Interpretação Evangélica da Bíblia a partir de Lutero (*)
Gottfried Brakemeier
O DESAFIO HERMENÊUTICO DA REFORMA
Martim Lutero, intimado a comparecer à dieta de Worms, em 1521, e pressionado a revogar o que até então pregara e escrevera, declarou publicamente: ¨A não ser que alguém me convença peio testemunho da Sagrada Escritura ou com razões decisivas, não posso retratar-me. Pois não creio nem na infalibilidade do papa, nem na dos concílios, porque é manifesto que frequentemente se têm equivocado e contradito. Fui vencido pelos argumentos bíblicos que acabo de citar e minha consciência está presa na palavra de Deus¨ (1). Desconsiderando uma vez o que seriam as ¨razões decisivas¨ mencionadas por Lutero, chama atenção, nesta resposta, o resoluto recurso à Sagrada Escritura. Lutero se confessa vencido por argumentos bíblicos e desafia imperador, dignitários eclesiásticos, teólogos, enfim toda a Igreja de seu tempo a fazer, com ele, exegese da Bíblia. Somente a Escritura é capaz de decidir sobre verdade ou falsidade de uma doutrina.
A atitude de Lutero causou espanto na época. Como pode um homem sozinho enfrentar a autoridade da Igreja, como ousa atacar a esmagadora maioria dos teólogos, seus contemporâneos, como pode opor-se a tantas formas de devoção já há séculos arraigadas na mentalidade do povo? O reformador invoca testemunho da Sagrada Escritura. Mas, quem é ele para fazê-lo? Por acaso, detém o monopólio da interpretação? Sob tal perspectiva a atitude-de Lutero espanta ainda hoje. Ela é perigosa. Pode-se tranquilamente afirmar que a história do protestantismo teria sido bem, menos conflituosa e tendente à formação de seitas, se Lutero não tivesse achado tantos imitadores que, com a Bíblia na mão e supostamente iluminados pela inteligência ou pelo Espírito Santo, se consideravam os únicos conhecedores do Evangelho. O individualismo teológico é um mal muito difundido entre os protestantes. Justamente por isto é preciso não se empolgar com o simples heroísmo ou a personalidade de Lutero. Ambos não são critérios da verdade. É preciso perguntar, isto sim, pelas causas da atitude do reformador. Que lhe dá o direito de insistir na Sagrada Escritura como suprema juíza da verdade evangélica e como testemunha de sua própria ortodoxia?
É digno de nota que Lutero jamais se justificou, alegando sua especial competência como doutor em teologia ou o seu carisma pessoal. Embora tivesse plena consciência de suas habilidades como exegeta (2), não é isto o que lhe serviu de argumento. Da mesma maneira não recorre a revelações com que teria sido privilegiado, nem à posse particular do Espírito. Muito pelo contrário, o protesto de Lutero se inspira numa descoberta que ele fez com e na Sagrada Escritura: Não há lugar em que Jesus Cristo fale de modo mais claro e inequívoco às pessoas e à Igreja do que na Escritura. Na verdade, ela não precisa de intérprete, de alguém que lhe dê voz e sentido. A Escritura se interpreta a si mesma (3).
Este princípio, em si, não é novo. Já o encontramos em outros teólogos da Idade Média (4). Novo, porém, é o modo como Lutero o aplica e dele tira as consequências. Juntamente com a auto-interpretação da Escritura (scriptura sacra sui ipsius interpres), ele afirma a clareza (claritas) e a suficiência (sola scriptura) da mesma, defendendo assim a liberdade da Bíblia frente a seus intérpretes e submetendo, a partir daí, Igreja e sociedade a forte crítica. Lutero se tornou reformador como exegeta, ou seja. a leitura da Bíblia o levou a uma nova hermenêutica, a uma nova maneira de interpretá-la. E é isto que responde também pela sua atitude na dieta de Worms: Preso na palavra de Deus e vencido pelos argumentos bíblicos, Lutero tem a coragem de resistir à pressão de igreja e Império. Os princípios escriturísticos acima mencionados, de uma ou de outra maneira, têm orientado o uso da Bíblia no protestantismo. A pergunta é, se aprovaram. Analisando a realidade da exegese em nossos dias, poderíamos concluir que não. Verdade é que a teologia evangélica, desde a época da Reforma, registra um gigantesco esforço exegético documentado numa grande quantidade de comentários, pesquisas e estudos. Verdade é também, que a Igreja Católica, mormente em virtude do Concílio Vaticano II, redescobriu por sua vez a Sagrada Escritura e se uniu aos esforços exegéticos protestantes. Mas qual foi o resultado de ‘tudo isto? Sem medo de errar pode-se dizer que a questão hermenêutica hoje está totalmente aberta de novo, defrontando-se com velhos e novos problemas em busca de caminhos convincentes. De qualquer maneira, os princípios hermenêuticos de Lutero estão sendo questionados pelas seguintes considerações:
1. A exegese da Bíblia não conduziu a resultados inequívocos, mas sim a uma multiplicidade de posições, teses, hipóteses, conjeturas, opiniões que confundem. Daí porque E. Käsemann pode afirmar que o cânone como tal não fundamenta a unidade da igreja, antes a pluralidade das confissões (5). Certamente o esforço investido na pesquisa exegética durante os últimos séculos não foi em vão. Ele nos brindou com muitos conhecimentos importantes sobre os textos, seus autores, a época, etc. Mas ele não favoreceu o consenso doutrinário. Como podemos afirmar a clareza da Escritura, como podemos dizer que eia se interpreta a si mesma, se os exegetas nos respondem a pergunta peio que devemos crer de maneira tão diversa?
2. A diversidade dos resultados levanta ainda outra pergunta: Existe realmente uma exegese ¨objetiva¨? Não é assim que toda interpretação da Bíblia já é predeterminada peia visão, pelos preconceitos, pela ideologia, pelos interesses do intérprete? (6) A tão preconizada objetividade científica — ela é mais do que uma ficção? Essas perguntas são especialmente vivas na teologia latino-americana. Elas questionam, por sua vez, o princípio da auto-interpretação da Escritura, chamando a atenção às premissas hermenêuticas, das quais costumam depender os resultados.
3. Existe ampla insatisfação com a exegese acadêmica e científica, considerada estéril, afastada da realidade, alienante. Nós poderíamos dizer que eia oferece muita explicação e pouca interpretação. Ela se tornou monopólio dos especialistas que, no dizer de C. Mesters (7), trancaram a porta ao povo, de maneira que este foi privado do acesso imediato à Bíblia. Discutem-se questões eruditas, tradicionais, teóricas que a ninguém, exceto aos teólogos, interessam. Enquanto isso, a Escritura deveria ser lida a partir da práxis, a partir da vida real, da vivência com o povo. Busca-se, portanto, uma exegese relevante. E novamente perguntamos: Como se explica o surgimento dessa problemática, se a Bíblia é clara e suficiente em si como Lutero afiançou?
