por toda a comunidade, com projeção no telão ou de forma impressa. Transcrevo-a abaixo como jogral:

Jesus Cristo – vida do mundo

1 – Não é vida a vida que se vive por engano, essa triste vida que não tem calor humano.

2 – Pois viver a vida é muito mais do que aparência: De viver a vida que só é sobrevivência.

1 e 2 – Jesus Cristo é a vida, é a vida do mundo.

1 – Não é vida a vida que se vive como escravo, sem ter voz ou vez, sem lar, abrigo nem centavo.

2 – Pois viver a vida é como busca da aventura: Só é vida a vida enquanto a liberdade dura.

1 e 2 – Jesus Cristo é a vida, é a vida do mundo.

1 – Não é vida a vida que se vive sem futuro, que só tem memória, só passado vago e escuro.

2 – Pois viver a vida é muito mais do que a lembrança: Só é vida a vida que ressurge da esperança.

1 e 2 – Jesus Cristo é a vida, é a vida do mundo.

1 – Essa vida é a vida que em Jesus nós alcançamos quando junto a ele o mundo injusto transformamos,

2 – E, vencendo a morte, as opressões e a tirania, vivemos sempre em seu reino de alegria.

1 e 2 – Jesus Cristo é a vida, é a vida do mundo.

Uma ótima ideia para a liturgia deste tempo de fim de ano da igreja encontra-se no Livro de Culto, p. 141-145, de uma forma especial a formulação do Kyrie

 

Bibliografia

CURSO DE BÍBLIA POR CORRESPONDÊNCIA. As comunidades da segunda geração cristã. São Leopoldo: CEBI, 2004.

SILVA, Valmor da. Segunda Epístola aos Tessalonicenses. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1992.

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).