4. Ainda continua controvertida a pergunta pela legitimidade da análise histórico-crítica da Bíblia. Essa análise significa que a Bíblia é submetida ao mesmo tipo de exame racional, crítico, científico como qualquer outro documento da história. Isto forçosamente leva a resultados que escandalizam pessoas acostumadas a verem na Bíblia a santa palavra de Deus, a qual se deve obedecer e não criticar. Há alguns anos a palavra ¨demitologização¨, característica do programa crítico de R. Bultmann, assinalava o auge do criticismo histórico e esquentava, por isso, os ânimos. Hoje esta palavra não mais suscita tamanha polêmica, mas o assunto de modo algum está resolvido. Por não poucos, também na América Latina, o criticismo bíblico moderno é sentido como ameaça à fé, frente à qual se defendem, declarando a aproximação crítica à Bíblia incompatível com a sua natureza e cultivando um literalismo que exige sujeição incondicional ao texto. Chamamos isto de fundamentalismo.
Que, pois, está certo? Ler a Bíblia com os olhos da fé ou com os olhos da razão crítica? Ler a Bíblia como simples documento histórico ou como Sagrada Escritura, como palavra de homens ou de Deus?
Está claro que estamos aí diante de falsas alternativas. Mas, como relacionar a leitura crítica da Bíblia com o respeito que lhe cabe em sua qualidade de palavra de Deus? Eis um problema que ainda não achou solução satisfatória, respectivamente que de novo aguarda solução. Na teologia falamos na tensão entre interpretação histórica e teológica da Bíblia (8). Qual é o tipo de interpretação que, conforme os princípios de Lutero, a Bíblia, ela mesma, exige?
5. A última pergunta que quero levantar, diz respeito à canonicidade da Bíblia. Em que consiste a sua normatividade, que significa ¨sola scriptura¨ hoje? Também nesta questão de modo algum há consenso entre os teólogos. Para uns a Bíblia fornece o padrão da auto-compreensão existencial, para outros ela fornece modelos de atuação política, para ainda outros ela é um compêndio dogmático ou um código morai. Além disso, permanece em debate a relação entre a autoridade da Bíblia e a autoridade da Igreja, bem como a relação entre Escritura e tradição. isto especialmente no diálogo interconfessional (9). À variedade de posições correspondem definições muito diferentes da canonicidade. Se num extremo observamos uma compreensão rígida, enfatizando a infalibilidade formal e verbal da Bíblia, observamos no outro flagrante relativização. A Bíblia merece respeito como venerando documento religioso, mas mais do que exemplos instrutivos, estímulos e ideias ela não é capaz de dar. Também o significado do ¨sola scriptura¨, pois, precisa ser repensado na atualidade.
Naturalmente, é impossível tratar essas questões, que de modo algum esgotam a problemática hermenêutica toda, com o devido esmero neste pequeno estudo. Mas elas constituem o quadro, dentro do qual perguntamos pela hermenêutica de Lutero. Esta, agora, há de ocupar-nos. Que significa ¨scriptura sacra sui ipsius interpres¨? Num passo mais além procuraremos tirar algumas conclusões para o que poderia vir a ser interpretação evangélica da Escritura hoje, tentando dar, inclusive, algumas respostas às perguntas antes levantadas.
II. A AUTO-INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA CONFORME LUTERO
Um dos depoimentos mais importantes de Lutero em questão de Sagrada Escritura encontra-se no seu escrito ¨Assertio omnium articulorum¨ de 1520 que representa uma resposta, melhor urna defesa frente às heresias, das quais a bula papal ¨Exsurge Domine¨ o acusara. Estranha o reformador a maneira alérgica com que a Igreja reage à insistência na Bíblia, e pergunta: ¨Porquanto cremos que a santa católica igreja possui o mesmo espírito da fé que ela recebeu no princípio, por que não deveria ser permitido hoje estudar exclusivamente ou em primeiro lugar a Escritura Sagrada, como era permitido à Igreja primitiva?¨ (10) Em outros termos: Se a Igreja pretende ser cristã, ter o Espírito Santo, ser fiel a seu Senhor, ela não deve temer a comparação com o Espírito dado aos apóstolos. E deste termos conhecimento através da Bíblia exclusivamente. É claro, aliás, que a pergunta de Lutero expressa a suspeita de a Igreja poder afastar-se das origens, e essa suspeita recebe tanto mais reforço quanto mais a Igreja se negar à verificação da identidade do Espírito hoje e então através do estudo bíblico. Por isto Lutero diz: ¨Não quero ser glorificado como o mais erudito de todos, mas quero que somente a Escritura reine e que não seja interpretada mediante o meu espírito nem o de outras pessoas, mas que seja compreendida por si mesma e pelo seu próprio espírito.¨ (11) Portanto, somente a orientação na Sagrada Escritura protege a Igreja contra o perigo da perversão e corrupção.
No entanto, é interessante observar que os motivos dessa perversão não precisam consistir necessariamente no desprezo proposital à Bíblia. Alguém poderia citar a Bíblia permanentemente, jogar com versículos bíblicos para todos os lados e ainda assim impedir que ela reine. A ameaça à Bíblia provém, antes de mais nada, de uma falsa interpretação, ou seja do perigo de o espírito do intérprete se sobrepor ao espírito da Escritura. ¨Sola scriptura¨, isto em Lutero jamais significou a mera operação com passagens bíblicas ou a recitação de textos. O que deve reinar, não são páginas impressas, não é um livro, não é a letra, mas sim o espírito da Sagrada Escritura, respectivamente a causa de que é testemunha e que perfaz o seu centro de gravidade. (12)
Lutero, pois, faz uma dupla distinção: Ele distingue entre o espírito da Escritura e o espírito dos intérpretes de um lado e ele distingue, na própria Escritura, entre periferia e centro, entre letra e espírito, entre texto e palavra de Deus por outro. Ambas as distinções merecem consideração mais pormenorizada.
1. Nenhuma pessoa é recipiente vazio ao ler a Bíblia. Todos já possuem certas idéias sobre Deus, homem e mundo, todos pensam nos moldes da sua época e são marcados por suas experiências individuais e pela tradição. Mais ainda: As pessoas têm seus interesses, as suas perguntas, seus anseios, seus sentimentos. É tudo isto que Lutero resume no termo ¨spiritus proprius¨ do intérprete. Para tanto uma citação: ¨…importa que coloquemos os escritos de todos os homens de lado e que apliquemos tanto mais o nosso suor à Escritura quanto mais presente se fizer o perigo de alguém a compreender pelo seu próprio espírito, a fim de que o costume deste afã permanente supere este perigo e nos faça certos do espírito da Escritura que fora da Escritura não pode ser encontrado.¨(13) É fácil reconhecer no ¨spiritus proprius¨, conforme Lutero usa a expressão, uma proximidade muito grande e mesmo uma certa coincidência com o que R. Bultmann chamou de ¨pré-compreensão¨ (Vorverständnis) (14) e que recentemente se costuma chamar ¨pressupostos ideológicos¨. Quer me parecer, no entanto, que o significado do ¨spiritus proprius¨ é bem mais abrangente do que o das duas categorias mencionadas: ¨Spiritus proprius¨ em Lutero é sinônimo para o ¨eu¨ do intérprete com toda a sua bagagem psicológica, cultural, religiosa, ideológica. é o homem tal como pensa, sente e vive. Supérfluo dizer, aliás, que o ¨spiritus proprius¨ é característico não só no indivíduo. Já vimos que Lutero fala também do ¨spiritus¨ da Igreja que pode ser um ¨spiritus proprius¨ e estar em desacordo com o espírito dado aos apóstolos. Em razão disto, o recurso ao consenso da Igreja não é argumento na disputa da verdade.
Neste ¨spiritus proprius¨, pois, o homem lê a Bíblia. Que então acontece? Ora, em princípio podem acontecer duas coisas: Ou o espírito do intérprete prevalece por sobre o espírito da Sagrada Escritura, ou o espírito da Sagrada Escritura prevalece por sobre o espírito do intérprete, transformando-o e renovando-o.
Logicamente, a primeira possibilidade deve ser evitada a todo custo, embora represente a tentação permanente e o perigo muitas vezes inconsciente do exegeta. Ela é desrespeito a Deus. Impondo o seu espírito ao da Escritura, o intérprete só reencontra nela o que ele já sabe. Ele proíbe à Bíblia falar por si mesma, ele a sujeita a rigorosa censura, tolhe a liberdade da palavra de Deus. Poder-se-ia dizer que é a maneira do pecado se manifestar na hermenêutica.(15) Por isto importa que o nosso espírito se submeta ao espírito da Escritura, melhor ainda, que o nosso espírito seja substituído pelo espírito da Escritura Eu diria uma vez assim: Importa que não vejamos a Bíblia na perspectiva de nós e do nosso mundo, mas sim que aprendamos a ver a nós e ao mundo peia perspectiva da Bíblia. Caso contrário, nada de novo ela nos dirá. Interessante observar, quão grande sempre tem sido o temor de Lutero de ele, por sua vez, violar a Escritura e desviar as pessoas do espírito da mesma.(16) Nenhuma interpretação da Bíblia, por mais genial que seja, pode isentar.se da verificação crítica e da suspeita de reprimir o espírito da escritura em vez de servir-lhe.
E é exatamente isto que em Lutero significa auto-interpretação da Sagrada Escritura, a saber, o descobrir e o sujeitar-se ao espírito que lhe é inerente. Significa, de modo algum, dispensa da necessidade de interpretá-la e de investir energias na sua compreensão. Muito pelo contrário, a auto-interpretação da Bíblia acontece no esforço pela compreensão dos textos, na pesquisa, na reflexão. Justamente então a Bíblia começa a falar, a interpretar-se a si mesma, a revelar os seus mistérios, a engajar o intérprete e a transformar-lhe a mente. Com isto já dissemos que, para Lutero, a Bíblia não quer ser apenas analisada, dissecada, examinada como um objeto qualquer. Ela não quer ser interpretada apenas com o intelecto, ela quer ser ouvida. É preciso abrir-lhe o coração. Ela tem uma causa a transmitir, diante da qual não podemos ficar neutros, frios, desinteressados. (17) De qualquer modo, na boa exegese o intérprete passa a ser o interpretado pela Bíblia, e a Bíblia de interpretada passa a ser intérprete. Ela interpreta a mim e minha vida, ela interpreta a realidade, nosso ambiente, ela interpreta a situação do mundo diante de Deus. Assim sendo, podemos falar em Lutero de um verdadeiro círculo hermenêutico. (18) Nós, com o nosso ¨spiritus proprius¨, interrogamos a Bíblia e ela não só dá resposta, ela corrige as nossas próprias perguntas e nos dá o espírito, mediante o qual a Escritura quer ser compreendida. Ela não é mero objeto de pesquisa, não é um banco de dados à disposição de quem deles precisar. Ela se transforma em sujeito, parceira de diálogo, ela se constitui em autoridade. Onde ela perder a sua força crítica frente às premissas, as interrogações e posições dos intérpretes, ou seja, onde eia deixar de questionar o ¨spiritus proprius¨ dos seus leitores, o círculo hermenêutico quebra e a leitura praticante se torna supérflua A Escritura é doadora, nós somos os receptores. É isto que diz o princípio ¨scriptura sacra sui ipsius interpres¨.
Cabe-nos fazer uma última observação neste contexto. A forma mais sutil e por isto mais perigosa de o ¨spiritus proprius¨ triunfar por sobre o espírito da Sagrada Escritura, Lutero a viu e descobriu nos entusiastas. Ele os define como pessoas ¨que se jactam de terem o Espírito sem a palavra e antes dela (ohn und vor dem Wort), e que depois julgam, interpretam e esticam a Escritura ou a palavra oral, a seu talante. Assim procedeu Münzer. e em nossos dias ainda o fazem muitos…¨ (19). Lutero insiste em que Deus jamais dá o Espírito Santo diretamente de cima, ele nunca o aa sem e ao lado da palavra externa, (20) e isto também significa. nunca sem a palavra da Escritura. Reclamar a posse do Espírito para assim reclamar o monopólio da interpretação bíblica é para Lutero arbitrariedade, a forma mais traiçoeira de se impor à palavra de Deus. E uma vez que não só T. Müntzer e seus congêneres reclamassem a posse do Espírito, como também os papas. não admira que Lutero visse também no papado encarnação do entusiasmo.(21) Em todos os casos, o reformador se opôs a que, em nome do Espírito Santo fosse violado o espírito da Escritura. O que está em desacordo com o espírito da Escritura, não é o Espírito Santo, mas sim o espírito do próprio homem em máscara piedosa. ¨Scriptura sacra sui ipsius interpres¨, isto é, o contrário de toda exegese entusiasta que presume ter o Espírito já antes de ter investido suor no estudo.
2. Mas voltemos agora a nossa atenção à outra distinção feita por Lutero e que não é menos importante: Há uma diferença entre a Escritura e o seu espírito, entre as palavras e a palavra, entre letra e evangelho. Certo é que o espírito dado aos apóstolos não pode ser encontrado a não ser na Bíblia — onde então? Mas o espírito já não é idêntico à letra. Como então discernir o espirito e a letra, a palavra de Deus nas palavras da escritura? Para tanto importa respeitar o seguinte:
a. Da Idade Média Lutero herdou um método hermenêutico, segundo o qual os textos bíblicos eram analisados sob quatro perspectivas diferentes. Os textos teriam um sentido (sensus) quádruplo, a saber: o sentido literal, alegórico ( = espiritual), tropológico ( = parenético) e anagógico ( = escatológico). Na sua primeira preleção sobre o livro dos salmos (dictata super psalterium) de 1513-1515, Lutero ainda aplica este método exegético, procurando eruir sucessivamente estes quatro sentidos dos textos. Paulatinamente, porém, abandona este método por enxergar, especialmente no ¨sensus alegoricus¨, portas abertas para o intérprete introduzir o seu ¨spiritus proprius¨ na exegese. Lutero, mais e mais, deixa valer exclusivamente o ¨sensus literalis¨ como único legítimo que simultaneamente o espiritual, o parenético e o escatológico.(22) Portanto. o reformador acaba com os artifícios hermenêuticos. com as especulações exegéticas e com as arbitrariedades dai decorrentes, para concentrar os seus esforços na constatação do significado literal das passagens. Diz ele: ¨O Espírito Santo é o escritor mais simples que existe no céu e na terra. razão pela qual também as suas palavras não podem ter senão sentido simples, o qual chamamos o sentido escrito ou literal… ¨(23) Não se descobre o espírito da Sagrada Escritura, pois. mediante complicadas manobras exegéticas antes pelo auscultar do sentido original das palavras.
b. Mesmo assim. a exegese não termina após constatado o significado literal dos textos. Pois eles propugnam uma causa, são testemunhos de um acontecimento. e a força da Escritura não está nas suas letras. mas precisamente nesta causa de que é promotora. (24) Há uma diferença entre texto e causa, assim como J. A. Bengel o formulou nas palavras constantes como lema na edição do Novo Testamento grego de E. Nestle: ¨Te totum applica ad textum, rem totam applica ad te.¨ (Aplica-te todo ao texto, a causa, aplica-a toda a ti.) Logo, obediência ou submissão à Sagrada Escritura não significa sujeição cega ao que lá esta escrito. Neste caso a Bíblia teria sido transformada em lei. É a causa, é a palavra de Deus com e sob a palavra de homens que exige resposta, engajamento, obediência. Por isto também a Escritura não tem dignidade em si mesma, a sua dignidade, autoridade e canonicidade derivam deste seu conteúdo, respectivamente da causa por ela testemunhada.
c. Esta causa, para Lutero, se expressa na Bíblia de modo tão claro que não pode haver dúvidas a respeito. Para dizê-lo com os seus próprios termos: ¨Pois onde está escrito de maneira mais clara que Deus criou céu e terra, que Cristo nasceu de Maria, que sofreu, morreu e ressuscitou e tudo o que nós cremos, senão na Bíblia? Quem foi tão relutante que tivesse lido estas coisas e não tivesse compreendido?¨ (25) A Escritura é clara como o sol do dia, (26) razão pela qual não há necessidade de, uma instância, respectivamente de um magistério, de quem quer que seja, que a decifre e torne compreensível aos homens. É bem verdade, aliás que Lutero não era cego com relação às passagens obscuras da Bíblia. Ele não diz que a Bíblia é imediatamente compreensível em todas as suas partes. Se assim fosse. não haveria necessidade de estudá-la e de interpretá-la Mas eia é clara no seu centro, na sua causa, e é preciso ler as diferentes partes da Escritura a partir deste seu centro claro e inconfundível. Se não for vista a clareza deste centro. não é porque a Escritura é obscura, mas porque os olhos dos intérpretes estão cegos, é porque o homem resiste em compreender o que Deus por ele fez, (27)
d. Lutero pôde assim falar, porque o centro da Escritura. para ele, não é algo escrito, não é dogma, não é letra nem teorema, mas sim proclamação, prédica, evangelho. Naturalmente, o evangelho na Escritura achou a sua forma escrita. Entretanto, isto já é uma emergência uma necessidade que não deve ocultar o fato de que o evangelho precisa ser pregado. (28) A Escritura deve ser compreendida a partir da prédica oral dos apostolas, a partir da ¨viva vox¨ do evangelho. Evidentemente, a cristandade precisa da Escritura, mas para a sua existência é essencial que não a trate como palavra morta, antes descubra nela a viva palavra de Deus, o querigma, a mensagem atual e a entenda a partir da mesma. Transformar a Escritura num código de leis ou de dogmas, portanto, contradiz profundamente as intenções de Lutero ao enunciar o princípio ¨sola scriptura¨. Na Escritura é preciso descobrir a prédica do Evangelho.
e. E qual é este centro da Escritura? É sabido que Lutero o definiu cristologicamente. Jesus Cristo, ele mesmo, é o cânone dentro do cânone, o critério de julgamento de toda doutrina, de toda fé, da vivência cristã. Talvez não seja supérfluo ressaltar que Lutero não se tornou reformador em virtude de um novo método (!) hermenêutico, mas sim, como G. Ebeling (29) mostrou, devido à concentração de toda a Escritura na pessoa de Jesus Cristo. O ¨sola scriptura¨ é para Lutero idêntico com o ¨solus Christus¨. E mais ainda: O ¨solus Christus¨ é idêntico com o ¨sola gratia¨. Pois é esta a obra de Jesus Cristo, a saber, de ter morrido por nós, de Deus através dele ter-nos revelado a sua misericórdia, de ter-nos justificado ¨sola gratia¨ e ¨sola fide¨. Por isto a teologia de Paulo se tornou para Lutero de tamanha importância. A obra de Cristo é absolutamente prioritária por sobre qualquer outra coisa. Nela a escritura. em toda sua diversidade que não ficou oculta a Lutero, tem o seu ponto de referência. sua consistência, seu verdadeiro âmago. (30) Cristo é também o espírito da Sagrada escritura, lutando contra o nosso espírito e querendo suplantá-lo.
f. Desta concentração cristológica, enfim, resulta em Lutero uma posição crítica frente à própria Escritura. É impressionante ver os juízos críticos que Lutero foi capaz de proferir sobre partes da Bíblia. A autoridade da Escritura não depende da autoridade de seus autores, mas sim do conteúdo. Eu cito: ¨Este é o verdadeiro critério de julgar todos os livros: Se a gente vê, se tratam de (ou: se promovem) Cristo ou não (ob sie Christum treiben oder nicht) uma vez que toda a Escritura mostra Cristo… O que não ensina Cristo, isto também não é apostólico ainda que São Pedro ou Paulo o ensinassem. Por sua vez, o que prega Cristo, isto seria apostólico, ainda que Judas, Anás, Pilatos ou Herodes o fizessem¨(31). Este mesmo critério faz com que Lutero prefira certos livros da Bíblia como sendo os mais evangélicos e relegue outros à margem do Novo Testamento como Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse(32).
Embora a Bíblia seja testemunha de Cristo, embora Lutero tivesse a Bíblia no mais alto apreço. ele jamais se tornou servo da Bíblia. Ele permaneceu sendo servo de Jesus Cristo e pôde, por isto, inclusive ¨lançar Cristo contra a Escritura¨(33). Cristo é a razão última não só do ¨scriptura sacra sui ipsius interpres¨, ele é responsável também pelo que P. Atthaus formulou nas palavras: ¨Scriptura sacra sui ipsius critica¨. (34) A Escritura é auto-crítica. Não resta a mínima dúvida de que este criticismo de Lutero, todo decorrente da causa do evangelho, é a expressão mais enfática para a diferença entre Escritura e palavra de Deus, apesar de uma estar inseparavelmente vinculada à outra. Resumindo este breve esboço dos princípios hermenêuticos de Lutero, constatamos pois ser fundamental aquela dupla distinção que acabamos de destacar: A Igreja tem como critério e fonte de vida a Escritura. O espírito nela em evidência deve reinar, não o da Igreja ou de qualquer pessoa. Mas a Escritura, por sua vez tem como critério e fonte de vida o próprio Jesus Cristo. É Ele que deve reinar, não a letra da Escritura.
Que significa isto agora, em nossa discussão hermenêutica atual? Quais as conseqüências? Tentarei tirar, a seguir, algumas conclusões. É claro, aliás, que esta tentativa de definir a contribuição de Lutero para uma interpretação evangélica.da Bíblia hoje não deixa de ser uma prestação de contas dos meus próprios princípios hermenêuticos.
III. CONCLUSÕES
A história universal não parou com Lutero, nem tampouco terminou com ele o esforço hermenêutico. Em razão disto, interpretação evangélica da Escritura não pode limitar-se a imitar o método do reformador sob abstração do que, nestes aproximadamente 450 anos, aconteceu em termos de pesquisa, mudança de situação e alteração de perspectivas. Para tanto três exemplos:
1. Embora a expressão ¨spiritus proprius’‘, em Lutero, seja de extraordinária abrangência, revelou-se-nos hoje este fenômeno como sendo ainda mais complexo do que o reformador imaginava. Sociologia, psicologia, antropologia mostraram o quanto a pessoa e a sociedade estão condicionadas por fatores alheios à sua vontade, não raro subconscientes, supra-individuais, estruturais.
2. A ciência bíblica ampliou os nossos conhecimentos acerca da origem, do mundo contemporâneo e da história da Sagrada Escritura de tal maneira que o testemunho cristão periga submergir na relatividade das expressões religiosas da humanidade ou dissolver-se numa infinidade de detalhes, por sobre os quais não mais se enxerga o centro. A grande quantidade de conhecimentos históricos confunde não só o leigo, ela confunde também o especialista.
3. Em comparação com o tempo de Lutero, o posicionamento do homem de hoje (se me permitem uma vez esta generalização) frente à Bíblia mudou. Ela não mais é aquele um e único livro sagrado, incontestado em sua autoridade. Muito pelo contrario, ela deve competir com outros livros sagrados. Além disto, a ciência dela se apoderou, analisando-a com o espírito da desconfiança e do ceticismo. A Escritura, hoje, deve evidenciar sua verdade de modo diverso do que na época de Lutero. Naturalmente, Lutero nos legou uma herança extremamente valiosa, comprometendo a Igreja evangélica em sua busca da verdade. Ele oferece auxílio inclusive nos impasses hermenêuticos, dos quais inicialmente falei. Formularei algumas teses, reivindicações e observações, procurando nelas condensar o que me parece ser o fruto inalienável da interpretação bíblica de Lutero.
1. Em primeiro lugar quero afirmar a necessidade da interpretação histórico-crítica da Bíblia. Não porque Lutero, ele mesmo, tivesse sido o seu iniciador e protagonista. Como vimos, o criticismo de Lutero ainda não é histórico, ele resulta da concentração na causa da Escritura. Mesmo assim, entendo que o reformador nos compromete com a leitura histórico-crítica. Uma vez, porque ela traz à consciência o que para Lutero era tão básico, a saber, a diferença entre letra e espírito, Escritura e Evangelho. Todo literalismo, no fundo, é incapaz de fazer esta diferença. A palavra de Deus se nos transmite profundamente imersa em palavra de homens. A pesquisa histórico-crítica está a serviço da não-confusão de ambas. Ela ¨aliena¨ o texto, mostra a Bíblia em toda sua estranheza, como documento tio passado, e revela assim a distância entre o mundo da Bíblia e o nosso. Para todo aquele que procura na Bíblia uma palavra atual e ‘orientação imediata, isto pode ser doloroso. No entanto, considero este processo de ¨alienação¨ do texto indispensável. Pois somente como palavra alheia, a Bíblia tem realmente algo a nos dizer. A pesquisa histórico-crítica se constitui em barreira contra a tentação de encampar a Sagrada Escritura pelo espírito moderno, de transformar os autores da Bíblia em contemporâneos nossos, de privar Jesus das feições de um personagem histórico, de negar a encarnação. A leitura histórico-crítica está a serviço da distinção dos espíritos, cumprindo assim função altamente teológica. E finalmente, a teologia deve ter interesse em prestar contas da verdade de que trata, em termos científicos à altura dos conhecimentos da respectiva época. Ela deve estar em condições de argumentar, pois também a fé, embora não se baseie no saber racional, tem as suas razões. Análise histórico-crítica da Bíblia está a serviço da clareza do Evangelho, impedindo que teologia se transforme numa espécie de ocultismo. Resta dizer, ainda, que o que vale para a análise histórico-crítica, vale também para outras abordagens científicas da Bíblia, como por exemplo a análise sociológica. A Escritura é e deve ser um livro aberto para a ciência. Nós iríamos negar a herança luterana, se a declarássemos intocável para os métodos científicos e críticos. (35)
Contudo, a leitura crítico-científica da Bíblia tem seus limites e seus perigos, razão pela qual não pode reivindicar exclusividade. Resultados científicos são relativos, passíveis de serem superados por novas descobertas, controvertidos entre os especialistas. Que seria da fé, se ela fosse dependente do que os especialistas oferecem como resultado de suas pesquisas? Além disto, leitura científica da Bíblia é leitura com os olhos do intelecto humano, leitura na distância do observador que procura preservar certa neutralidade. Por este motivo a análise científica, para quem procura apoio da fé, causa a impressão de ser estéril, fixada no passado, incapaz de atualizar. E com efeito, a fé não aufere lucro imediato da pesquisa científica. Nisto reside a limitação deste tipo de abordagem bíblica. O seu perigo consiste em que a ciência se constitua em juíza da fé, que o espírito científico se coloque em posição absoluta e não mais se deixe questionar pelo espírito da Escritura. Se é verdade que devemos questionar a Bíblia, lendo-a criticamente, é verdade também que devemos deixar-nos questionar pela Bíblia. Caso contrário, o espírito crítico-científico sobrepor-se-á ao espírito da Escritura e a condenará ao silêncio e – com o que estaria interrompido aquele círculo hermenêutico que observamos em Lutero. Neste caso, relatividade dos resultados científicos reverte no relativismo da fé, sim, a fé então é destruída pela ciência.
A teologia deve aí manifestar o seu protesto. Aliás, não da maneira como o faz o fundamentalismo. Este, pretendendo ler a Bíblia como palavra de Deus e não como simples documento do passado, persegue — e isto é preciso reconhecer — uma preocupação muito legítima. No entanto, também o fundamentalismo impede um verdadeiro encontro entre o ¨spiritus proprius¨ e o espírito da Bíblia, fazendo desta um tabu, frente ao qual toda pergunta é proibida. Ele é como um pai que não admite perguntas críticas de seus filhos. Portanto, nosso protesto contra a dominação da ciência não pode ter a forma do fundamentalismo. Na verdade, não se trata de simplesmente proteger a fé. Eu diria, muito antes, trata-se cie proteger a ciência. Trata-se de protegê-la contra o perigo de ela mesma tornar-se objeto de fé, de ela usurpar o lugar que cabe a esta, de ultrapassar os seus limites. Toda análise científica da Bíblia necessariamente defrontar-se-á com uma reivindicação, com uma proclamação, com a palavra, como dizia Lutero. E frente a esta palavra a única reação adequada é uma decisão. Cito apenas um exemplo: A leitura crítica da Bíblia nos confronta com um homem que faz a pergunta: ¨Quem dizeis vós que eu sou?¨ (Mc 8,29). E se o exegeta ouvir bem, ele não pode responder informando apenas o que Pedro, Paulo, Lutero e outros pensaram, ele deve dar a sua (!) resposta — e esta é uma questão de fé. Em outros termos, a pesquisa científica é relevante apenas na medida em que conduzir ao limiar da fé, mostrando o que na decisão da fé está em jogo e promovendo o diálogo entre fé e ciência.
2. Exegese, porém, deve ser não só crítica e científica, ela simultaneamente deve ser dogmática. Com isto queremos dizer o seguinte:
a. Exegese não se esgota em explicações históricas e informações, ela deve assumir a responsabilidade de definir o que, afinal de contas, se deve crer. Nisto, inclusive, reside o objetivo último de toda interpretação bíblica. Ela deve fornecer, orientação em assuntos de fé e conduta à Igreja e ao cristão que lê a Bíblia. Lutero colocou a normatividade da Escritura acima de todas as demais instâncias normativas, comprometendo toda exegese, que anda nas suas pegadas, com a definição da fé, respectivamente com a doutrina
b. Esta doutrina não deve ser confundida com um sistema dogmático completo, estático, ou com um resumo de verdades atemporais. Talvez seja oportuno lembrar que Lutero não escreveu uma dogmática ou uma ¨summa theologiae¨ à maneira dos grandes teólogos da Idade Média. Para Lutero a teologia, assim como o próprio Evangelho, não cabe dentro de um sistema. Ainda assim, toda teologia de Lutero não deixa de ser tentativa de definir o que vem a ser fé e em que consiste. Se bem que não escrevesse dogmática ou ética, Lutero escreveu catecismos, e muitas das suas obras possuem cunho nitidamente dogmático. Supérfluo dizer que toda dogmática, em Lutero, resulta de exegese, mas não é supérfluo dizer hoje que toda exegese deve resultar em dogmática.
c. O protestantismo (mas também segmentos do catolicismo) atualmente tem certa aversão contra a fixação doutrinária do Evangelho. Isto se explica uma vez como reação a um dogmatismo autoritário que veio e ainda vai em prejuízo da vida da comunidade. O outro motivo, porém, reside numa real dificuldade: A heterogeneidade da Bíblia, detectada pela ciência nos últimos séculos, desfez a unidade da Escritura, e, o que sobrou, foram fragmentos aparentemente não oriundos de um conjunto orgânico. Todavia, Lutero nos encoraja a buscarmos o centro da Escritura, sendo doutrina cristã — assim entendo — nada mais do que formulação deste centro e de suas implicações. O Evangelho não se resume em acontecimento e práxis. Ele não deixa de ser palavra a ser formulada, transmitida, ensinada. Tenho a impressão que na teologia não perguntamos suficientemente por este centro da Escritura e queremos, não raro, a atualização direta dos textos sob abstração do Evangelho todo, contexto último de cada texto. Parece-me urgente investir um pouco mais esforço na busca deste centro da Bíblia. Precisamos de um critério a fim de julgar as partes a partir do todo. Somente assim poderemos evitar a arbitrariedade das posições teológicas, o uso seletivo das passagens bíblicas e, quem sabe, aproximar-nos mais da meta de uma teologia bíblica, na qual a relação entre Antigo e Novo Testamento encontrem definição satisfatória. (36)
d. É claro que a busca do centro da Sagrada Escritura necessariamente deverá auscultar a tradição dogmática da Igreja. ¨Sola scriptura¨, em Lutero, não significa desprezo à tradição. Os antigos símbolos da Igreja não foram eliminados por Lutero, e ele jamais ignorou os teólogos que o precederam. Teologia é feita na Igreja, em diálogo crítico com as suas tradições e a sua práxis.
e. Como Último aspecto deste item, quero ressaltar que naturalmente também a interpretação dogmática da Escritura pode interromper o círculo hermenêutico. Isto acontece no momento em que o dogma se constituir em autoridade acima da Escritura, não mais permitindo o questionamento crítico. Se a Confissão de Augsburgo, por exemplo, adquirisse tal peso, que uma crítica ou mesmo discordância se tornaria praticamente impossível, é certo que dogmatismo iria atrofiar a livre palavra da Escritura. Segundo convicção luterana, o dogma não é nada eterno ou definitivo, mas sempre de novo sujeito à verificação bíblica.
Em resumo, pois, afirmo a necessidade da interpretação dogmática da Escritura com a função de formular o centro da mesma a partir e em confronto crítico com a tradição da Igreja.
3. Mas a Igreja precisa não somente da exegese científica e dogmática ela precisa também e justamente da exegese que eu iria chamar de prática. Isto significa: Ela precisa ler a Bíblia a partir das perguntas concretas da vida e da realidade, na qual vivemos. Para Lutero a Bíblia não era aquele livro com sete selos capazes de serem abertos unicamente pelo grupo, dos especialistas treinados em latim, grego e hebraico. A Bíblia é para o povo. Por isto o reformador a traduziu, por isto a divulgou, por isto se empenhou em melhorar o sistema escolar da época, uma vez que é preciso saber ler para ter acesso à Bíblia. Premissa para tanto é, como já frisamos, a afirmação da clareza da Escritura, premissa para tanto é, em Lutero, que a Escritura se interprete a si mesma no sentido acima exposto. A Bíblia fala à nossa vida, ela a interpreta, ela promove a libertação, contém consolo para as consciências aflitas, ela contém a palavra de Deus que justifica os pecadores e ressuscita os mortos.
Com a ênfase numa leitura da Bíblia a partir da práxis, notadamente forte na teologia latino-americana, vejo atendidos objetivos genuinamente luteranos. Exemplifico no caso de C. Mesters e seu livro ¨Por trás das palavras¨. Se o povo não lê a Bíblia, assim constata Mesters, é porque lhe foi tirada pelos especialistas: Estes transformaram um livro da vida numa peça de museu, sem dúvida venerável, mas sem alma. Aconteceu o divórcio entre Bíblia e vida real. O que importa, pois, é reler a Escritura a partir e com as perguntas que o povo faz. Mesters não nega a importância da teologia científica, no entanto, esta deve estar a serviço da vida do povo com a Bíblia e da vida da Bíblia com o povo. A fundamentação desta sua visão, Mesters a deriva da própria Bíblia. O título da terceira parle de seu livro diz: ¨A Bíblia vista e interpretada pela Bíblia¨, e isto soa muito semelhante ao ¨scriptura sacra sul ipsius interpres¨ de Lutero, se bem que não haja identidade. Conforme Mesters, a Bíblia fornece o método de sua interpretação, enquanto a chave está na fé do povo, na certeza do ¨Deus conosco¨, do Emanuel. (37) Considerando-se que o termo ¨povo¨ em Mesters é praticamente sinônimo de Igreja, podemos ver que a chave para a Escritura deve ser procurada na Igreja, vista, aliás, não tanto em termos de hierarquia, mas sim de povo de Deus. Apesar de muitas congruências, Lutero não diria exatamente a mesma coisa. Em primeiro lugar, ele iria antepor ao ¨Deus conosco¨ (cum nobis) o ¨Deus por nós¨ (pro nobis) quando da definição da chave da Escritura. E, em segundo lugar, ele não diria que a chave é algo que o povo tem, mas que lhe é dado na medida em que o busca na própria Bíblia. A despeito destas diferenças, porém, é notável o consenso quanto à necessidade de a Bíblia ser lida pelo povo, a partir da realidade histórica e humana, a partir da vida.
No entanto, também nesta leitura bem prática da Bíblia existem perigos a evitar. Pois ¨nossa vida¨ – isto é algo muito complexo, algo poderoso que muito bem pode impor-se à vida da Bíblia. Nossas perguntas e experiências, anseios, interesses, ideologias, ameaçam o diálogo com a Bíblia. Também neste caso será imperioso resistir ao ¨spiritus proprius¨, e isto significa:
a. Teologia não poderá satisfazer-se com o método de as pessoas apenas dizerem o que sentem ou acham com respeito a um determinado texto. Exegese prática (como nós a chamamos) não deixa de ser trabalho, discussão, pesquisa. A Bíblia deve ter o direito de questionar a nossa vida, de fazer o seu discurso próprio.
b. Considero perigoso separar a análise da nossa realidade e a interpretação bíblica como se fossem dois passos totalmente distintos. Certamente, uma análise sociológica. política, econômica, etc. da nossa realidade tem seu valor independente da palavra bíblica. Mas esta interpreta a nossa realidade mais uma vez(!), sob outro ângulo, sob a perspectiva do Evangelho. A Bíblia não é um simples livro de respostas. Ela também faz perguntas e contribui decisivamente para a compreensão da nossa realidade.
c. Por isto mesmo vejo perigos também, quando se faz do compromisso o primeiro passo do processo hermenêutico, como isto acontece em J. L. Segundo. (38) Este compromisso com a práxis libertadora, a ser assumido pelo exegeta antes de qualquer coisa, vem rápido demais, ameaçando bitolar a exegese. Não admite a mínima dúvida que a Escritura exige o compromisso, e ninguém o ressaltou como Lutero. Mas este compromisso não pode adquirir a função de premissa hermenêutica por acarretar os inconvenientes de um novo tipo de fundamentalismo: A Bíblia, em vez de ser lida a partir da letra do texto, é lida a partir da ¨letra¨ do compromisso. Em ambos os casos, a Bíblia nada de novo tem a dizer e os intérpretes arrogam a si uma infalibilidade que faz difícil o diálogo e o estudo crítico. ¨Scriptura sacra sui ipsius interpres¨, isto é afirmação da liberdade da palavra de Deus que não passa de largo das necessidades do povo ou da nossa vida, mas que sempre de novo rompe os nossos condicionamentos de qualquer espécie.
Finalizando, constato, pois, a necessidade de exegese científica, dogmática e prática. Lutero mostra, assim entendo, que estes três tipos não podem ser separados, embora a tônica possa recair uma vez mais neste ou naquele tipo. Da exegese científica e dogmática estão encarregados cie modo especial os teólogos, a prática (mas não só eia!) é incumbência de todos, sendo que o membro leigo aí pode tirar muita vantagem por sobre o teólogo profissional. Apesar de toda interpretação bíblica participar de todos estes enfoques, há, como eu já disse, uma distribuição diferente das ênfases. A fim de não criarmos tricotomia, importa que um tipo de exegese seja aberto para o outro, que lhe ceda espaço e que, na medida do possível, se busque a síntese. Para tanto, porém, necessário se faz entender exegese não somente como tarefa individual, mas sim comunitária.
Interpretação evangélica é interpretação que respeita a liberdade da Escritura: Se esta se tornar dependente dos intérpretes, também a Igreja se torna dependente de mestres humanos, seja teólogo, bispo, povo ou presidente da Igreja. Onde o ¨spiritus proprius¨, de uma ou de outra forma, predominar sobre o espírito da Escritura, o domínio de Cristo é suplantado pelo domínio de homens, e a Escritura, de Evangelho, passa a ser lei. Mas não é da lei, e, sim, do Evangelho que vivemos.
Notas
(*) Exceto em caso de indicação contrária, citamos Lutero de acordo com a edição de Weimar WA), representando os números volume (seção), página e linha respectivamente. As traduções do alemão ou do latim são nossas.
(1) Citação conforme A. Greiner: Lutero, (São Leopoldo 1969), pág. 106 s; indicação da fonte em H. J. Hillerbrand: Brennpunkte der Reformation, (Göttingen 1967), pág. 92.
(2) Lutero pôde dizer. Eu sei e estou certo, pela graça de Deus, que sou melhor instruído na Sagrada Escritura do que todos os sofistas e papistas.’ (WA 15,216,3. Cf WA 19,350,2; 53.256,18).
(3) Assim verbalmente em W A 7,97,20 s; 14,566,26 ss: 10 111.238,10.
(4) Cf. G. Gloege: Zur Geschichte des Schriftverstandnisses, em: Theologische Traktate 11, (Göttingen 1967), pág. 263 s.
(5) Em: Begründet der neutestamentliche Kanon die Einheit der Kirche? EVB 1, (Tübingen 1960), pág. 214 s.
(6) Cf. entre outros J.L. Segundo: Libertação da Teologia, (São Paulo 1978) pág. 107 ss e passim.
(7) Em: Par trás das palavras, Vol 1, Publicações CID Exegese 1. (Petrópolis 1977), 33 ed. pág. 13 ss.
(8) Veja-se P. Stuhlmacher: Historische Kritik uncl theologische Schriftauslelung, em: Schriftauslegung auf dem Wege zur biblischen Theologle, (Göttingen 1975), pág. 59 ss. O mesmo autor oferece um excelente balanço da situação hermenêutica em seu ensaio: ¨Neues Testament und Hermeneutik, ibd, pág. 9 as. Quanto à história da hermenêutica veja-se H. Kosak: Leittaden biblischer Hermeneutik, (Berlin 1977),24 ed.
(9) Apesar de forte aproximação das Igrejas protestante e católica nesta matéria, permanecem diferenças. Cf J. Feiner e L. Vischer O Novo Livro da Fé, (Petrópolis 1976). pág. 69 as; 350 ss.
(10) WA 7,97,16 ss. Tradução do original latino para o alemão em W.G. Kümmel: Das Neue Testament. Geschichte der Erforschung seiner Probleme, (München 1970), 2, ed.
(11) WA 7,98,40 ss. Tradução alemã em E. Hirsch: Hilfsbuch zum Studium der Dogmatik, (Berlin 1958), 3,ed.
(12) Que o ¨sola scriptura¨, em Lutero, não deve ser entendido como simples princípio ouantitativo. mas sim como princípio hermenêutico, foi muito bem demonstrado por G. Ebeling: ¨Sola Scriptura¨ und das Problem der Tradition, em: Das Neue Testament als Kanon, ed. E. Käsemann. (Göttingen 1970), pág. 282 ss, esp. pág. 311 5s. O ¨sola scriptura¨ está em função do ¨solo verbo¨ e do Evangelho.
(13) WA 7,97,5 ss. Esta tensão, bem como a entre Escritura e palavra de Deus não é suficiente considerada no livro, no mais instrutivo, de R. A. Bohlmann: Princípios de interpretação bíblica nas confissões luteranas, (Porto Alegre 1970). pág. 59 e passim.
(14) Em: Das Problem der Hermeneutik, Glauben und Versteben Vol II. pág. 211 ss.
(15) De acordo com W. Mostert: Scriptura sacra sui ipsius interpres. em: Lutherjahrbuch 46, 1979. -pág. 74 s, o pecado acha a sua expressão hermenêutica na relutância do homem, manifesta no seu ¨spiritus proprius¨, em permitir que seja interpretado pela Escritura e assim reconciliado com Deus. Também no mais o ensaio de Mostert apresenta ótimas observações.
(16) Na sua preleção sobre o livro de Gênesis de 1535 ele diz: ‘Por esta causa eu odeio os meus livros e muitas vezes desejo que pereçam, pois temo que perturbem os leitores e desviem da leitura da própria Escritura, a qual exclusivamente é a fonte de toda a sabedoria…¨ WA 43,93,40 ss.
(17) Lutero enfatiza que ao ¨ouvir externo¨ deve corresponder um ¨sentir e ouvir interno¨. Cf WA 3,549,33 ss; 4,305,8 ss. Mediante a Escritura, Deus não dá apenas uma compreensão intelectual do texto, mas sim também ¨urna correta compreensão e experiência no coração¨ — WA 12,438,29 ss. Com justas razões, pois, E. Fuchs: Das Problem der theologischen Exegese des Neuen Testaments, em: Zum hermeneutischen Problem In der Theologie, Ges. Aufs. 1, (Tübingen 1965), 2h ed., pág. 150 exige, entre outras, a exegese existencial (= existentielle!! theologische Exegese).
(18) Desse circulo hermenêutico em Lutero já. falou K. Holl: Luthers Bedeutung für den Fortschritt der Auslegungskunst, em: Gesammelte Aufsätze zur Kirchengeschichte, Vol. I: Luther, (Tübingen 19271. 44 e 54 ed. pág. 567. parafraseando-o da seguinte maneira: ¨É preciso ter o Espírito para compreender a palavra. Mas por sua vez é a palavra que transmite o Espírito.¨
(19) Assim ele diz nos artigos de Esmalcalde de 1537. no parágrafo sobre a confissão. Veja-se: Livro de Concórdia. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução de Arnaldo Schuler, (São Leopoldo, Porto Alegre, 1980). pág. 336.
(20) ibd. pág_ 336
(21) ¨… denn das Bapsttum auch eitel Enthusiasmus ist¨, cf K. Holl: Luther und die Schwärmer. Ges.Aufs. I (ver Obs. No.18). pág. 431 s
(22) Com referencia a isto, G. Ebeling: Die Anfänge von Luthers Hermeneutik. ZThK 48. 1951. pág 172 ss: K.Holl: Luthers Bedeutung pág 545 e outros
(23) W A 7.650.21.
(24) Distinguir na Escritura letra e espírito perfaz, para Lutero, a natureza do verdadeiro teólogo. Cf WA 55 14:25
(25) WA 8,236.29 ss. Quanto ao todo vela-se E W.Kohls: Luthers Aussagen über die Mitte. Klarheit und Selbsttätigkeit der Heiligen Schrift. em: Lutherjahrbuch 40. 1973, pág. 46
(26) WA 10 1.1 G2.5 ss. Instrutivas são igualmente as afirmações de Lutem em ¨De servo arbítrio¨. WA 18.609.4
(27) Cf W. Mostert: op.cit. pág. 73
(28) WA 101.1 626./5 ss: 12,259,8 ss; etc. H. Diem: Theologie als Kirchliche Wissenschaft, Vol /1 Dogmatik. (München 1955), pág. 190 vê um dos grandes méritos da Reforma na redescoberta da Escritura como texto de prédica!
(29) Em: Die Anfänge von Luthers Hermeneutik (Obs. n522), pág. 172 ss.
(30) Assim como Lutero quis que a Escritura reinasse na Igreja, assim ele afirmou Cristo como Senhor da Escritura (WA 39 1.47,5.21). Esta é a serva de Jesus Cristo (WA 40 I, 459,14).
(31) WA DB 7,384,26.
(32) No seu prefácio ao Novo Testamento. de 1522. Lutem destaca como sendo os livros mais nobres: O evangelho e a primeira epístola de João, as cartas de Paulo, principalmente Romanos, Gálatas e Efésios, e finalmente a epístola de I Pedro. ¨Pois nestes (se livros) tu não encontras descritas muitas obras e milagres de Cristo, mas encontras magistralmente ressaltado, como a te em Cristo supera morte, pecado e inferno e dá vida, justiça e beatitude¨ (WA DB 6,10,7 ss). As observações criticas com relação a Tiago, Hebreus e Apocalipse em WA DB 7,344.386.404.
(33) ¨…urgemus Christum contra scripturain¨ WA 39 147,1.19.
(34) Em: Die Theologie Martin Luthers,(Gütersloh 19,62), pág. 7.
(35) Quanto ao assunto veja-se G. Ebeling: Die Redeutung der historisch-kritischen Methode für die protestantische Theologie und Kirche, em: Wort uexl Giaube Vol 1, Tübingen 1960, pág. 1 ss: E. Käsemann: Vom theologischen Recta historisch-kritischer Exegese, ZThK 69. 1967, pág. 259 ss.
(36) Em alguns teólogos da América Latina vejo significativos esforços pela elaboração de uma teologia bíblica em lugar de teologias separadas do Antigo e do Novo Testamento. A Mesma problemática está em pauta em outros lugares do mundo, cf. P. Stuhlmacher: op.cit. (Obs. no. 8). Muitas perguntas, porém, ainda estão abertas. A relação entre os Testamentos é dialética, é de continuidade e discontinuidade. Como definir adequadamente esta dialética? Quanto à necessidade de maior atenção à doutrina no Novo Testamento cf. E. Käsemann: Das Neue Testament als Kanon, (Göttingen 1970), pág. 397 ss.
(37) Em: ¨Por trás das palavras¨ (cf. acima Obs. no. 7). pág. 110 e passim. No que diz respeito à importância da experiência para Lutero, veja-se WA TR 1.16.13: Somente a experiência faz o teólogo.
(38) ¨Libertação da Teologia¨ (cf. acima Obs. no.6), pág. 10ss e passim.
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